quarta-feira, 11 de julho de 2007

RETALHOS DO QUOTIDIANO (parte 22/26)

Ulisses

Laura iria apresentar sua tese na mesma hora da minha primeira aula na Economia. Uma pena, pois queria estar presente para vê-la brilhar.
Naquele dia, enquanto aguardávamos o momento de defender cada um
o seu destino, ela me explicou sobre o Ulisses, de James Joyce. Tudo porque lhe disse despretensiosamente que não entendia por que aquela leitura era tão demorada.
- E tudo se comprime num único dia, o 16 de junho de 1904.
- Um único dia?
-
É o dia de Leopold Bloom. O Bloomsday, Carlinhos, o único dia da história que tem um dono.
- Deixa-me memorizar: 16 de junho de 1904.
- Foi o que a senhorita Dunne datilografou, e era uma quinta-feira.
- Em todas as folhinhas?
- Pelo menos na Irlanda, claro.
-Mas, afinal, que faz essa leitura ser tão demorada?
- Às vezes a gente tem de consultar várias obras para conferir como foi o fim de Pirro ou tem de folhear muitos volumes shakespearianos para saber que Perdita não é nenhuma personagem que se perdeu na Tempestade, nem uma bruxa de Machbeth.
- Muito interessante isso, saber o fim de Pirro e sobre Perdita. E quem era Perdita, afinal?
- A filha de Leonte, em Conto de Inverno. Quanto ao Pirro, há uma versão de que morreu porque lhe atiraram uma telha na cabeça, na cidade de Argos.
- Uma forma original de morrer...

Fofocas de James Joyce

- Você me disse uma vez que Ulisses tem passagens deliciosas. Cite uma...
- O nome de Anne Hathaway, mulher de Shakespeare, pode dar um trocadilho malicioso, “Anne hath a way”.
- Isso é um trocadilho malicioso?
- Sim, “Anne tinha seu caminho”. Joyce insinua que a mulher de Shakespeare, Anne Hathaway, teve um romance com Richard, um dos tios de Shakespeare, na longínqua Stratford-upon-Avon. Isso teve repercussão nas suas obras, em especial em Ricardo III.
- Mulher de Shakespeare, com o tio
, boa essa, repercutindo em Ricardo III.
- O Duque de Gloucester, antes de se tornar Ricardo III, foi ao velório do rei Henry VI, que ele assassinara, para conquistar o coração da lacrimosa Lady Anne, enteada do morto e viúva do príncipe Edward IV, que antes Richard III também assassinara. Nessa conquista, Richard III admite os dois assassinatos, alegando que a beleza de Lady Anne é o que o levara a cometê-los. Lady Anne deixa-se seduzir e dá-lhe sua mão em casamento, iniciando uma relação de amor, ódio e sadismo.
- E o tio? Continuo sem entender...
- Explico. Richard conquista Anne, tanto na vida real de Shakesperare, em Stratford-upon- Avon, quanto nos velórios das suas tragédias. Um Richard, uma Anne e um adultério, meio incestuoso, na vida real do Shakespeare; um Richard, uma Anne e dois assassinatos, na sua ficção. Na correlação, você percebe que um adultério equivale a dois assassinatos...
- É isso, é?
- Assim me parece, numa interpretação que construí lendo a peça, vendo o filme do Al Pacino e ruminando o Ulisses.

Kilkenny e Kilkerry

- Você sabia, Carlinhos, que Kilkenny, tantas vezes citada no Ulisses, é a menor cidade da Irlanda, seja em área, seja em população?
- Neste momento, para mim solene, confesso humildemente que nunca tinha ouvido falar em Kilkenny. Nem cidade, nem coisa alguma com esse nome glorioso. Kilkerry, sim, já ouvi, mas Kilkenny, não. Tenho um amigo, muito legal, chamado Kilkerry.
- Kilkenny é uma cidade medieval, às margens do rio Nore. Aliás, cidade de gente famosa: Oliver Cromwell, Jonathan Swift e George Berkeley.
- Tudo isso é muito erudito para mim.
- Basta você se interessar e dedicar ao assunto uma parte do seu tempo.
- Precioso tempo...
(continua)

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