domingo, 11 de março de 2007

RETALHOS DO QUOTIDIANO (parte 2/26)

Uma mulher especial

Cecília estaria sempre sob minha proteção econômica. Eu, que ganhava bem na WED, representava o seu seguro, a cujas coberturas a bem da verdade ela nunca precisou recorrer, pois fez nesses oito anos uma carreira vitoriosa, tanto do ponto de vista profissional como financeiro. Ela percebe as oportunidades e administra seus projetos de forma sempre competente, o que, aliás, explica amplamente por que uma arquiteta interessada em modas decidiu tomar cursos de estatística e de econometria no Department of Business da Universidade do Texas.

Cecília planeja, controla, coordena e comanda tudo, como se fosse um Ford, um Fayol, sei lá. Esforço e muito talento igual a êxito, eis uma lei que justifica muito bem os vencedores do mundo. Em pouco tempo ela passou a ganhar mais do que eu. Sempre haverei de reconhecer, com exemplos fartos, que Cecília é uma pessoa diferenciada, e ganhar dinheiro com maestria e dedicação é apenas uma das muitas manifestações da sua inteligência superior. Ela prepondera, esta palavra diz tudo, não importa se a causa é grande, influindo na conta bancária ou no destino das pessoas, ou se irrelevante, como na escolha de um guarda-chuva ou na elaboração de uma lista de convidados.
Com muito dinheiro afluindo de ambos os lados, compramos a mansão do Itanhangá e assumimos uma vida de muito conforto material, que incluía carros importados e constantes visitas à Europa. O importante, porém, é que nós nos bastávamos, pois tudo em volta parecia ser, e era, mero complemento na paisagem colorida da nossa existência.
Cecília sempre teve a minha admiração. Lembro-me, claro, da madrugada inesquecível de Veneza, do colar de Ouro Preto e da vitória do Full Advantage, aquela vez no Jóquei Clube.
Ah, tem também aquela história dos cobertores, inesquecível... Os que não morreram tentavam salvar suas miudezas, que a correnteza ia arrastando de maneira decidida. As pessoas, se quisessem ajudar, poderiam enviar dinheiro ou levar suprimentos e agasalhos ao depósito da Rua da Constituição, 147, lá no centro da cidade.
- Vamos ajudar essa gente, Carlinhos.
Cecília e eu compramos dez dúzias de cobertores, que levamos à Rua da Constituição. Tivemos uma recepção fria e burocrática, quase grosseira, e fomos instruídos a deixar os cobertores num pátio muito sujo, onde desordenadamente se amontoavam outros donativos. Tudo seria removido para um depósito central e distribuído aos flagelados, mas a seu tempo.
Um mês depois, superada a urgência da catástrofe, Cecília quis voltar à Rua da Constituição.
- Tenho ordens para abrir o depósito, disse ela ao vigia.
- Abrir o depósito? Ordens de quem?
- Do general Esperantino Tinoco.
Lá dentro estavam os nossos cobertores, embrulhados como os deixáramos no dia da tragédia. Por ordem do general Tinoco, nós os resgatamos e os encaminhamos a uma instituição de caridade.
- Não conheço esse general Tinoco, Cecília.
- Nem seria possível conhecê-lo, simplesmente porque ele não existe. Foi a minha maneira de pressionar o vigia.
- Ótima, essa. Por que será que pediram donativos e não os enviaram para as vítimas?
- Esse o ponto. Eles embolsaram o dinheiro piedoso, esquecendo-se do resto, pois não tinham intenção nenhuma de ajudar alguém; os suprimentos só entravam na história para dar credibilidade ao apelo.
- Agora entendo; os outros donativos não lhes interessavam.
- Mas há os chatos, como nós.
E, entre estes, os espertos, como Cecília.
(Continua)

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