quinta-feira, 5 de julho de 2007

RETALHOS DO QUOTIDIANO (parte 21/26)

Bola de Sebo

Eu daria seis aulas por semana, num horário propositadamente compatível com as minhas atividades na Física. Uma caixa de velhos escritos, muitos programas ainda arquivados no meu computador, meus livros e apostilas da minha passagem pela Universidade do Texas, tudo isso me servia novamente. Minha intenção, desde logo, era abandonar a Física, pois ser professor era, no portfólio das minhas ambições, equivalente à carreira de físico. Para reforçar a decisão, as cadeiras que a mim confiavam correspondiam à minha aptidão e experiência.
Laura surpreendeu-se com o meu entusiasmo redobrado, mas sempre se colocou a meu lado, incentivando-me e discutindo comigo a melhor forma de conduzir uma aula, pois ela própria tinha vontade de ser professora.

Estrela do poeta


Vivíamos momentos decisivos, mas éramos solidários e recíprocos. Ouso dizer que nos bastávamos, pois um entendia e completava o outro.

- Não sei não, mas sempre devia haver alguém como você perto da gente.

- Muito obrigada. Alguma razão específica?

- Você é a estrela do poeta, apontando o caminho ao pegureiro.

Ela é boa de cuspir

Às vezes, no lazer, Laura suscitava temas culturais, com muito proveito para mim. De certa feita ela me perguntou se conhecia Guy de Maupassant.

- Guy de Maupassant?

- Sim, um dos maiores contistas de todos os tempos. Histórias abundantes, sobre todos os tipos e todas as situações. Três centenas de contos,
a seu tempo talvez o autor mais lido no mundo. Morreu com 43 anos, apenas.

Ela me fez um relato do Colar de Diamantes, um conto
meio ingênuo, sei lá. Aquela história da mulher bela e admirada, que numa festa de rara felicidade perde o colar de esmeraldas que pertencia à amiga. Isso tem conseqüências graves: a pobre mulher sacrifica a vida para repor o colar perdido, sem saber que se tratava de uma jóia falsa.
Bola de Sebo, outro dos contos de Maupassant, me pareceu obra de gente grande. Uma história que se passa na época da guerra franco-prussiana. Na carruagem francesa, uma prostituta, que atende pelo nome pejorativo de Bola de Sebo, é hostilizada pelos demais passageiros, que são senhoras e senhores burgueses, de muita hierarquia e nenhum valor.
Em certo instante da viagem um oficial do exército invasor detém a carruagem e ameaça retê-la indefinidamente, a não ser que Bola de Sebo concorde em passar uma noite com ele. Isto não está nos planos da prostituta, que, entretanto, é pressionada a ceder àquele desígnio pelos demais passageiros, que nesse mister usam súplicas e expedientes de persuasão e hipocrisia.
Após muito relutar, Bola de Sebo percebe que não tem saída, entrega-se ao comandante, que satisfaz os seus desejos e dá sua autorização para que a viagem prossiga.
Como se nada tivesse ocorrido, os burgueses retomam a atitude superior, desprezando, como antes, aquela pecadora vulgar.

No tempo das diligências

Bola de Sebo é o conto do trocadilho “Loiseau vole” e “l’oiseau vole”, que Maupassant construiu porque havia um Loiseau entre os passageiros. Em francês “voler” significa tanto voar como roubar, foi o que Laura me ensinou.

- O senhor Loiseau rouba?

- Isso eu não sei, não senhor. Eu apenas disse que o pássaro voa.

Laura achava que Bola de Sebo, na verdade uma lenda urbana, inspirou muitas narrativas, entre elas o filme "No Tempo das Diligências" (“Stagecoach”), de John Ford, lançado em 1939.
Um filme visto 40 vezes por Orson Welles, que o considerou a síntese de todos os “westerns”.
(continua)

Um comentário:

Maria disse...

Tenho o livro Bola de Sebo, mas ainda não li. Já li O Horla e outras histórias, de contos fantásticos do mesmo autor, e amei !!! Explora uma atmosfera que envolve reencarnação, poderes sobrenaturais, acontecimentos estranhos e perversos.