quinta-feira, 7 de junho de 2007

RETALHOS DO QUOTIDIANO (parte 17/26)

O atestado de óbito do Universo

No princípio fiquei um pouco inibido, e até assustado, pois havia uma pequena e inesperada platéia. Eram estudantes do curso básico, talvez uns dez, recolhendo experiências, quem sabe, para quando chegasse a sua vez.
Logo me dominei e fui cumprindo meu roteiro, tantas vezes ensaiado que eu mais parecia uma autoridade na matéria do que um Hamlet de segunda mão.


O que eu disse sobre Mayer

Numa formulação holística, e portanto não-cartesiana, Robert Mayer percebeu que a energia nunca é criada nem destruída, mas transformada de uma para outra forma. Ou seja, percebeu o Primeiro Princípio da Termodinâmica.

Mayer nasceu no distrito de Heilbronn, no estado de Wurttemberg, na Alemanha.
Foi ele o autor dos estudos que permitiram estabelecer uma equivalência entre trabalho mecânico e calor e quase se matou quando soube que o crédito pelas suas descobertas foi conferido ao físico britânico e fabricante de cerveja James Prescott Joule.
Robert Mayer foi realmente boicotado, e isto se deveu ao preconceito contra a Naturphilosophie, pois se dizia então, mais do que agora, que os alemães só pensavam na unidade fundamental da natureza, “esse romantismo metafísico de Goethe”.


- Embora médico, Mayer morreu de tuberculose, aos 64 anos.

Carnot, escarlatina e cólera

Também por métodos holísticos, o francês Sadi Carnot descobriu que não é possível a passagem espontânea de calor de um corpo frio para um corpo quente, tanto quanto não é possível a transformação completa de calor em trabalho. Descobriu, como se pode notar, o Segundo Princípio da Termodinâmica.
O ciclo de Carnot é teórico, reversível, sem atrito.

Sadi Carnot era militar, mas também se dedicava à literatura, à música, à dança, à equitação e à matemática. Como físico, seu objetivo era construir a máquina a vapor de máxima eficiência. O pai, Lazare Carnot, economista, militar, filósofo e matemático, chamado durante a Revolução Francesa de “Grande Carnot”, foi autor de importantes trabalhos de geometria, estática e dinâmica.
Sadi passou a ser hostilizado depois que seu pai foi exilado pela Restauração.

- Morreu aos 36 anos, vítima de escarlatina e cólera.


Entropia

O que mais impressionou a banca foi meu discurso sobre entropia
.
Se em dado momento reconhecermos que a entropia de um sistema isolado não é máxima, podemos afirmar que a entropia era inferior antes desse momento e que será superior em cada momento posterior.
De fato, para além da memória humana, só a entropia permite distinguir entre passado e futuro. O crescimento incessante da entropia se correlaciona com o crescimento incessante do tempo, sendo certo que o Universo assumirá no futuro remoto um assustador estado de homogeneidade térmica, sem nenhuma possibilidade de ordem ou de informação ulteriores.

- Encerro minha aula com a assertiva de que o Segundo Princípio da Termodinâmica é o atestado do futuro óbito do Universo, nada havendo mais triste, nem mais definitivo.

Aula aprovada

Ignácio de Sitter, Rafael Lemaitre e Maria Hoyle, os professores da banca, reuniram-se na sala do reitor durante 30 minutos. Foi De Sitter quem comunicou que minha aula tinha sido aprovada.

- Além disso, Carlos Auvergne, queremos convidá-lo para jantar conosco no Humphrey's, seguindo a tradição de trazer para a nossa intimidade os candidatos ao doutorado de Física.

Será que eles sabem que ainda terei testes de Português e Inglês?, pensei.

Universos subseqüentes

Eu não conhecia o Humphrey's, com seu serviço competente e elegante. Cabia-me desfrutar, não mais.
Ignácio De Sitter elogiou insistentemente a minha aula, que classificou como de "Física enriquecida com História e um pouco de terrorismo."

- A propósito, perguntou-me ele em tom de brincadeira, por que a homogeneidade térmica do Universo é tão assustadora?

- Porque tudo se transformará numa formidável sopa de fótons e neutrinos, desorientados e sem nenhuma motivação, retrucou Maria Hoyle, salvando-me de oferecer uma resposta.

- Mas ninguém precisa deixar de ir ao cinema para pegar o avião e fugir do Universo morituro, porque isso ainda vai demorar alguns bilhões de anos, acrescentou Lemaitre.

Maria Hoyle gostou também daquela tirada do atestado de óbito:

- A Termodinâmica criou o Universo e depois o matará. Por isso carrega esse atestado de óbito no bolso do colete.

- E, caso queira, poderá usá-lo para o Universo seguinte, arrematou De Sitter.

- Certamente o fará, emendei, já integrado à nova família.
(continua)

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