sexta-feira, 13 de abril de 2007

RETALHOS DO QUOTIDIANO (parte 9/26)

Enganando Nova York

- Estamos enganando Nova York, foi o que eu disse a Sean Forthwhite.
- Mas você também recebeu bônus de desempenho, Carlinhos.
- Sim, mas devolvi tudo à WED. Veja aqui o recibo que me foi dado pela Tesouraria.

“Recebemos de Carlos Auvergne de Carvalho a quantia de 192 mil reais, correspondente à integral e voluntária devolução do bônus que a Western Energy Development lhe pagou como prêmio pela sua performance e desempenho no decorrer do exercício de 1998.”

Sete mil e setecentos dólares por mês, automóvel com motorista e todas as mordomias pertinentes, eis o que me custou essa atitude firme, que Forthwhite classificou de leviana e precipitada. Despedi-me de poucos, mas tive o cuidado de enviar uma cesta de flores para Dona Mirtes, a secretária leal que me assistiu durante todos esses anos.
Embora um autêntico cavaleiro da triste figura, não sou propriamente um Dom Quixote. Ou será que sou? Sei lá...
Cada um sabe o que lhe vai por dentro, pois é melhor interromper a caminhada do que seguir de cabeça baixa e com o peito desestruturado. Sei apenas que muito me orgulho das minhas cabeçadas verdadeiras, genuínas, firmes e irrevogáveis, sem sofismas nem racionalizações absolutórias. Sete e setecentos, e daí? Custo, ora essa, isso não é nenhum custo; antes um investimento altamente compensador tanto em tranqüilidade, não ter de ignorar transgressões pequenas ou grandes, quanto em conforto, nunca mais ir a nenhuma reunião de coordenação ou jantar de negócios. Eu estava livre e dali em diante poderia exatamente o que desejasse, sem dever satisfação a ninguém. Nunca mais um rabigalo!
Cecília e eu, já separados, ainda compartilhávamos a casa do Itanhangá. Nem cheguei a mencionar-lhe as minhas peripécias profissionais, o que, de resto, não teria para ela nenhuma implicação, importância ou significado. Senti, enfim, que não tinha nenhum vínculo com nada:
fosse para o bem ou para o mal, eu estava livre das pessoas físicas e jurídicas.
Decidi telefonar para Dona Mirtes, dois meses depois da minha exoneração, fornecendo-lhe o endereço do Leblon, pois alguma correspondência poderia aportar para mim na WED. Veio então a decepção maior. Fiquei sabendo que Nova York descobriu as alterações que inflaram as gratificações dos executivos. Na hora das explicações, o vice-presidente Forthwhite reportou ao Board of Directors que tudo não passou de um equívoco cometido pelo ex-empregado Carlos Auvergne de Carvalho. Tanto que o mesmo foi obrigado a devolver o bônus e a pedir demissão.
- Mas isso é uma infâmia.
- Também acho, doutor Carlos.
- E os documentos, como posso ter acesso a esses documentos?
- Não, doutor Carlos, não há documentos. Todas as explicações foram dadas a Nova York por meros telefonemas.
- Canalhas!
- Sinto muito, doutor Carlos, sinto muitíssimo.

- Tudo bem, dona Mirtes.
Sou um trouxa GG, de galocha e guarda-sol, usado para encobrir mais uma do senhor vice-presidente Forthwhite. Tudo o que eu sabia dessa trapaçaria me viera pelas inconfidências da secretária. Ninguém me acusara formalmente de coisa nenhuma e decidi não fazer nada, pois qualquer movimento levantaria poeira contra mim. No final eu seria ainda mais prejudicado, com sobras para dona Mirtes.
Tudo bem, pensei,
vou absorver mais esta.
Dom Quixote não tinha o costume de ficar no chão, curtindo as surras que lhe aplicavam. Ele lambia suas feridas, empolgava a lança e partia para uma nova aventura. Era reunir minhas forças e dedicar-me a um novo projeto, que fosse mais glorioso e a prova de picaretagem. Mas qual?
(continua)


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