quinta-feira, 17 de maio de 2007

RETALHOS DO QUOTIDIANO (parte 14/26)

Nenhumíssima

Eu estava levando a sério o propósito de adquirir um pouco de cultura, tanto que me inscrevi num curso sobre filósofos pré-socráticos e decidi ler alguns autores de primeira linha. Comecei por Albert Camus, que, ao contrário daquele seu estrangeiro, repudia a depressão e ama a vida:

- Amo a vida, eis a minha verdadeira fraqueza. Amo-a tanto, que não tenho nenhuma imaginação para o que não for vida.

Também amo a vida, pensei, deve ser isso. Pois Camus me estimulava a ligar para a May. Tanto tempo passado e esgotado o ressentimento, ela não se recusaria a me atender. Eu iria pedir um favor, isso mesmo, só um favor, sem dar bandeira, nenhuma bandeira.


Treinando o improviso

Precisava preparar-me. Um tema e dois dias de antecedência, não mais, e eu seria capaz de um bom improviso. Nem sei se foi Voltaire quem disse isso, mas funciona. Sabe, May, não é por nada não, mas eu queria lhe perguntar sobre o Camus, pois ando pensando naquele filme e quero discutir com você sobre os livros dele. Afinal, há três meses não nos falamos. Não sei, isto é, não sei mesmo... Quem gosta de Física está irremediavelmente ligado ao drama do Giordano Bruno, pobre dele, que não se retratou, e teve essa história do senhor Meursault, que também não se retratou. Retratação, não; arrependimento, também não. Quero ver se compreendo o Giordano pela discussão e entendimento do Meursault. Acho, nem sei se acho, que o senhor Meursault não passa de uma triste metáfora. Você pode me ajudar?
Na hora sairia melhor... Pois uma coisa era certa: meu desempenho cresce, e muito, quando estou sob pressão.

Agora entendo o Fernando Pessoa

Meu coração acelerou quando perguntei se ela podia me atender.
- May? Ela despediu-se do Museu há cerca de um mês.
- Despediu-se do Museu? Demitida?
- Não, não, pediu demissão. Ela se mudou para Paris, acompanhando o Kurtis.
- Paris? Kurtis, quem é Kurtis?
- Sim, Kurtis, professor da Economia.
O telefone quase me caiu das mãos.
Onde estou, meu Deus? Já não ciciam os buritis, às noites seguem-se os dias, mais forte que o tufão, meu filho, é Deus... Os rios correm pressurosamente para o mar, sigam-me os que forem brasileiros, Deus não criou o mundo, mas emanou-o, um burro coça o outro, tudo se afirma, se nega e se supera, ama com fé e orgulho a terra em que nasceste, a discórdia é a peste, e a tolerância, o remédio, ridendo castigat mores, não existe amor sem sexo, o pão nosso de cada dia nos dai hoje, amar foi minha ruína, os brutos também amam e o encouraçado Potenkim, mais vale um pássaro na mão do que dois voando por aí, quem tudo quer tudo perde, o homem é o lobo do homem, ninguém assistiu ao enterro da tua última quimera.

Tudo bem, tudo bem. Mas fazer o quê?
Escafeder-me, evaporar, gritar viva a Rainha Elisabeth II e abaixo as três leis de Newton, admitir que de muito pensar morreu um crisântemo amarelo e confessar que odeio a palavra arrebol e seus termos cognatos, antes de reconhecer que, afinal e definitivamente, sou o maior idiota de toda a história da humanidade, não importa onde, como, quando ou por quê, seja em Araxá, Veneza ou Tegucigalpa.
Agora entendo o Fernando Pessoa: o amor não é prato que se possa comer frio. Nem hoje nem sábado.

E o idiota, aqui, faz
endo versinhos, bonitinhos, metrificadinhos, cheios de riminhas. Ridículos, decididamente ridículos!

O outro é o outro

Decidir o que fazer era muito simples: nenhumar a May. Nenhumação é a arte de transformar o outro em nenhum.
O outro é o outro. Pois eu, filho do carbono e do amoníaco, não conheci nenhuma May. Nenhuminha, nenhumíssima.
(continua)

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