quinta-feira, 10 de maio de 2007

RETALHOS DO QUOTIDIANO (parte 13/26)

A poesia

Uma certeza que me acompanha existência afora, nem sei exatamente por quê, é a de que todo mundo um dia acaba fazendo alguma poesia, nem que seja umazinha só, mirrada e solitária. No meu caso, isso é meio complicado e difícil porque não tenho nenhuma afirmação abrangente a fazer, nem para os amigos, nem sobretudo para a humanidade.

Minha cachorrinha

Sobreveio, porém, o incidente vivido à porta do motel, que preciso contar desde o começo.

Confesso constrangidamente que tenho cara de sósia, do tipo mais genérico e vulgar, tantas vezes já me confundiram com outras pessoas. Nunca, porém, o mal-entendido viera com tanto fervor e destempero.
Saíamos do motel, quando uma desconhecida, irrompendo do nada, deu um empurrão em May e dirigiu-se a mim de maneira extravagante e agressiva.

- Pensa que a coisa vai ficar assim, seu cretino? Me deixando por essa aí? Não adianta tirar a barba, nem o bigode, que eu te reconheço debaixo de qualquer disfarce, mesmo fantasiado de satanás ou de vice-rei da Catalunha! Eu irei atrás de você até as profundezas do inferno!
De um lado, uma mulher equivocada, com sua fúria e desespero, e, do outro, eu, um homem desconcertado, sem saber o que fazer, nem como reagir.
- Mas quem é a senhora?
- Não sabe quem sou eu, essa é boa, muito boa! E, além de tudo, me chamando de senhora! Você sempre me chamou de minha cachorrinha, não se lembra não, seu cretino?
Cada vez mais desorientado, a custo me desvencilhei da mulher. Mais que uma mulher, um pesadelo inexplicado, aliás, inexplicável.
Então, a surpresa maior: May, na confusão, havia abandonado o local. Ela seguira de táxi na direção do Leblon, foi o que me informaram.


Sic transit gloria mundi

À perplexidade daquele momento juntou-se a decepção dos dias que se seguiram. May se recusou a atender os meus telefonemas. Não sei se doeu mais a separação ou se a lógica absurda na qual se baseou. Senti semanas a fio uma terrível sensação de impotência, a de um inocente condenado por causa de um lamentável mal-entendido, inerme e inerte diante de um tribunal chamado May, a mulher que eu amava. Que ouviu uma acusação contra mim, de nenhum fundamento, me julgou e me condenou, sem sequer me conceder a generosidade de me ouvir.
Sic transit gloria mundi.
Apesar disso, ou, quem sabe, exatamente por isso, eu sentia muita falta dela. Afinal, May não tinha culpa de ignorar a minha inocência. Foi então que fiz a poesia, a que corroborou no que me diz respeito que todo mundo é poeta por um dia. Poesia tem de ser mostrada, imaginei, ou deve ir para a lata do lixo. Foi por isso que pensei em ir ao Museu, chamar pela May e depor-lhe o meu amor. Uma declaração seguida de uma declamação, de acordo com um teatro que cheguei a ensaiar.

O que declarar:

"Fiz uma poesia para você, os primeiros versos da minha vida. Versos ruins, sem dúvida, o que não tem nenhuma importância, nem conseqüência. Porque não sou poeta, May, mas um homem confessando o seu amor."

O que declamar:

"A febre, grande ameaça,
Sempre demora, mas passa.
A banda passa na praça,
Tocando com muita graça.
A uva demora, mas passa.
Passa boi, passa boiada,
Passarinho, passarada.
O aluno se vira e passa,
O filme passa no paço,
E, do pascácio que passa,
Não fica nem a carcaça.
Mas você, aqui no peito,
Agarrada como traça,
Impassante, impassada,
Só você é que não passa."

Horror ao vexame

Não bastava ensaiar. Para ir ao Museu eu teria de arrostar e vencer todas as minhas resistências. O que não aconteceu, pois, tudo aferido e sopesado, prevaleceu o meu recato. Ir ao Museu, de poesia em punho, onde já se viu, ora essa!
E, convenhamos, os meus versos cumpriram a regra, cumpriram sim, mas como são ridículos!
Galileu Galilei afirmou que a Natureza tem horror ao vácuo; eu faço pior ainda, pois é do vexame que tenho pavor, e somente dele.
Como são ridículos!
(continua)

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