sexta-feira, 16 de março de 2007

RETALHOS DO QUOTIDIANO (parte 4/26)

Prognóstico falho

Nunca fui capaz de nenhum gesto heróico ou valentia, nem mesmo de uma bravata. Como o poeta, eu me abaixo da pedra, sempre que há uma possibilidade de pedra. Houve uma única exceção. Saindo de uma boate na madrugada inacreditável, percebi um automóvel que se aproximava, muito devagar, na nossa direção. Nem sei como pude ver, num átimo, que alguém do carro mirava contra Cecília; saltei sobre ela, protegendo-a com o meu corpo. Sofri um pesado impacto nas costas e caí, ferido, enquanto o carro desaparecia, cantando os quatro pneus. Um tijolo, sim, um tijolo, cujo motivo jamais saberei explicar. Senti no instante crucial que tudo nos unia. Nada dissemos, nem na hora, nem nunca. Eu teria dado a vida por ela, e acho que me provei isso. Com certeza ela teria feito o mesmo por mim.
Falhar nos prognósticos é a minha matéria e, sei lá, tenho uma propensão para a inconstância. Pois hoje, decorridos oito anos, somos um casal de... descasados. Isso mesmo, des-ca-sa-dos!
Não sei, com efeito, das razões objetivas da nossa separação, se é que existiram. Creio que isso é tarefa para psicólogos e psicanalistas, essa gente que entende de alma e sabe como sondar o que temos de impenetrável. Nos meus insights amadores, concluí muito prosaicamente que no casamento cada um entra com a sua quota de renúncia; são coisas banais, que incomodam, mas seguem toleradas porque o benefício da união é maior que os custos envolvidos. Ceder espaços, conviver com os pequenos defeitos recíprocos, não ter direito à solidão, discutir o que se quer fazer, e também o que não se quer fazer, são miudezas e futilidades que se acumulam ao longo do tempo e paulatinamente vão alterando a equação do casamento. Cecília se aborrecia quando voltávamos antecipadamente de Cabo Frio, na noite de sábado, para que eu não perdesse o meu tênis no domingo de manhã; reclamava das minhas reuniões de trabalho, todas as terças, a varar pela madrugada; e do chope, que eu tomava com os amigos nas noites de sexta-feira. Mas eu também não cedia? Perdi o filme do Ettore Scola para ver Antonio Banderas e, ora pois, a partida final do campeonato para esperar a tia Amália no aeroporto, e muitas vezes aturei intermináveis conversas sobre modas e percorri exposições que não me despertavam nenhum interesse. Ah, tive até de suportar certo estilista americano, que ficou espantado quando percebeu que o Rio de Janeiro está mais para Nova York do que para Floresta Amazônica.
- Floresta Amazônica?
- Sempre pensei que o Brasil fosse uma ilha cercada pelo rio Amazonas, infestada de índios e jacarés, mas cheia de cafezais, escolas de samba e mulheres de biquíni.
- Sim...
- Ao sul de Buenos Aires e ao norte de Copacabana.
A isso, tudo acumulado, eu chamo de ruptura por fadiga de material, pois não vejo outras razões. Na nossa contabilidade conjugal não relaciono nenhum cristal quebrado, nem mágoas ou ressentimentos fundamentais. Rousseau, se me acudisse com alguma de suas autorizadas explicações, talvez atribuísse essa separação improvável à independência financeira dos parceiros, pois só a necessidade consolida e mantém a família; a não-necessidade opõe-se à sua estabilidade, pois torna o desenlace fácil e operacional. Não descarto, porém, a hipótese de que eu esteja a malversar o desconcertante e alucinado Rousseau, cuja obra li, anos atrás, de forma descomprometida e superficial.
(Continua)

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