sexta-feira, 4 de maio de 2007

RETALHOS DO QUOTIDIANO (parte 12/26)

Paixão e cultura

Foi do Museu que ela me ligou.
- Quero convidá-lo para ver uma peça.
- Peça, sobre o quê? Quando?
- Pequenos Burgueses, de Máximo Gorki, hoje à noite. Sobre os Bessemenovs, uma família russa em decadência. Nem pense em recusar, pois já adquiri os ingressos.

Gorki

May, ao volante, tomou o rumo do Teatro Villa-Lobos. Durante o percurso ela me explicou que Máximo Gorki teve uma vida miserável, trabalhando como lavador de pratos, pescador, vendedor de frutas, muitas vezes sobrevivendo até como vagabundo. Chegou a tentar o suicídio, no desespero de quem se sente perdido, no meio de uma gente corrupta e miserável. Ele se consagrou, porém, ao escrever os Pequenos Burgueses, pois a decadência dos Bessemenovs, com todas as suas contradições, era uma amostra do que acontecia na Rússia que antecedeu a Revolução Comunista.
Tudo foi, para mim, um alumbramento:
o teatro, o ambiente, o ritual. E a peça, não sei se tinha visto alguma assim densa e interessante. Um pai arbitrário, uma filha deprimida, um filho pretensioso e Nill, o trombeta de Deus! Era a classe média assoberbada pelo tédio, numa sociedade em plena e decidida decomposição.
Saí do teatro ainda mais convencido de que era necessário introduzir o viés da cultura em minha vida, jogando na lata do lixo aquele modelo idiota em que eu só pensava em integrais, vetores, transformadas de Laplace, eletricidade e mecânica. E a todo instante me lembrei de Charles Percy Snow, para o qual poucos cientistas lêem Charles Dickens ou uma peça de Shakespeare, e poucos artistas conhecem o Segundo Princípio da Termodinâmica; assim, concluía ele, fica muito difícil resolver os problemas do mundo.
Fica mesmo. Não que eu me considere um cientista na acepção integral da palavra, mas não posso continuar sendo um analfabeto cultural em plena cidade do Rio de Janeiro.

Camus

Uma semana depois May me ligou novamente, sempre assumindo as iniciativas.
- Já tenho os ingressos.
- Mas qual o filme?
- Isso também é importante. O Estrangeiro, baseado num romance de Albert Camus.
- Albert Camus?
Ora, pois. O senhor Meursault decide ir ao enterro da mãe, cuja idade desconhece. Sei lá, sessenta anos. Encontra-se depois com Marie Cardona e vê um filme de Fernandel; Mersault se relaciona com um vizinho, Salamano, que tem um cachorro nojento; e com outro, Raymond Sintès, que é cafetão e tem o hábito de espancar a mulher até o sangramento.
No domingo, Meursault, Marie Cardona e Raymond Sintès vão para a casa de praia de Masson, um amigo de Raymond. Dois árabes atacam Raymond na praia, pois querem vingar-se da surra que ele deu na prostituta. São repelidos por Raymond e Masson, que, a seguir, voltam para casa.
Meursault passeia pela praia sozinho e avista um dos árabes, que exibe a faca, mas sem nenhuma atitude agressiva. Era só Meursault voltar também para casa, e tudo estaria terminado. Mas havia o sol na cara. Mersault atira, e o árabe tomba, fulminado. Depois atira mais quatro vezes contra o corpo inerte do homem caído.
O advogado, o juiz e o promotor tentam entender o gesto de Mersault, que, de fato, nunca se arrepende de nada porque é dominado pelo que vai acontecer.
- Eu matei o árabe por causa do sol.
O capelão insiste em falar com o senhor Meursault, pois precisa conquistar sua alma de condenado à morte.
- Deus irá ajudá-lo, Meursault.
- Não quero que ninguém me ajude, e me falta tempo para me interessar pelo que não me interessa.
Indiferença perante a vida.
Uma obra de Camus, mostrando, numa reflexão sobre o absurdo, um homem que se estranha, estrangeiro de si próprio.
- Muito esquisito.
- Bota esquisito nisso, Carlinhos.


Minha única opção

Dar mais atenção aos cadernos internos do jornal, ler Proust, a Divina Comédia e o Dom Quixote, ir ao Municipal, ser capaz de reconhecer uma ária da Traviata ou uma sonata de Beethoven, saber francês e jogar bridge. Ilíada, Finnegans Wake, mitologia grega e escandinava, Noberto Bobbio, Ángel San Briz e Condillac. E, claro, vinhos, filosofia e economia política. Ficar atento às oportunidades culturais. E gritar, como um Bocage desvairado da Rita Ludolph:

- Gente ímpia, rasgai os meus versos e crede na eternidade, que já beócio não sou!

Ou não estarei à altura da May.
(continua)

Um comentário:

Maria disse...

No livro O Estrangeiro, o personagem Mersault realmente parece estar "acostumado" a tudo e sua vida banal é refletida no seu comportamento diante até mesmo do julgamento. E daí o absurdo se instaura.