quinta-feira, 14 de junho de 2007

RETALHOS DO QUOTIDIANO (parte 18/26)

Laura

Como eu havia pressentido no jantar do Humphrey´s, os testes de Português e Inglês foram meras formalidades: "fazer, em Português, uma redação sobre a validade precária das teorias físicas, correlacionando o tema com a história do átomo, desde Leucipo de Abdera. A seguir, traduzir o texto produzido para o Inglês."
O assunto era corriqueiro, pelo menos para quem lida com Física. Meus conhecimentos de Inglês, além disso, tinham evoluído muito desde aquele longínquo dia em que ouvira o Burford dizer, lá no Texas, sobre a raposa marrom e o cachorro preguiçoso. Dummy variables, ora, pois! Foi apenas necessário um pouco de malabarismo para contornar certas palavras e expressões, como “livre-arbítrio” e “ extirpar”, cujas versões não me ocorreram durante o teste.

Days of wine and roses

Aguardei o resultado final dos exames sem nenhum sobressalto, e, decorridos uns poucos dias, um telegrama da universidade me convocou para matricular-me no seu Departamento de Física. Eu tinha sido aprovado.
Minhas conquistas são sempre feitas com muito sacrifício, o que talvez explique a alegria que me proporcionam. Quase chorei de alegria.


- Days of wine and roses! Viva eu cá na minha glória, pois estou dentro!

Lembrei-me então do padrão que tenho perseguido durante toda a vida. Quando estudante, eu quis ser um bom estudante; quando namorado, um bom namorado; e assim por diante, bom amigo, bom marido, bom vizinho, bom cidadão, bom eleitor, bom engenheiro. Não seria diferente como físico, ou melhor, como professor de Física.

- Sempre tive para mim que a comunhão do professor com os alunos só se completa quando sua aula desmoraliza todas as dúvidas. Não serei um despejador de fórmulas, pois, ao ensinar, é preciso saber a história, a geografia e, se for o caso, até a mitologia de cada assunto, sobrepujando-o, prevalecendo sobre ele.

Os palhaços


Jamais pensei que Laura seria a pessoa a me receber no Departamento de Física. Ela vivia suas últimas semanas como estudante, pois já obtivera todos os créditos das matérias teóricas e apenas aguardava o momento de defender a sua tese. Eu a vira uma única vez um ano atrás, assim mesmo de longe, numa festa de intelectuais, a que eu comparecera por acaso e quase na condição de intruso.
Percorremos os laboratórios, a biblioteca, a sala dos computadores, a sala de cinema e o restaurante. Sempre deveria haver alguém gentil assim no nosso dia inaugural.
- Sua tese é sobre o quê?, foi tudo que me ocorreu perguntar-lhe.
- Relatividade especial.
- Você escolheu um assunto fascinante, Laura.
- Sem dúvida.
- Gosto muito daquela experiência mental do Einstein, com um espelho na mão...
- Se ele visse sua imagem no espelho, teríamos de reformular as leis da mecânica clássica. Se não visse, seria necessário abandonar o princípio da relatividade, de Galileu. Uma escolha crucial...
- Venceu Galileu, pelo menos dessa vez.
- Venceu, sim. Nenhuma velocidade se soma ou se subtrai à velocidade da luz no vácuo, que é absoluta, independentemente de qualquer outra consideração. A imagem estará lá, no espelho do Einstein, mostrando-lhe a cabeleira desgrenhada...
- Em compensação, espaço e tempo deixaram de ser absolutos e independentes.

Bem, no quesito da Física, tínhamos um diálogo mais ou menos equilibrado. Aos poucos eu iria perceber que, além de quase doutora em Física, Laura era uma intelectual, realmente. Ela não se enquadrava no figurino geral de Charles Percy Snow, segundo o qual um artista não conhece os princípios da Termodinâmica e um cientista pouco sabe sobre Shakespeare. Pois Laura sabia tudo de literatura e de música e conhecia Termodinâmica muito bem, tanto quanto os outros assuntos da Física.

Seja como for, nós nos tornamos muito próximos.
Tanto que uma semana depois ela me convidou para ver uma ópera, I Pagliacci, no Teatro Municipal. Dou muita sorte com mulheres inteligentes, que conhecem os caminhos e gostam de apontá-los aos principiantes e recém-chegados.
- Como? I Pagliacci?
- Os Palhaços, de Ruggero Leoncavallo. Convém você aproveitar esse início de curso mais folgado para ver todos os espetáculos a seu alcance, pois a coisa por aqui deve apertar muito.
(continua)

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