sexta-feira, 1 de junho de 2007

CAMINHANDO PARA A INCERTEZA

O céu estrelado acima de mim

As duas referências fundamentais de Kant, "o céu estrelado acima de mim" e "a lei moral dentro de mim", configuram uma alegoria, a do homem perante o Universo grandioso e avassalador. Para definir o nosso papel nesse cotejo desigual, tínhamos de nos posicionar e, ao fazê-lo, optamos de início por nos autoconferir condição e estatuto privilegiados.
Mas o conhecimento científico, adquirido progressivamente, vai servindo para nos ajustar à realidade.
De fato, o homem sofreu um duro revés quando as teorias de Copérnico o desentronizaram do centro do Universo e teve outra decepção com
Darwin, que, acabando com a fantasia do Paraíso e do homem modelado diretamente por Deus, condenou-nos a uma corrida evolutiva corriqueira em disputa com outros seres vivos e sem nenhum caminho ou direito preferencial.
E a partir do momento em que, na década de 1930, Edwin Hubble constatou a expansão do Universo, o homem viu-se relegado a uma insignificante periferia, tornando-se habitante de um planeta mediano, que gira em torno de uma estrela da Via Láctea, uma galáxia que contém mais de 100 bilhões de outras estrelas e dá o vexame de existir ao lado de outros 100 bilhões de galáxias!
Eis a perplexidade da lei moral dentro de mim diante do céu estrelado acima de mim.

A lei moral e as nossas percepções

Também a nossa auto-estima teve de ser rebaixada, sobretudo após o conhecimento que nos foi trazido pela teoria da relatividade e pela mecânica quântica, pois não somos mais independentes das nossas medições, não existem espaço e tempo absolutos, e o princípio da causalidade, que desde Aristóteles tanto nos encantava, mostrou-se inadequado para explicar os processos atômicos individuais.

A natureza trabalha com dois modelos alternativos e mutuamente excludentes, dos quais, conhecendo um, não me é dado conhecer o outro, de acordo com o princípio da complementaridade de Niels Bohr.
E não é só, pois o francês Henri Poincaré
no alvorecer do século XX deu início à teoria do caos, mostrando que a maioria dos fenômenos se inter-relaciona mediante equações complicadas, aumentando a insegurança do homem e sua incerteza perante o Universo. Pois em quase tudo há realimentação interna, iteração constante e toda sorte de perturbações não-lineares, como observamos a cada instante na meteorologia, nas flutuações dos preços nas bolsas de valores, nas correntezas e no crescimento das populações animais.
Ou seja, muito efeito-borboleta à solta, prevaricando por aí e assoberbando a lei moral dentro de mim.

A matemática e a palavra

Restavam-nos a matemática e a palavra.
A matemática pode provar tudo com sua lógica, a partir de postulados criteriosos, como na geometria euclidiana.
Verdade?
Não, não é verdade, provou o matemático Kurt Gödel, em 1931, demonstrando que
existem verdades matemáticas que não podem ser provadas, caracterizando a matemática como insuficiente.
Gödel também demonstrou que a matemática, referindo-se à mesma afirmação, pode demonstrar em certos casos tanto “que esta afirmação é verdadeira” como ”que não é verdade que esta afirmação é verdadeira”. Ou seja, além de insuficiente e incompleta, a matemática é também inconsistente.
E a palavra?

Leibniz propôs que os filósofos se reunissem para definir certas palavras, como moralidade, liberdade, espaço, tempo, e, após, discutissem suas idéias sem nenhuma ambigüidade.
Na mesma linha, Bertrand Russell pretendeu criar um “atomismo lógico”, partindo dos átomos, destes para as moléculas, depois para substâncias e objetos. Desse modo, poderíamos chegar a afirmações abrangentes a respeito do mundo que fossem livres de inconsistências.
É nesse ponto que entra Wittgenstein, demonstrando a inutilidade dessa tentativa, pois a palavra é boa para contar piadas, falar de amor, cantar, contar vantagem, mas tem reduzido valor para discutir a filosofia do mundo.
O sentido do mundo é exterior ao mundo e está fora do nosso alcance.

O reflexo

No seu livro "From Certainty to Uncertainty", publicado em 2002, o físico inglês F. David Peat afirma que essas mudanças de entendimento sobre nossas relações com o Universo têm conseqüências que se estendem para além da ciência, influindo decisivamente na arte, na literatura, na filosofia e nas relações sociais.
É que o céu estrelado pesa sobre a lei moral, e a derrocada dos mitos antropocêntricos se reflete no baixo nível de criatividade das artes e da literatura, com o aumento das nossas dúvidas e perplexidades e pela falta de afirmações abrangentes a serem feitas ou de grandes mitos a serem revelados.

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