segunda-feira, 30 de abril de 2007

Giordano Bruno, mártir da ciência

Por que Deus, sendo infinito e todo-poderoso, não criaria um mundo infinito, com outros sóis e outras humanidades? Eis o que costumava perguntar Giordano Bruno (1548-1600), filósofo, astrônomo e matemático italiano, antes de afirmar a sua crença de que o Sol seria apenas uma estrela no meio de uma infinidade de estrelas.
Nas suas concepções, o Universo, assim infinito, seria povoado por milhares de sistemas solares, integrados por planetas, muitos dos quais com vida inteligente.


-
Deus e o Universo são uma única e mesma coisa. Tudo é Deus, e Deus está em todas as coisas.

Giordano Bruno rejeitou a teoria geocêntrica e pelas suas idéias avançadas colocou-se até à frente da teoria heliocêntrica de Copérnico, pela qual o Universo era limitado por uma esfera de estrelas fixas, como preconizado vinte séculos antes por Aristóteles. Para ele, que deu aulas em universidades da Itália, França, Suíça e Inglaterra, as idéias de Aristóteles deveriam ser abandonadas sempre que fossem incompatíveis com a realidade observada.
Sua ambição era construir um embasamento filosófico que se coadunasse com as grandes descobertas científicas de seu tempo.
Por sua intuição extraordinária, estava séculos adiante de seu tempo e é considerado um pioneiro da filosofia moderna, tendo influenciado Descartes, Espinosa e Leibniz.
Quando o advertiam da incompatibilidade de suas idéias com o que se preconizava nas Escrituras, Giordano Bruno respondia que os textos religiosos não eram referências infalíveis ou obrigatórias, tanto que neles se omitiam completamente as Américas e seus povos, cuja existência dizia ser incompatível com o relato bíblico da Arca de Noé. Ou seja, a Biblia deveria ser observada por seus ensinamentos religiosos, não por suas declarações sobre Astronomia.
Por essa ousadia do pensamento, Giordano Bruno teve de pagar um preço elevado: foi feito prisioneiro do Santo Ofício e levado a julgamento perante o Tribunal da Inquisição. Em sua defesa Giordano Bruno apelou para a sua condição de filósofo, tal como Aristóles e Platão, cujas idéias nem sempre coincidiam com o que se continha nos textos sagrados.
O cardeal Roberto Bellarmino, consultor do Santo Ofício, propôs-lhe que se retratasse de suas idéias, para, desse modo, escapar da condenação.
Giordano Bruno declarou que não tinha nada de que retratar-se e que nem sabia de que se esperava que ele se retratasse. O resultado foi sua condenação à morte, na fogueira.
Alguns dias antes da execução Giordano Bruno teria dito aos seus carrascos:


- Essa sentença, pronunciada em nome do Deus da misericórdia, assusta mais a vocês do que a mim!

Queimado vivo, aos 52 anos de idade,
em Roma, no Campo das Flores, no ano de 1600, Giordano Bruno tornou-se um mártir do livre-pensamento. Morreu sem olhar o crucifixo colocado à sua frente para infligir-lhe uma derradeira humilhação. Com ele, entretanto, a filosofia começaria a se libertar da religião, favorecendo o nascimento da ciência moderna.

sexta-feira, 27 de abril de 2007

Canção amiga

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.

Carlos Drummond de Andrade, 1902-1987
Um Prêmio Nobel para uma tese de estudante

Desde 1905, quando Albert Einstein publicou o trabalho que atribuía o efeito fotoelétrico ao bombardeio dos quanta de luz, aceitava-se a natureza dual da luz, que é a um só tempo onda e partícula. O que determina se a luz vai se apresentar como partícula ou como onda é a experiência conduzida pelo observador: incidindo sobre um metal, a luz comporta-se como partícula, deslocando elétrons e criando o efeito fotoelétrico; incidindo contra uma dupla fenda, a luz comporta-se como onda, ao passar pelas duas fendas e criar um efeito de claro-escuro num anteparo receptor.
Louis Victor Pierre Raymond de Broglie (1892-1987) era um nobre francês que tardiamente decidiu estudar Física. Sua tese de doutorado, de 1924, tornou-se a mais famosa de todos os tempos, contribuindo decisivamente para o desenvolvimento da Mecânica Quântica, ao postular que toda a matéria (e não apenas a luz) tem um comportamento ondulatório. Todas as partículas subatômicas, mesmo as dotadas de massa (prótons, elétrons e nêutrons), têm o comportamento dual dos fótons de luz, podendo assumir alternativamente a forma de ondas ou a forma de partículas. Esta hipótese foi mais tarde comprovada experimentalmente numa experiência em que se fez incidir um feixe de raios catódicos (elétrons) numa fenda dupla, observando-se no alvo de incidência do feixe uma figura de difração, típica dos fenômenos ondulatórios.
Na época em que concluiu o seu trabalho, não havia cursos formais de doutoramento na França, e Louis de Broglie procurou o físico Paul Langevin, que, tendo dúvida sobre a validade da tese, submeteu-a à apreciação de Albert Einstein. Segundo se afirma, o comentário de Einstein (“ele ergueu a ponta do grande véu”) teria facilitado em 25 de novembro de 1924 a aprovação da tese pela banca que outorgou o doutorado a Louis de Broglie, formada por Paul Langevin, o matemático Élie Catran, o cristalógrafo Charles Victor Mauguin e o físico Jean Perrin. Há quem afirme, porém, que o comentário de Einstein foi enviado a Paul Langevin em 13 de janeiro de 1925, depois que a tese foi aprovada.
Em 1929 Louis de Broglie recebeu o Prêmio Nobel de Física, “pela sua descoberta da natureza ondulatória dos elétrons.”
Portanto, Louis de Broglie ganhou o Prêmio Nobel de Física com uma tese de estudante, ele que inicialmente freqüentara aulas de direito e era formado em Letras, História e Ciências, destinado que estava à carreira diplomática.



quinta-feira, 26 de abril de 2007

RETALHOS DO QUOTIDIANO (parte 11/26)

Cleópatra, filha dos tios

O homem moderno distingue-se pelo nível e excelência das suas informações - positivamente não é esse o meu caso. Sei apenas que preciso estudar mais, porque essa coisa de só saber Física inferioriza e dificulta a vida das pessoas. Padecer sobre os livros, devorá-los, em vez de ficar flanando, prevaricando ou malbaratando por aí.
Pensei sobre
isso quando fui apresentado a May e nos pusemos a passear pelo calçadão do Leblon. Ela era egiptóloga, eu que nem desconfiava da existência dessa atividade.
- E você, Carlinhos, qual a sua profissão?
- Engenheiro malsucedido, pois abandonei o ofício e decidi fazer um doutorado de Física. Engenharia é uma profissão corriqueira e até meio óbvia. Mas egiptóloga, que faz exatamente uma egiptóloga?
- Bem, atualmente estou envolvida num projeto internacional relacionado com o faraó Tutancâmon, do século XIV a. C., coordenado pelo Museu de Ciência de Londres. Sua tumba, descoberta em 1922, em Tebas, no Vale dos Reis, continha uma quantidade extraordinária de jóias e é considerada um dos maiores tesouros arqueológicos de todos os tempos.

- Museu de Ciência, lá em Londres?
Perguntei o que ela já me informara, nada menos edificante. Fazer o quê, dizer o quê?
Tinha até me esquecido que existiu alguém chamado Tutancâmon, e essa palavra eu não escutava havia bem uns quinze anos. E, se me lembro, o que o meu professor de História dizia era "Tutankamon", e não Tutancâmon.
- Estamos reconstituindo a verdadeira face de Tutancâmon, que não tinha os lábios grossos e o rosto triangular sugerido pela sua máscara mortuária, essa que se encontra reproduzida nos livros de História. Na verdade seus lábios eram finos, dentro de um rosto largo, que, além do mais, se caracterizava por sobrancelhas grossas e olhos pequenos.
- A reconstituição facial de uma pessoa que morreu há tanto tempo há de ser muito complicada, observei, fazendo força para não ficar calado o tempo todo.
- Morreu há 34 séculos. Posso dizer que envolve técnicas de raios X, processos e efeitos especiais e programas de computador, capazes de compatibilizar a face que se quer reconstituir com os ossos do crânio encontrados no sarcófago.
- Muito interessante.
- Suspeita-se que tenha recebido um violento golpe na cervical enquanto dormia. A ferida não lhe causou a morte de imediato, e sua agonia se prolongou durante dois meses de terrível sofrimento.
- Onde você entra, nessa história, como egiptóloga?
- Tudo que faço é colaborar com informações históricas, pois não sou habilitada nessas técnicas de reconstituição facial. Por exemplo, houve certa vez uma discussão sobre a idade com que morreu Tutancâmon, e fui chamada a dar a minha opinião.
- Com que idade ele morreu?
- Para mim morreu quando tinha 18 anos, mas esse não é um ponto completamente decidido. Subiu ao trono com nove anos, sendo conhecido como o faraó-menino.
- Os egípicios eram precoces...
- De fato. Cleópatra, igualmente, chegou ao poder com apenas 18 anos. Isso cerca de 1.400 anos depois.
- Só sei que Cleópatra gostava de seduzir imperadores romanos, como César e Marco Antônio. Mais não sei dizer, nem vi aqueles filmes apoteóticos...
- Cleópatra foi muito mais do que uma colecionadora de maridos ou uma mulher sedutora num filme do Cecil B. De Mile. Para além de se destacar pela sua beleza, falava vários idiomas e patrocinava as artes e as ciências. Lembre-se de que ela governava o Egito a partir de Alexandria, capital cultural da Antiguidade... Ela era filha de tios, veja você.
- Filha de tios? Pode isso?
- Cleópatra era filha de Ptolomeu Aulete e Cleópatra Trifena, que eram irmãos. Ptolomeu Aulete era pai de Cleópatra, mas seu tio, por parte de mãe; Cleópatra Trifena era sua mãe, mas também tia, por parte de pai. Filha de seus tios, portanto.
- Assim não vale!
- Vale, sim, pois ela própria se casou com dois de seus irmãos mais jovens. Um de cada vez, bem entendido.
- Uma promiscuidade familiar.
- E real.
Quando nos despedimos, eu estava contente, mas preocupado, nem sei exatamente por quê. Uma mulher culta e bonita, egiptóloga, veja só! E eu, idiota que sou, pagando o preço de não poder contribuir para o assunto e concorrendo decisivamente para a banalização dos diálogos: “muito interessante”, “os egípcios eram precoces” e “com que idade ele morreu?” Um vexame total e absoluto!
(continua)

quarta-feira, 25 de abril de 2007

Quatro estágios até a aceitação do novo


Primeiro estágio: Isto é um absurdo!

Segundo estágio: Isto é um ponto de vista interessante, mas equivocado...

Terceiro estágio: Isto é verdade, mas irrelevante.

Quarto estágio: Isto é o que eu sempre achei.


J. B. S. Haldane (1892 - 1964), cientista inglês.
Petróleo no mundo e no Brasil

(1) No mundo

A maior parte das reservas mundiais de petróleo concentra-se em alguns poucos pólos privilegiados. Há em todo o mundo 620 províncias sedimentares, das quais 240 têm produção de petróleo e, destas, apenas 32 contêm individualmente mais de um bilhão de barris de petróleo. Duas delas são espetaculares e contêm em conjunto cerca de 50% do petróleo descoberto a ser ainda produzido no mundo; são elas a Arábico-Iraniana (englobando Arábia Saudita, Iraque, Kwait e Irã), que contém quase 60 % das reservas mundiais de petróleo líquido, e a Sibéria Oriental, com aproximadamente 20% do total mundial das reservas de petróleo gasoso.

(2) No Brasil

Em 50 anos de exploração de petróleo no Brasil, foram feitas mais de 300 descobertas comerciais de petróleo; em terra, as descobertas foram modestas e ocorreram no Recôncavo Baiano, Sergipe-Alagoas, Espírito Santo, Rio Grande do Norte, Ceará e Amazonas; no mar, onde se verificaram as principais descobertas brasileiras, destacam-se as costas de Sergipe, Espírito Santo, Ceará, Rio Grande do Norte e, principalmente, as águas profundas e muito profundas da Bacia de Campos e de toda a extensão da Bacia de Santos, que vai desde Cabo Frio até Santa Catarina. A produção nacional de petróleo líquido (óleo) situa-se atualmente no entorno de 1,8 milhão de barris por dia. Somando-se a esta a produção de gás natural, o total nacional alcança 2,1 milhões de barris de óleo equivalente; somando-se também o que a Petrobras produz no exterior( pois atua em Angola, Argentina, Bolívia, Colômbia, Cuba, Equador, Estados Unidos, Líbia, Nigéria, Peru, Reino Unido e Trinidad e Tobago), chega-se à produção total brasileira : 2,3 milhões de barris de óleo equivalente por dia, garantindo a auto-suficiência brasileira de petróleo líquido.

terça-feira, 24 de abril de 2007

Paragem

Só,
Com os meus bois,
Os meus bois que mugem e comem o chão,
Os meus bois parados,
De olhos parados,
Chorando,
Olhando...
O boi da minha solidão,
O boi da minha tristeza,
O boi do meu cansaço,
O boi da minha humilhação.
E esta calma, esta canga, esta obediência.

Dante Milano (1899-1991)
O Gênese, segundo George Gamow

George Gamow (1904-1968), físico russo nascido na cidade de Odessa e professor da Universidade George Washington, foi um dos formuladores da teoria do Big Bang, tendo sido autor da hipótese (1946) de que o Universo, no seu início abrasador, era formado por uma colossal sopa de nêutrons, à qual deu o nome de "ylem". A fusão desses nêutrons (nucleossíntese) no Big Bang deu origem aos átomos mais leves (hidrogênio, hélio e lítio). Notou-se, porém, a ausência do elemento de peso cinco nessa fase inicial, o que inviabilizava a continuação da nucleossíntese para a obtenção de elementos mais pesados: um obstáculo que foi posteriormente contornado por Fred Hoyle (1915-2001), físico inglês da Universidade de Cambridge, com a teoria de que a nucleossíntese teve prosseguimento nas estrelas. Em outra oportunidade (1948) Gamow postulou a existência da radiação cósmica de fundo, um ruído da explosão primordial que acompanha o Universo na sua expansão eternidade adentro, que existiria atualmente no espectro das radiações de microondas, à temperatura, segundo seus cálculos, de 5 graus absolutos. Em 1965 Penzias e Wilson, com sua gigantesca antena de Crawford Hill, Nova Jersey, detectaram por acaso a radiação cósmica de fundo, à temperatura precisa de 2,7 graus absolutos.
Gamow, que era espirituoso e brincalhão, foi o autor de uma versão do Gênese, incluída na sua autobiografia, My Word Line:


"No princípio Deus criou a radiação e o ylem. E o ylem era sem forma ou número, e os núcleons corriam loucamente sobre a face da profundidade abissal.

E Deus disse: "Que haja a massa dois." E houve a massa dois. E Deus viu o deutério, e o deutério era bom.

E Deus disse: "Que haja a massa três." E houve a massa três. E Deus viu o trítio, e o trítio era bom.

E Deus continuou chamando número após número até chegar aos elementos transurânicos. E então, contemplando a sua obra, Deus viu que ela não era boa. No entusiasmo da contagem deixara de criar a massa cinco, e, se assim ficasse, nenhum elemento mais pesado poderia ter sido formado.

Deus ficou muito desapontado e quis contrair o Universo novamente e começar tudo de novo. Mas isso seria simples demais. E então, sendo todo-poderoso, Deus quis corrigir aquele engano da forma mais impossível.

E Deus disse: "Que haja o Hoyle." E houve o Hoyle. E Deus, olhando para Hoyle, ordenou-lhe que produzisse elementos pesados do jeito que lhe aprouvesse.

E Hoyle decidiu fabricar elementos pesados nas estrelas e espalhá-los mediante explosões de supernovas. Ele tinha, porém, de obter as mesmas quantidades que teriam resultado da nucleossíntese do ylem, se Deus não tivesse esquecido de chamar a massa cinco.

E assim, com a ajuda de Deus, Hoyle fez os elementos desse modo, mas era tão complicado que, hoje em dia, nem Hoyle, nem Deus, nem ninguém mais pode determinar exatamente como foi feito. Amém."


segunda-feira, 23 de abril de 2007

Amor Feinho

Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem e você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero amor feinho.

Adélia Prado, Bagagem
Hipácia de Alexandria, mártir da ciência

Hipácia (370- 415), filha do professor Teon, da Universidade de Alexandria, foi educada por seu pai para ser uma mulher perfeita.Tornou-se filósofa, matemática e astronôma, para além de ser considerada a maior oradora de seu tempo. A ela atribui-se a invenção do astrolábio e do planisfério, que são instrumentos usados na Astronomia, e de um hidrômetro, usado na Física. Seu talento para ensinar Astronomia, Filosofia e Matemática atraía admiradores de todo o império romano, tanto pagãos como cristãos. Consta que era constantemente procurada por matemáticos de todo o mundo para encontrar a solução de problemas que não conseguiam resolver. Obcecada pela Matemática e pelo processo de demonstração lógica, exercia grande influência nos meios filosóficos alexandrinos, tentando unificar o pensamento matemático de Diofante com o neoplatonismo de Plotino.
- Pensar errado é melhor do que não pensar, afirmava Hipácia para seus alunos.
Sua devoção à ciência foi o motivo de sua trágica morte, pois Cirilo, o patriarca de Alexandria, começou a perseguir os seguidores de Platão, aos quais chamava de “hereges”, e colocou Hipácia no topo da lista de pessoas indesejáveis. Hipácia representava uma ameaça por defender a Ciência e o Neoplatonismo, para além de ser mulher, e muito bonita, o que exacerbava todos os ânimos e aumentava a intolerância contra ela. Numa época em que se procedia à marginalização das mulheres nas funções do poder, uma pagã assumia o símbolo da sabedoria e concorria com as autoridades religiosas da sua cidade. Como admitir que uma mulher pregasse em suas aulas que o Universo era regido por leis matemáticas? Insuflados pelo patriarca, fanáticos tresloucados investiram contra ela, no ano de 415, num dos episódios mais lamentáveis da história da humanidade, que foi assim descrito pelo historiador inglês Edward Gibbon:

"Num dia fatal, na estação sagrada de Cuaresma, Hipácia foi arrancada de sua carruagem, despida e arrastada nua para a igreja, onde foi desumanamente massacrada pelas mãos de Pedro, o Leitor, e sua tropa de fanáticos selvagens e impiedosos. A carne foi esfolada de seus ossos com ostras afiadas e seus membros, ainda palpitantes, foram atirados às chamas".

Acredita-se que a obra de Hipácia tenha incluído importantes estudos sobre a Aritmética de Diofante, as Cônicas de Apolônio e o Almagesto. Nada, porém, chegou até nós, talvez como conseqüência da destruição da biblioteca de Alexandria, no ano 642, pelos árabes do General Amr Ibn Al As, que conquistaram o Egito sob o comando do Califa Omar.
A partir do episódio de Hipácia, Alexandria perderia o seu esplendor e o Ocidente iria mergulhar no obscurantismo e nele permanecer durante vários séculos.

sexta-feira, 20 de abril de 2007


Intimidade com o transitório


"Nasci no Rio de Janeiro, três meses depois da morte do meu pai, e perdi minha mãe antes dos três anos. Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais, mas ao mesmo tempo me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno. Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção ou sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento da minha personalidade."

Cecília Meireles (1901-1964)




RETALHOS DO QUOTIDIANO (parte 10/26)

Dom Quixote

Eu estava como no dia em que me apresentara na WED, havia oito anos: desempregado e solteiro, sem nenhum lado afetivo nem profissional. Com a importante diferença, a favor, de que dessa vez eu tinha dinheiro para comprar um apartamento no Leblon e podia viver sem trabalhar durante dois ou três anos.
Decidi passar uma semana num hotel de Petrópolis, com a disposição de ficar olhando para o teto e pensar sobre o que fazer da minha vida.
Foi lá, sentindo frio e a solidão dos indecisos no meio de um Universo de entropia crescente e cheio de gente decidida, que me lembrei da palestra sobre Física moderna, aquela a que assisti no Congresso Mundial de Buenos Aires. Em 27 de abril de 1900, o físico irlandês William Thomson, que ostentava o título de Lord Kelvin, conhecido de todos por haver introduzido o conceito de temperatura absoluta, comunicou às autoridades britânicas que a Física já desvendara tudo de importante que havia no Universo. Tínhamos um conjunto de leis, a mecânica clássica, e um método, a observação, que explicavam totalmente o Universo, categorizado como realidade objetiva.
Ele teve a percepção da certeza:
aos físicos do futuro caberia a só e enfadonha tarefa de descobrir os pormenores complementares de uma estrutura já conhecida.
Lord Kelvin morreu poucos anos depois, sem conhecer a extensão do seu equívoco. Com sua relatividade especial, já em 1905, Einstein provou que, em termos de espaço e tempo, tudo depende do referencial considerado, o que coloca em cheque as nossas observações, e, com a relatividade geral, em 1915, reformou a teoria newtoniana, cuja lei da gravitação apenas quantifica corretamente o que Newton percebera como atração, inexistente, entre corpos materiais. Baqueavam, desse modo, o poder absoluto das nossas observações e o dogma da mecânica clássica.
E não era tudo.
Max Planck descobriu que a energia existe em forma de pacotes; o próprio Einstein, no seu anno mirabile de 1905, reconheceu a natureza dual da luz, que é, ao mesmo tempo, onda e partícula, sem saber que estava pavimentando o caminho da mecânica quântica, a qual se rege pela indeterminação e pela complementaridade. Ernest Rutherford revelou que o átomo tem um núcleo cheio de prótons, carregados positivamente; Werner Heisenberg constatou que as partículas subatômicas não podem ter momento e posição definidos simultaneamente, ferindo a reputação da nossa capacidade de observação; Niels Bohr percebeu a coexistência de duas descrições diferentes para um mesmo fenômeno físico, que David Bohm mais tarde chamou de ordem implicada e ordem explicada; Richard Feynman juntou relatividade e mecânica quântica; e Murray Gell -Mann descobriu os “quarks”, que se unem para formar núcleos, prótons e mésons.
A conseqüência de pensar sobre isso foi que voltei do retiro de Petrópolis disposto a estudar Física, eu que sou um admirador do espetáculo soberano da Natureza e tenho grande aptidão para ser professor, o que descobri, por acaso e despretensiosamente, no congresso de Buenos Aires.
Avante, pois, mui leal e decidido Dom Quixote de la Mancha!
(continua)

quinta-feira, 19 de abril de 2007

No itinerário do Recife

Na avenida Guararapes,
O Recife vai marchando.
O bairro de Santo Antônio
Tanto se foi transformando
Que, agora, às cinco da tarde,
Mais se assemelha a um festim.

O refrão tem sido assim:
São trinta copos de chope,
São trinta homens
sentados,
Trezentos desejos presos,
Trinta mil sonhos frustrados.


Carlos Pena Filho (1928-1960)

Uma aula de Português muito pretensiosa (três partes)

Uma Visão Holística da Análise Sintática (final)

A ação a ser expressa requer, como vimos, uma PALAVRA, que não existe, sendo possível construir um período que lhe seja equivalente a partir de um verbo, acrescentando a este, e conforme sua incompletude, um ou mais componentes sintáticos. Os componentes sintáticos de (2) a (5), simples ou oracionais, somam-se ao verbo, que é o componente sintático (1), para formar o período e alcançar a completude desejada.
Portanto, o período, formado por um verbo acrescido de um ou mais componentes sintáticos, equivale à PALAVRA necessária para exprimir a ação. O verbo cuja completude se busca no período configura e preside a oração principal. Os demais verbos que fazem parte do período, se alguns, pertencem a componentes sintáticos oracionais, chamados de orações subordinadas, que equivalem a substantivos, adjetivos ou advérbios.

Ação = PALAVRA = Período = Componente sintático (1) + componentes sintáticos (2) a (5) necessários à completude do componente sintático (1)

Veja, por exemplo, o seguinte enunciado:

"O Brasil espera ansiosamente que cada um cumpra o seu dever."

Nenhuma PALAVRA seria capaz da façanha de explicar detalhadamente a ação que se expressa nesse enunciado. Há, porém, o verbo "esperar", incompleto por subjetivação e objetivação. Partindo dessa palavra, "esperar", com adicionar-lhe os componentes sintáticos adequados, construímos um período, que corresponde à PALAVRA, ou seja, que permite expressar o que se pretende.


Resumo

Verbos "completos" não existem; como consequência, a PALAVRA também não existe; daí a necessidade de recorrer às outras categorias gramaticais, substantivos, adjetivos e advérbios, para alcançar a completude a partir de um verbo. Às vezes, o substantivo ou o adjetivo ou o advérbio, necessários às funções de completude, é que não existem, sendo necessário recorrer, nesses casos, às orações subordinadas substantivas, adjetivas ou adverbiais, respectivamente. Os cinco componentes sintáticos considerados neste artigo, simples e oracionais, um dos quais necessariamente um verbo, permitem construir basicamente todos os enunciados que exprimem a ação a ser expressa pelo orador.
Será necessário, em adição, que você estude as noções de verbos de ligação (que são os verbos que exprimem estado, em vez de ação), aposto e vocativo, na sua gramática de 873 páginas. Essas noções são simples e podem ser aprendidas sem nenhuma dificuldade. As gramáticas de 873 páginas servem, enfim, para estudar regras de concordâncias, flexões verbais, graus dos adjetivos e dos substantivos, figuras de linguagem, louçanias etc, tudo para entronização da chamada "norma culta", que é necessário conhecer, sem dúvida, sem que essa bagagem, entretanto, integre a essência sintática do idioma.

quarta-feira, 18 de abril de 2007

Leo Szilard

Leo Szilard (1898-1964), físico húngaro que se celebrizou por seus importantes estudos sobre reações nucleares em cadeia, foi o redator da carta que Albert Einstein enviou em 2 de agosto de 1939 a Franklin Delano Roosevelt, recomendando a construção da bomba atômica pelos Estados Unidos.

- Vou escrever um diário com a única finalidade de manter Deus informado sobre os fatos, disse uma vez Leo Szilard para seu amigo Hans Bethe.

- Mas Deus não conhece os fatos?, perguntou-lhe o amigo, admirado.
- Conhece sim, respondeu Szilard, mas não a minha versão dos fatos.


Uma aula de Português muito pretensiosa (três partes)


Uma Visão Holística da Análise Sintática (segunda parte)


Além do verbo, que constitui o núcleo da PALAVRA, há os componentes sintáticos que servem à sua completude: substantivos, adjetivos, advérbios e orações subordinadas, estas para desempenhar a função de substantivos, adjetivos ou advérbios, necessários, mas inexistentes.

Componente sintático (2): substantivos

Substantivos são as palavras que exercem as funções, mencionadas na primeira parte, de sujeito e de objetos. Exemplo: "O jornaleiro deu milho aos pombos".

Componente sintático (3): adjetivos

Adjetivos - são as palavras que servem para qualificar os substantivos, estes nas respectivas funções mencionadas na primeira parte. Exemplo: "O professor exigente comeu a goiaba envenenada".

Componente sintático (4) : advérbios

Advérbios - são as palavras que servem para exprimir as circunstâncias, conforme já mencionado. Exemplo: "Trovejou ontem."

Componente sintático (5): componentes oracionais

Componentes oracionais são as chamadas orações subordinadas, que servem para exercer as funções, antes apresentadas, de substantivos, adjetivos e advérbios, quando estes ou não existem formalmente ou, se existentes, são insuficientes para expressar o que se deseja.

As orações subordinadas fazem o papel de substantivos, adjetivos ou advérbios, necessários, mas inexistentes.

(a) Orações subordinadas substantivas - são as que desempenham o papel de substantivo, na sua função de sujeito ou de objeto. Exemplo: "Percebi que eles esqueceram a minha recomendação". O autor da frase não encontrou um substantivo que expressasse o que ele quis dizer com a oração subordinada substantiva "que eles esqueceram a minha recomendação." Poderia ter usado, por exemplo, uma alternativa como "percebi o esquecimento", o que seria insuficiente para exprimir o que foi dito, ou, alternativamente, "percebi o esquecimento deles a respeito da minha recomendação", o que, sobre arruinar o estilo, não traria nenhuma economia de palavras. "Que eles esqueceram a minha recomendação" é uma oração que o orador pôs no lugar de um substantivo necessário ao seu discurso, mas inexistente.

(b) Orações subordinadas adjetivas - são as orações que desempenham o papel de adjetivo, na sua função de qualificar o substantivo. Exemplo: "O professor que nunca ri mudou-se para a Tijuca." Aqui o orador não encontrou um adjetivo que expressasse o que ele quis enunciar com a oração subordinada adjetiva "que nunca ri". Poderia ter dito professor "carrancudo" ou professor "triste", expressões que, entretanto, não traduzem o que foi dito e até diferem entre si. "Que nunca ri" é uma oração que está no lugar de um adjetivo inexistente, mas necessário ao discurso do orador.

(c) Orações subordinadas adverbiais - são as que desempenham o papel de advérbios, na sua função de exprimir as circunstâncias. Exemplo: "Chovia quando despertei." Ao autor deste enunciado não ocorreu nenhum advérbio que expressasse o que ele quis informar com a oração subordinada adverbial "quando despertei". Poderia, alternativamente, ter dito "chovia cedinho" ou "chovia pela manhã"? Sim, se ele tivesse entendido que uma dessas alternativas, caso lhe ocorresse, era equivalente ao que ele enunciou. Não foi o caso, e ele se valeu de uma oração subordinada adverbial, no caso, temporal. "Quando despertei" é uma oração criada pelo orador para ocupar o lugar de um advérbio necessário, que, entretanto, não existe ou não lhe ocorreu.

(continua)


terça-feira, 17 de abril de 2007

Anibal Machado (1884-1964)

Irmão de Cristiano Machado, político derrotado por Getúlio Vargas nas eleições presidenciais de 1950, e pai de Maria Clara Machado, escritora e teatróloga, Anibal Monteiro Machado foi um importante escritor mineiro, autor do romance "João Ternura" e dos contos "Viagem aos Seios de Duília" e "A Morte da Porta-Estandarte". A respeito de "João Ternura", trata-se de obra literária iniciada em 1926 e concluída em 1964 - quase 40 anos de gestação.
Aníbal Machado foi o autor do primeiro gol da história do Atlético Mineiro, no dia 21 de março de 1909, no jogo Atlético 3X0 Minas Sport Clube, no estádio da rua dos Guajajaras, em Belo Horizonte.

Uma aula de Português muito pretensiosa (três partes)

Coriolano Zimber, o mais pretensioso professor de Português de Barro Verde, declarou certa vez que poderia ensinar os fundamentos da análise sintática a qualquer pessoa, independentemente de conhecimentos e qualificações prévias, em uma aula de 50 minutos.
Zimber publicou um artigo no Correio de Barro Verde, aqui apresentado em três partes.

Uma Visão Holística da Análise Sintática (primeira parte)

Ignore por enquanto a sua gramática de 873 páginas e passe a raciocinar comigo.
Veja, com efeito, que para exprimir uma ação bastaria ao orador enunciar uma palavra que tivesse sentido completo, a qual, doravante neste artigo, será designada como a PALAVRA. A PALAVRA, entretanto, não existe. Nem por isso o orador vai ficar calado, podendo usar o recurso de obter um enunciado equivalente à PALAVRA, com adicionar a um verbo as palavras que garantam a completude desejada. As palavras que se adicionam a um verbo são substantivos, adjetivos e advérbios, ou orações que lhes são equivalentes, formando o período, que representa a PALAVRA, ou seja, a ação a ser expressa.
Não há, de fato, verbos completos, pois todos têm um maior ou menor grau de incompletude; por isso a PALAVRA não existe, conforme mencionamos anteriormente. A missão do orador é construir a completude do verbo; ou seja, os verbos à disposição do orador no idioma considerado servem como núcleo do período equivalente à PALAVRA.
Desse modo, o verbo será considerado neste artigo como o componente sintático numero (1). Os outros componentes sintáticos, de (2) a (5), são os substantivos, adjetivos, advérbios e os componentes oracionais.

Componente sintático (1): Verbos, que são o núcleo da PALAVRA e podem ser de três tipos: verbos quase completos; verbos incompletos por subjetivação; verbos incompletos por subjetivação e objetivação. A incompletude do verbo determina o número de componentes sintáticos necessários ao período equivalente à PALAVRA.

(a) Verbos quase completos: são os que dispensam sujeito e objetos, como "anoitecer"e "trovejar". Não são completos por não exprimirem as circunstâncias da ação, donde a necessidade de acrescentar-lhes um advérbio: " Trovejou muito." e "Chove torrencialmente." Verbos quase completos são os verbos cuja completude exige apenas um advérbio, para exprimir as circunstâncias.

(b) Verbos incompletos por subjetivação, como "nascer"e "crescer". São os que, para sua completude, além do advérbio, necessitam de sujeito, uma função exercida por um substantivo. Exemplo: "Faleceu." Falta, no caso, indicar quem faleceu (o menino) e as circunstâncias (subitamente): "O menino faleceu subitamente".Verbos incompletos por subjetivação são os verbos incompletos cuja completude exige um substantivo, como sujeito, e um advérbio, para exprimir as circunstâncias.

(c) Verbos incompletos por subjetivação e objetivação, como "esperar", "precisar" e "comprar". São os que, para sua completude, além de sujeito e de advérbio, necessitam também de objeto direto. Ou de objeto indireto. Ou de ambos. São também os substantivos que exercem as funções de objeto direto e indireto. Exemplos: "João esperou o trem pacientemente.", "O professor precisa de você agora." e "A mulher comprou um presente para a filha às 17 horas." Verbos incompletos por subjetivação e objetivação são os verbos incompletos cuja completude exige substantivos como sujeitos e substantivos como objetos diretos, objetos indiretos ou ambos, para além dos advérbios, que exprimem as circunstâncias.

(continua)

segunda-feira, 16 de abril de 2007

DEMÔNIO DE LAPLACE

Pierre Simon de Laplace(1749-1827) foi um célebre matemático e astrônomo francês que se notabilizou por seus estudos sobre Equação Diferencial, Transformada de Laplace e Equação de Laplace, além de ter dado uma decisiva contribuição para o cálculo das probabilidades.
Juntamente com Joseph Lagrange, Leonhard Euler, Carl Gauss e outros matemáticos, Laplace muito contribuiu para o cálculo das órbitas planetárias e das posições dos astros. Entusiasmado com o que se obteve com a mecânica clássica, Laplace chegou a imaginar que o futuro poderia estar ao alcance das máquinas, conforme se depreende do seguinte texto, publicado no seu Ensaio Filosófico sobre as Probabilidades, de 1814:

“Devemos encarar o estado presente do Universo como o efeito do seu estado anterior e como a causa do estado que o sucederá. Uma inteligência que conhecesse, em dado instante, todas as forças que agissem sobre a Natureza, bem como as posições respectivas dos seres que compõem o Universo, e que fosse capacitada para submeter esses dados à análise, englobaria no mesmo processo os movimentos de todos os corpos existentes; para essa inteligência, nada seria incerto e o futuro, como o passado, estaria presente diante dos seus olhos.”

- E Deus, onde entra Deus nessa teoria?, perguntou-lhe Napoleão Bonaparte.
- Não preciso dessa hipótese, respondeu Laplace pretensiosamente.

A inteligência referida nesse texto é conhecida nos meios científicos como o Demônio de Laplace, e muitos o correlacionam com os supercomputadores. O Demônio de Laplace era , pois, onisciente e impotente, capaz de prever o futuro, mas sem poder nele intervir, já que todos os acontecimentos estariam pré-determinados. O Demônio de Laplace configurou uma crença exacerbada no determinismo, com relações de causas e efeitos consideradas diretas e exatas; a idéia entretanto não prosperou, sequer no âmbito da ficção científica, depois que a teoria da relatividade destruiu a premissa de espaço e tempo absolutos e a física quântica, com o princípio da indeterminação, vedou a possibilidade de conhecer com precisão a velocidade e a posição de um ponto no mundo subatômico, onde desabrocham, ao acaso, nuvens de probabilidades e tempestades algébricas.
Porque o mundo não é determinístico, mas quântico.

sábado, 14 de abril de 2007

ESTÂNCIAS

(paráfrase de "Estâncias", de Fagundes Varela)


O que mais quero em ti são os teus olhos,
teus meigos olhos, belos e tristonhos;
e de seu brilho, de fulgor tamanho,
raios de sol inundam os meus sonhos...

O que mais quero em ti são os teus lábios,
em delicada forma revelados;
neles terei se, enfim, puder beijá-los
a remissão de todos meus pecados!

Amo as lindas covinhas do teu rosto
que nem a seda imita a maciez;
a pele aveludada, o traço nobre
como escultor jamais pensou ou fez!

Encanta-me, também, esse teu colo
que o mármore mais puro não imita;
coisa mais linda sei que não existe,
nem mais perfeita existe ou tão bonita!

O que mais quero em ti são os teus seios,
cujo perfume embriaga e me alucina;
são jóias raras, no teu corpo lindo,
depositadas pela mão divina!

Essa alminha, que tens, também adoro,
pois és, do lírio, o espelho mais fiel;
nada mais puro eu encontrei na terra,
nem mais bonito encontrarei no Céu!

Eu amo em ti a marca da bondade
que, nos teus gestos, posso vislumbrar;
no teu sorriso nobre, em teus acenos,
estrelas do meu céu, a cintilar!

O que fascina, em ti, é esse jeitinho
de não mentir, fingindo que me queres;
de acreditar no amor, dele descrendo,
como é comum entre as mulheres...

É bem fácil te amar, pois és perfeita
inspiração e Musa preferida;
difícil é, depois de conhecer-te,
outra mulher querer e amar em vida!

Mas este amor, deveras impossível,
ao tolo coração sempre maltrata:
doce tortura que ilumina a vida,
lento veneno que corrói e mata!

Se outra vida existir, talvez eu possa
transformar o meu sonho em realidade,
unir-me a ti e finalmente ter
o teu amor por toda a Eternidade...

Marcos Coutinho Loures, poeta mineiro

sexta-feira, 13 de abril de 2007

SONETO DA CONTRIÇÃO


Eu te amo, Maria, te amo tanto

que o meu peito me dói como em doença

e quanto mais me seja a dor intensa

mais cresce na minha alma teu encanto.


Como a criança que vagueia o canto

ante o mistério da amplidão suspensa

coração é um vago de acalanto

berçando versos de saudade imensa.


Não é maior o coração que a alma

nem melhor a presença que a saudade

te amar é divino, e sentir calma…


E é uma calma tão feita de humildade

que tão mais te soubesse pertencida

menos seria eterno em tua vida.



Vinícius de Moraes
(1913-1980)

RETALHOS DO QUOTIDIANO (parte 9/26)

Enganando Nova York

- Estamos enganando Nova York, foi o que eu disse a Sean Forthwhite.
- Mas você também recebeu bônus de desempenho, Carlinhos.
- Sim, mas devolvi tudo à WED. Veja aqui o recibo que me foi dado pela Tesouraria.

“Recebemos de Carlos Auvergne de Carvalho a quantia de 192 mil reais, correspondente à integral e voluntária devolução do bônus que a Western Energy Development lhe pagou como prêmio pela sua performance e desempenho no decorrer do exercício de 1998.”

Sete mil e setecentos dólares por mês, automóvel com motorista e todas as mordomias pertinentes, eis o que me custou essa atitude firme, que Forthwhite classificou de leviana e precipitada. Despedi-me de poucos, mas tive o cuidado de enviar uma cesta de flores para Dona Mirtes, a secretária leal que me assistiu durante todos esses anos.
Embora um autêntico cavaleiro da triste figura, não sou propriamente um Dom Quixote. Ou será que sou? Sei lá...
Cada um sabe o que lhe vai por dentro, pois é melhor interromper a caminhada do que seguir de cabeça baixa e com o peito desestruturado. Sei apenas que muito me orgulho das minhas cabeçadas verdadeiras, genuínas, firmes e irrevogáveis, sem sofismas nem racionalizações absolutórias. Sete e setecentos, e daí? Custo, ora essa, isso não é nenhum custo; antes um investimento altamente compensador tanto em tranqüilidade, não ter de ignorar transgressões pequenas ou grandes, quanto em conforto, nunca mais ir a nenhuma reunião de coordenação ou jantar de negócios. Eu estava livre e dali em diante poderia exatamente o que desejasse, sem dever satisfação a ninguém. Nunca mais um rabigalo!
Cecília e eu, já separados, ainda compartilhávamos a casa do Itanhangá. Nem cheguei a mencionar-lhe as minhas peripécias profissionais, o que, de resto, não teria para ela nenhuma implicação, importância ou significado. Senti, enfim, que não tinha nenhum vínculo com nada:
fosse para o bem ou para o mal, eu estava livre das pessoas físicas e jurídicas.
Decidi telefonar para Dona Mirtes, dois meses depois da minha exoneração, fornecendo-lhe o endereço do Leblon, pois alguma correspondência poderia aportar para mim na WED. Veio então a decepção maior. Fiquei sabendo que Nova York descobriu as alterações que inflaram as gratificações dos executivos. Na hora das explicações, o vice-presidente Forthwhite reportou ao Board of Directors que tudo não passou de um equívoco cometido pelo ex-empregado Carlos Auvergne de Carvalho. Tanto que o mesmo foi obrigado a devolver o bônus e a pedir demissão.
- Mas isso é uma infâmia.
- Também acho, doutor Carlos.
- E os documentos, como posso ter acesso a esses documentos?
- Não, doutor Carlos, não há documentos. Todas as explicações foram dadas a Nova York por meros telefonemas.
- Canalhas!
- Sinto muito, doutor Carlos, sinto muitíssimo.

- Tudo bem, dona Mirtes.
Sou um trouxa GG, de galocha e guarda-sol, usado para encobrir mais uma do senhor vice-presidente Forthwhite. Tudo o que eu sabia dessa trapaçaria me viera pelas inconfidências da secretária. Ninguém me acusara formalmente de coisa nenhuma e decidi não fazer nada, pois qualquer movimento levantaria poeira contra mim. No final eu seria ainda mais prejudicado, com sobras para dona Mirtes.
Tudo bem, pensei,
vou absorver mais esta.
Dom Quixote não tinha o costume de ficar no chão, curtindo as surras que lhe aplicavam. Ele lambia suas feridas, empolgava a lança e partia para uma nova aventura. Era reunir minhas forças e dedicar-me a um novo projeto, que fosse mais glorioso e a prova de picaretagem. Mas qual?
(continua)


quinta-feira, 12 de abril de 2007

Controvérsia sobre Shakespeare(em três partes)


Controvérsia sobre Shakespeare (final)

A obra shakesperiana utiliza um vocabulário que se estima alcançar 21 mil palavras (alguns chegam a falar em 25 mil palavras), maior do que a de qualquer outro escritor inglês; Milton, por exemplo, construiu toda a sua obra com 7 mil palavras, ao passo que um inglês razoavelmente culto usa entre 3 mil e 4 mil palavras. Daí o fato de alguns Heréticos, chamados de Grupistas, defenderem que há muitas mãos, mentes e vocabulários na obra shakesperiana, cuja autoria haveria de ser multicompartilhada.
Francis Bacon teria escrito pelo menos os Sonetos, Rapto de Lucrécia, Vênus e Adônis e Trabalhos de Amor Perdido, não lhe faltando, para esta última obra, sobejos conhecimentos sobre a corte de Navarra, o esporte da falconaria, os constructos legais e o jargão de Cambridge.
William Stanley, o Conde de Derby, afirmam outros, teria escrito a Tempestade, pois era versado em filosofia mística e rosa-cruz, estava integrado à tradição esotérica que estabeleceu as bases do Renascimento, conhecia profundamente a República, de Platão, e, por força de suas atribuições administrativas, era familiarizado com Calf of Man, a ilha perdida na imensidão do mar da Irlanda, que se supõe ser o local que inspirou a obra.
Segundo Sigmund Freud, que via desabafos e confissões autorais nas tramas shakespearianas, o Conde de Oxford, ou seja, Edward de Vere, escreveu o Hamlet, tratando-se de um nobre que, como Hamlet, perdeu o pai muito cedo, viu a mãe recasar-se sem aturar nojo nenhum, conheceu muito bem a Dinamarca e, a exemplo de Hamlet, matou um criado quase por acidente. Além do mais, teve três filhas, fato que, para Freud, habilita-o para autor do Rei Lear.
Outro escritor preferido dos Heréticos é Christopher Marlowe, que teria simulado a própria morte, para enganar os inimigos, escondendo-se sob o nome de Shakespeare. A autoria shakespeariana de Marlowe teria sido comprovada por Thomas Mendenhall, presidente da Associação Americana para o Progresso da Ciência. Para Mendenhall os escritores da língua inglesa tendem a apresentar textos com o mesmo número de palavras de duas letras, de três letras, de quatro letras etc, por mil palavras escritas. Cada escritor tem o seu padrão, pessoal e exclusivo, de freqüência de palavras com determinado número de letras. Chamado a usar seu método para comparar textos de Bacon e Shakespeare, Mendenhall descartou que tivessem sido escritos pela mesma pessoa, pois Bacon usava mais palavras de duas letras, de três letras e mais de sete letras do que Shakespeare, e menos palavras de quatro, de cinco e de seis letras. Mendenhall decidiu então usar o seu método para comparar textos de Shakespeare e Marlowe e obteve um resultado surpreendente, pois, segundo ele, os testes indicaram que se tratava de textos produzidos pela mesma pessoa. Mendenhall publicou seus gráficos e conclusões na revista “The Popular Science Monthly”, de dezembro de 1901, como parte do artigo “A Mechanical Solution to a Literary Problem”. Marlowe, afirmam os Heréticos ditos Marlowianos, escreveu A Comédia dos Erros, Tito Andrônico, Romeu e Julieta, Ricardo II, Ricardo III e Henrique VI, ele que estudou seis anos e meio em Cambridge .
Charles Dickens, grande escritor inglês do Século XIX, declarou certa vez: “A vida de Shakespeare é um fino mistério, e todo dia tremo de medo de que venha a ser esclarecido."
Henry James (1843-1916),
autor de alguns dos romances, contos e críticas literárias mais importantes da literatura de língua inglesa, foi mais contundente que Dickens e afirmou: "Suspeito que o divino William- o homem de Stratford- é a maior e mais bem sucedida fraude imposta a este mundo desatento."
A autoria de Shakespeare está longe de ser resolvida, por absoluta falta de provas e de argumentos conclusivos, com uma pletora de autores e obras a favor e outra contra William Shakespeare. Uma controvérsia empedernida, mas apaixonante. Citando Dumas, sem mencionar se pai ou se filho, disse James Joyce no Ulisses: "Depois de Deus, quem mais criou foi Shakespeare".
Tenha ou não nascido em Stratford-upon-Avon.

quarta-feira, 11 de abril de 2007

Controvérsia sobre Shakespeare(em três partes)

Controvérsia sobre Shakespeare (segunda parte)

Estabelecida a controvérsia, os que se alinham com a autoria de William Shakespeare são chamados de Estratfordianos ou Ortodoxos, e os que lhe negam essa condição são os Heréticos, entre os quais incluem-se Walt Whitman, Charles Dickens, Lord Palmerston, Otto von Bismarck, Henry James, Mark Twain, Sigmund Freud, John Galsworthy, William McFee, Charles Chaplin, Paul Douglas, Hugh Trevor-Roper, Benjamin Disraeli e Charles de Gaulle.
Os heréticos, longe de serem unânimes, dividem-se entre os que atribuem a obra a Francis Bacon, Edward de Vere, William Stanley, Roger Manners, Walter Railegh, Christopher Marlowe, Anthony Bacon, Michael Angelo Florio, Robert Devereux, John Williams ou a própria Rainha Elizabeth I, para além de mais duas dezenas de candidatos, incluindo-se Anne Hathaway
, a mulher de Shakespeare.
A abundância de nomes na lista de prováveis autores decorre do fato de que existem mais argumentos contra William Shakespeare do que provas favorecendo algum dos nomes relacionados. São centenas de indícios, inferências, suposições, testes científicos, acrósticos, criptografias, anagramas e contradições; a total ausência do nome de Shakespeare nos registros autorais da sua época; o fato de Shakespeare não ter viajado mundo afora, duvidando-se por isso de que conhecesse pessoalmente as pinturas descritas ao longo da obra; de não ter conhecido as cidades italianas que foram palco de 14 peças; ou a Dinamarca, de Hamlet; ou a corte de Navarra, na época pertencente à França; ou mesmo Calf of Man, nas costas da Irlanda, que se supõe ser
a ilha da Tempestade.
Na década de 1960 a questão da autoria de Shakespeare foi levada a uma corte de justiça, na Inglaterra, tendo o presidente do tribunal, Justice Wilberforce,
considerado o material a favor do " homem de Stratford como insuficiente" e que "há um número grande de dificuldades para que se possa atribuir-lhe a autoria."
Segundo alguns Heréticos, Shakespeare teria sido apontado como autor de toda a obra para esconder Francis Bacon, o grande filósofo que se tornou Lorde Chanceler da Inglaterra, ou, segundo outros, para esconder um nobre, como Edward de Vere, William Stanley, Roger Manners, Walter Ralegh ou a Rainha Elizabeth, pois o verdadeiro autor não quis associar seu nome às atividades teatrais, então o refúgio de escroques e marginais a serviço da prostituição, do consumo de drogas e do comércio de mercadorias contrabandeadas.

Por sua vez, os Heréticos que atribuem a obra, ou parte dela, a Christopher Marlowe, alegam que este simulou sua morte para esconder-se de desafetos e usou Shakespeare para preservar o anonimato.
(continua)

terça-feira, 10 de abril de 2007

Shakespeare (1564- 1616) X F. Otaviano (1825 - 1889)


To die, to sleep; to sleep; perchance to dream.
Hamlet, Ato III, Cena I


Morrer, dormir, talvez sonhar, quem sabe?
Morrer... Dormir...

Controvérsia sobre Shakespeare(em três partes)


Controvérsia sobre Shakespeare (primeira parte)

A vasta obra atribuída a William Shakespeare se compõe de 37 peças, das quais 17 são comédias, dez são peças históricas e dez são tragédias, além de seis livros de poemas e uma coleção de 154 sonetos. A erudição e o conhecimento, que permeiam toda a obra, contrastam, todavia, com a prosaica biografia de William Shakespeare, sendo essa a razão que tem levado muitos autores e biógrafos a levantarem dúvidas sobre a autoria da obra, entre eles os que defendem a tese de que o verdadeiro autor usou Shakespeare para se manter anônimo e até os que atribuem a autoria a um grupo de escritores, que poderiam incluir rosa-cruzes, jesuítas e maçons.
Shakespeare nasceu no Século XVI em Stratford-upon-Avon, cidade às margens do rio Avon, a sudeste de Birmingham, na Inglaterra, filho de um lavrador que se tornou comerciante de peles e de cereais. Os que lhe negam a autoria da obra afirmam que William não freqüentou escola nenhuma, era arruaceiro e tratante, especulava com terras, pelo que ficou milionário, e mandou inscrever na lápide do seu sepulcro versinhos de mau gosto, que não estão à altura da façanha literária que lhe é atribuída. Seus filhos, incluindo a preferida Susanna, eram sabidamente analfabetos. Suas cinco ou seis assinaturas conhecidas mostram que redigia com muita dificuldade e, tendo sua vida vasculhada mais do que qualquer outro mortal em todos os tempos, nunca se descobriu um livro que lhe pertencesse ou um manuscrito de sua autoria. Seu testamento, redigido por terceiras pessoas, estabelece soluções inequívocas para todos os bens do seu espólio, até a destinação a ser dada às camas e às tigelas da família, mas não faz referência a nenhuma obra, nem a nenhum direito autoral. E a obra shakespeariana foi quase toda publicada em 1623, sete anos após a sua morte.
A controvérsia se mantém há mais de 300 anos. O poeta americano do Século XIX John Greenleaf Whittier disse certa vez: “Não importa se Bacon ou outro escreveu as peças maravilhosas, mas estou certo de que o homem Shakespeare não o fez, nem poderia”. Mark Twain, o consagrado escritor, humorista e editor norte-americano, foi mais exaustivo e publicou em 1909 uma antibiografia de Shakespeare, ”Is Shakespeare Dead?”, na qual descreve, ano por ano, tudo que se sabe que Shakespeare fez na vida e tudo que aconteceu à sua volta. Segundo Mark Twain, “até onde alguém realmente saiba e possa provar, o Shakespeare de Stratford-upon-Avon não escreveu nenhuma peça em sua vida.”
Essa biografia, mesmo sem as ironias de Mark Twain, não se coaduna de fato com um autor que demonstrou sólidos conhecimentos sobre filosofia clássica e esotérica, política e diplomacia, leis e termos legais, história da Inglaterra e da Europa, literatura clássica, domínio do francês, italiano e espanhol, conhecimento da Itália, França, País de Gales e Dinamarca, horticultura, jardinagem, pesca, caça e falconaria, música e termos musicais, pintura e escultura, matemática, astrologia e astronomia, história natural, medicina e psicologia, vida militar, heráldica, navegação, folclore e mitologia fantástica, gerenciamento teatral, maçonaria, criptografia, além de jargões só conhecidos pelos que tenham freqüentado a Universidade de Cambridge.
(continua)

segunda-feira, 9 de abril de 2007

Murray Gell-Mann

Nascido em 15 de setembro de 1929, Murray Gell-Mann é outro físico de Nova York que muito contribuiu para o desenvolvimento da Física Quântica, ganhando o Prêmio Nobel de Física de 1969. Erudito e sofisticado, Gell-Mann proferiu seu discurso em sueco, ao receber o Prêmio Nobel em Estocolmo.
Seus conhecimentos incluem temas muito diversos, desde arqueologia, pássaros e cáctus até mitologia iorubana e zimologia.Trata-se provavelmente do homem mais culto da atualida
de, numa avaliação do físico Philip Anderson, também laureado com o Prêmio Nobel em 1977.
Gell-Mann descobriu que os elementos pesados do átomo, ou seja, prótons e nêutrons, são formados na verdade pela união de três quarks, estes, sim, partículas elementares como os elétrons. Existem seis tipos de quarks, que se caracterizam por certas propriedades, como carga elétrica, "cor" e "sabor".
O nome “quark” foi retirado por Gell-Mann deThree quarks for Muster Mark”, um estranho verso de James Joyce no livro Finnegan´s Wake. Joyce gostava de inventar palavras e, segundo geralmente se aceita, esse verso vale por “Three quarts for Mister Mark” ( “Três quartas para o senhor Mark”).
Um livro de Gell-Mann, “O quark e o jaguar”, faz uma primorosa correlação entre o quark, que representa a elementaridade e a similaridade, e o jaguar, que representa a individualidade e a complexidade.
Afirma Gell-Mann que somos sistemas adaptativos complexos, pois vamos melhorando a cada informação recebida.

sexta-feira, 6 de abril de 2007

Oração do Milho

Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante.
Sou a farinha econômica do proletário.
Sou a polenta do imigrante e a miga dos que começam a vida em terra estranha.
Alimento dos porcos e do triste mu de carga.
O que me planta não levanta comércio, nem avantaja dinheiro.
Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paióis.
Sou o cocho abastecido donde rumina o gado.
Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece.
Sou o cacarejo alegre das poedeiras à volta dos seus ninhos.
Sou a pobreza vegetal agradecida a Vós, Senhor, que me fizestes necessário e humilde.
Sou o milho.

Cora Coralina (1889-1985)

RETALHOS DO QUOTIDIANO (parte 8/26)

Um salto espetacular

Minha função me dava mais visibilidade do que eu poderia imaginar e, naqueles anos todos, fui adquirindo prestígio dentro da organização. Até que um dia o Board of Directors, que tudo dirigia lá de Nova York, decidiu me promover a diretor técnico de todas as atividades da WED na América do Sul.
Um salto espetacular, que não passara nem de leve pelas minhas cogitações. Claro, achei muito bom, e bom continuaria se o acesso às informações que passei a ter na nova função não me fizesse ver que o mar era mais alvoroçado do que eu supunha, tendendo para o tempestuoso. A WED era muito grande e cheia de possibilidades, mas nela eu percebia imperfeições, que, entretanto, não impediam muita geração de lucros e abundantes distribuições de dividendos para os acionistas. É que os defeitos são absorvidos se o projeto é vitorioso e, se muito vitorioso, não são sequer percebidos. Também é verdade que os chefes de divisão inventavam trabalho uns para os outros, tanto quanto cresciam geometricamente os cargos de confiança, não importando se a organização estava progredindo, estabilizada ou dando prejuízo, aplicando-se na plenitude a surradíssima lei de Parkinson. Mas a ação inocente, de mera decantação de processos autônomos a se diluírem no exercício da burocracia, terminava por aí, pois havia uma clara guerra de interesses e permanentes exercícios de bajulação. Alguns chefes de departamento trabalhavam exaustivamente, e por todos os meios, para assumir alguma posição na direção central. A qual se enchia de gente mais estúpida que o vice-presidente, Sean Forthwhite, de modo que este permanecia sempre como o mais inteligente do seu círculo.
C
heio de iniciativas esdrúxulas, Forthwhite tinha poder suficiente para levá-las adiante. Amanhecesse com uma sugestão, impraticável que fosse ou estapafúrdia, todo o sistema se ajustava para provar que se tratava de uma idéia absolutamente pertinente e inovadora; a materialidade da proposta passava ao controle dos chefes de departamento, que imediatamente geravam curvas estranhas em que a moeda era energizada em todas as contas por índices de utilidades que multiplicavam retornos e reduziam custos.
- Estamos aplicando os conceitos de Daniel Bernoulli.
Infelizmente, porém, esses torneios generosos não costumam ser acolhidos pela realidade das condições de campo. Cumpre-se a derrota inevitável. Após a execução do projeto, que jamais poderia dar certo por sua frágil concepção e superficialidade, começava a busca dos que deveriam ser escalados para assumir a responsabilidade pelo fracasso.

- Frustrou-se o êxito da operação, ora essa, por causa da incúria desses incompetentes, sabotadores morais, que não souberam implementar uma idéia revolucionária do vice-presidente. Uma idéia absolutamente revolucionária!
Para além de tudo isso, aos poucos fui percebendo que havia dolo também. Os princípios de governança estavam muito longe de serem neutros e inelásticos, e muitas vezes os interesses da corporação eram malbaratados por atitudes duvidosas e ilícitas. Trabalhar, antes um grande prazer, passou a ser um exercício que me angustiava, pois eu não podia concordar com as empresas de papel, que tinham executivos da WED remunerados com generosos acréscimos salariais por acumularem diretorias que não existiam, nem com as viagens de negócios dos diretores a Londres e Paris, que se emendavam com as férias da família na Côte D’Azur. Ou com as cisões ou fechamentos de capital feitos com prejuízo dos acionistas minoritários, muitas vezes resgatando suas ações mediante indenizações calculadas a valores históricos e corroídos pela inflação.
Também não consegui engulir a mudança do critério para avaliação de desempenho dos executivos, uma fraude, afirmando uma eficiência que não tínhamos. Tudo feito com a conivência e beneplácito do conselho de administração da subsidiária brasileira. Foi a gota que fez transbordar o meu reservatório de decepções.
Era permanecer calado, intranqüilo, ou jogar tudo para o alto, dos dois males o que fosse menos ruim. Foi menos ruim jogar tudo para o alto.
Durei exatos 14 meses na nova função até que, para surpresa de todos, decidi pedir demissão.

- Sinto muito, senhores, mas a partir de hoje não trabalho mais para a WED.

(continua)

quinta-feira, 5 de abril de 2007

Sucessão de São Pedro

- Seu Vigário!
Está aqui esta galinha gorda
que eu trouxe pro mártir São Sebastião!


- Está falando com ele!
- Está falando com ele!

Ascenso Ferreira, em "Catimbó e Outros Poemas"

quarta-feira, 4 de abril de 2007

Os fatos


"Primeiro consiga os fatos; distorça-os depois como quiser."


Mark Twain, pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens (1835-1910)

Richard Feynman (1918-1988)

O mulherengo e boêmio Richard Feynman foi um dos ganhadores do Prêmio Nobel de Física de 1965, por seus trabalhos relacionados com Física Quântica. Feynman era de Nova York e gostava muito do Rio de Janeiro. Exímio tocador de bongô e de tamborim, brilhou nas festas e batucadas da Zona Sul e conquistou o título do carnaval de 1952 tocando frigideira no bloco carnavalesco Inocentes de Copacabana. De uma feita voltou para os Estados Unidos acompanhado de uma prostituta, de nome Clotilde, que o chamava de "querido Ricardinho".
Conta-se que nos tempos de estudante, numa festa promovida pelo reitor da Universidade de Princeton, a dona da casa serviu-lhe chá e fez a seguinte pergunta:
- O senhor toma o seu chá com leite ou com limão?
- Com ambos, respondeu o distraído Feynman.
- O senhor está brincando, senhor Feynman!, respondeu a constrangida anfitrioa.
Em 1985 Richard Feynman escreveu o livro autobiográfico "O senhor está brincando, senhor Feynman!" ("Surely you´re joking, Mr. Feynman!"), que teve 500 mil exemplares vendidos.
Vulgívaga

"Não posso crer que se conceba
Do amor senão o gozo físico!
O meu amante morreu bêbado,
E meu marido morreu tísico!"

Manuel Bandeira, 1919
Questões de Português no vestibular do Homem Horizontal

(Soluções propostas pelo doutor Coriolano Zimber)

(1) Dizer se há anfibologia na oração: “Lisandra conversou com o general no seu escritório.”

Há, sim. Anfibologia é o mesmo que ambigüidade, um vício de linguagem que dá ensejo a duplo sentido. No caso, não é possível saber se a conversa foi no escritório de Lisandra ou se no escritório do general.

(2) O mal-humorado está de mau-humor, e o mal-criado faz má-criação, como pode?

“Humorado” e “criado” são adjetivos, que só podem ser modificados por advérbios (“mal” e “mal”); “humor” e “criação” são substantivos, que são modificados por adjetivos (“mau” e “má”).

(3) Qual a função de “como” e “se”em “veja como o tempo voa” e “não sei se está chovendo”?

Nos exemplos as duas palavras, “como” e “se”, são conjunções integrantes, em ambos os casos introduzindo oração subordinada substantiva objetiva direta.

(4) Qual o plural de viés?

Vieses.

(5) Que particularidade da língua latina está presente na frase “Sócrates deixou-se envenenar?”

Trata - se de uma construção que lembra o “acusativo com infinito”: o objeto direto, "se", seguido por um verbo no modo infinitivo, "envenenar". Desse modo, o objeto direto será também sujeito da oração cujo verbo está no infinitivo. A construção pode ser feita com os verbos deixar, fazer, mandar, ouvir, sentir e ver: deixai-o cantar, os pais fizeram a filha dormir, o professor mandou o aluno estudar, ouviram-no praguejar, senti o coração bater, viram a cavalaria chegar, Sócrates deixou-se enganar.