quinta-feira, 26 de abril de 2007

RETALHOS DO QUOTIDIANO (parte 11/26)

Cleópatra, filha dos tios

O homem moderno distingue-se pelo nível e excelência das suas informações - positivamente não é esse o meu caso. Sei apenas que preciso estudar mais, porque essa coisa de só saber Física inferioriza e dificulta a vida das pessoas. Padecer sobre os livros, devorá-los, em vez de ficar flanando, prevaricando ou malbaratando por aí.
Pensei sobre
isso quando fui apresentado a May e nos pusemos a passear pelo calçadão do Leblon. Ela era egiptóloga, eu que nem desconfiava da existência dessa atividade.
- E você, Carlinhos, qual a sua profissão?
- Engenheiro malsucedido, pois abandonei o ofício e decidi fazer um doutorado de Física. Engenharia é uma profissão corriqueira e até meio óbvia. Mas egiptóloga, que faz exatamente uma egiptóloga?
- Bem, atualmente estou envolvida num projeto internacional relacionado com o faraó Tutancâmon, do século XIV a. C., coordenado pelo Museu de Ciência de Londres. Sua tumba, descoberta em 1922, em Tebas, no Vale dos Reis, continha uma quantidade extraordinária de jóias e é considerada um dos maiores tesouros arqueológicos de todos os tempos.

- Museu de Ciência, lá em Londres?
Perguntei o que ela já me informara, nada menos edificante. Fazer o quê, dizer o quê?
Tinha até me esquecido que existiu alguém chamado Tutancâmon, e essa palavra eu não escutava havia bem uns quinze anos. E, se me lembro, o que o meu professor de História dizia era "Tutankamon", e não Tutancâmon.
- Estamos reconstituindo a verdadeira face de Tutancâmon, que não tinha os lábios grossos e o rosto triangular sugerido pela sua máscara mortuária, essa que se encontra reproduzida nos livros de História. Na verdade seus lábios eram finos, dentro de um rosto largo, que, além do mais, se caracterizava por sobrancelhas grossas e olhos pequenos.
- A reconstituição facial de uma pessoa que morreu há tanto tempo há de ser muito complicada, observei, fazendo força para não ficar calado o tempo todo.
- Morreu há 34 séculos. Posso dizer que envolve técnicas de raios X, processos e efeitos especiais e programas de computador, capazes de compatibilizar a face que se quer reconstituir com os ossos do crânio encontrados no sarcófago.
- Muito interessante.
- Suspeita-se que tenha recebido um violento golpe na cervical enquanto dormia. A ferida não lhe causou a morte de imediato, e sua agonia se prolongou durante dois meses de terrível sofrimento.
- Onde você entra, nessa história, como egiptóloga?
- Tudo que faço é colaborar com informações históricas, pois não sou habilitada nessas técnicas de reconstituição facial. Por exemplo, houve certa vez uma discussão sobre a idade com que morreu Tutancâmon, e fui chamada a dar a minha opinião.
- Com que idade ele morreu?
- Para mim morreu quando tinha 18 anos, mas esse não é um ponto completamente decidido. Subiu ao trono com nove anos, sendo conhecido como o faraó-menino.
- Os egípicios eram precoces...
- De fato. Cleópatra, igualmente, chegou ao poder com apenas 18 anos. Isso cerca de 1.400 anos depois.
- Só sei que Cleópatra gostava de seduzir imperadores romanos, como César e Marco Antônio. Mais não sei dizer, nem vi aqueles filmes apoteóticos...
- Cleópatra foi muito mais do que uma colecionadora de maridos ou uma mulher sedutora num filme do Cecil B. De Mile. Para além de se destacar pela sua beleza, falava vários idiomas e patrocinava as artes e as ciências. Lembre-se de que ela governava o Egito a partir de Alexandria, capital cultural da Antiguidade... Ela era filha de tios, veja você.
- Filha de tios? Pode isso?
- Cleópatra era filha de Ptolomeu Aulete e Cleópatra Trifena, que eram irmãos. Ptolomeu Aulete era pai de Cleópatra, mas seu tio, por parte de mãe; Cleópatra Trifena era sua mãe, mas também tia, por parte de pai. Filha de seus tios, portanto.
- Assim não vale!
- Vale, sim, pois ela própria se casou com dois de seus irmãos mais jovens. Um de cada vez, bem entendido.
- Uma promiscuidade familiar.
- E real.
Quando nos despedimos, eu estava contente, mas preocupado, nem sei exatamente por quê. Uma mulher culta e bonita, egiptóloga, veja só! E eu, idiota que sou, pagando o preço de não poder contribuir para o assunto e concorrendo decisivamente para a banalização dos diálogos: “muito interessante”, “os egípcios eram precoces” e “com que idade ele morreu?” Um vexame total e absoluto!
(continua)

Um comentário:

Anônimo disse...

estava procurando informações sobre cleópatra e parei aqui... esse texto está engraçado... sei tão pouco qto vc... pra mi tbm era "tutankamon"... ha.