quarta-feira, 21 de março de 2007

RETALHOS DO QUOTIDIANO (parte 5/26)

Nenhumação recíproca

O passado, sei isso de Aristóteles, nem Deus consegue alterar. Oito anos não são oito meses, muito menos oito dias ou oito horas. Tempo suficiente para qualquer pessoa mudar do primeiro ao último átomo. Ao fim e ao cabo, éramos outros, não outros quaisquer e ocasionais, mas outros consumados, consumadíssimos. Nossas conquistas profissionais e materiais passaram a não representar mais que uma higiene, a não nos garantir nenhum prazer nem estabilidade. Uma higiene que de certo modo até nos desunia. Além disso, os prazeres da cama vão diminuindo lenta e progressivamente, e tenho para mim que não há comunhão de almas e união estável que não sejam garantidas a doses de paixão e de volúpia.
Tédio, quem sabe o tédio não seja exatamente isso?

No início, lá atrás, eu queria um filho, mas Cecília me dissuadiu, pois filhos não se compatibilizavam com a dinâmica dos negócios, que sempre se opõem à normalidade da vida familiar; bastava ver que éramos obrigados a constantes viagens ou a compromissos intermináveis e exaustivos. Recentemente, porém, ela mudou de idéia, e foi a minha vez de vetar a iniciativa. Ela, uma mulher especialmente inteligente, não se deu conta da irresponsabilidade que seria gerar um filho num casamento que definhava, anódino e desaquecido.
- Devemos continuar pensando com calma sobre esse assunto, Cecília. Vivemos num ritmo muito profissional, que teria de se alterar de forma importante antes de introduzir mais alguém no nosso espaço.
Progressão é progressão, e um dia o custo ultrapassa o benefício.
Pois é, Cecília me veio com aquela história de Montgomery Clift e Shelley Winters, um amor que teve de fenecer para ensejar outro amor, muito maior e renovado; eu merecia, assim também, encontrar a minha Elizabeth Taylor, pois a mim não me faltavam os atributos para um merecido lugar ao sol.
Foi assim, civilizadamente assim, que ela me comunicou que o nosso casamento já não lhe interessava.

Eu me esquivei de produzir uma ironia, a de lembrar que nessa história do lugar ao sol o personagem de Montgomery Clift terminou sendo arrastado para a cadeira elétrica. Achei, isto sim, que estava sendo protegido pela sorte, pois separar-me era tudo o que eu então desejava, e, pelo que conheço de mim, se minha tivesse sido a iniciativa, mais um remorso eu teria para administrar. Ela ficou com a nossa casa no Itanhangá, o único bem material que tínhamos em comum, e me indenizou com dinheiro bastante para um apartamento no Leblon.
- Pode ficar com a minha parte.
- Claro que não, Carlinhos.
Uma derradeira convivência ainda nos tocou, mas sem nenhuma animosidade ou irritação. Que nem fariam sentido na nossa história, da qual a separação foi apenas um capítulo necessário. Estranho, porém, foi continuar transitando mais quarenta dias pelos caminhos da casa, pois nenhum cenário permanece neutro, nem impune, em face de um amor exaurido. Até a arte perde o sentido, as cores se esmaecem e, para dizer a verdade, nunca vi a menor graça naquela cortina da sala de visitas, lilás, isso mesmo, lilás, e em momento algum estive de acordo com a moldura que ela escolheu para o Böcklin que arrematamos no leilão da Bartolomeu Mitre.
Não soube mais da Cecília, que alguns meses depois do nosso último contato vendeu a casa do Itanhangá e mudou-se para Paris.
Nem mesmo um telefonema ou um protocolar cartão de despedida.
Um deixou de existir para o outro, aquele estágio na relação entre duas pessoas que poderia se chamar de nenhumação recíproca.
(continua)

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