sábado, 29 de janeiro de 2011

MULHERES GENIAIS (II de III)

SOPHIE GERMAIN ERA “ELE”


A francesa Sophie Germain (1776 - 1831) tinha extraordinária aptidão para Matemática, mas teve de se passar por homem, com o nome de Antoine-August Le Blanc, para estudar na Escola Politécnica de Paris, que no alvorecer do século XIX ainda era uma academia de ciências reservada para homens.

Sophie Germain
("Antoine-Auguste Le Blanc")

Numa época em que as mulheres eram proibidas de estudar temas científicos, Sophie lia escondidamente sobre a Física, de Newton, e a Matemática, de Euler, à noite, depois que seus pais se recolhiam para dormir. Seu talento era, entretanto, tão grande que os maiores matemáticos europeus, como o francês Joseph-Louis Lagrange e o alemão Carl Friedrich Gauss, correspondiam-se com esse ""Le Blanc", sem saber que “ele” era ela.
A verdadeira identidade de Monsieur Le Blanc foi descoberta quando Napoleão invadiu a Prússia, em 1806. Pois Sophie Germain enviou uma carta ao general francês que comandou a invasão, pedindo-lhe que Gauss não fosse molestado.


- Por que me poupam?, perguntou o matemático alemão.


- A pedido de uma moça francesa, respondeu o general. Na sequência desses eventos, descobriu-se a verdadeira identidade de Antoine-August Le Blanc.

Gauss

A correspondência de Sophie com o matemático Adrien-Marie Legendre trouxe uma contribuição importante para a Teoria dos Números. Ela também se destacou nos estudos da Matemática Pura, da Matemática Aplicada e sobretudo no campo da elasticidade dos materiais, tendo sido a única pessoa a submeter um trabalho no concurso organizado pelo Instituto Francês de Ciências, em 1808, para responder ao seguinte desafio:

“Formular uma teoria matemática para as superfícies elásticas,
demonstrando sua compatibilidade com os dados experimentais.”


Uma medalha de ouro, de um quilograma, era o prêmio do vencedor, mas Sophie recusou-se a comparecer à cerimônia de premiação.
Antes de morrer, Sophie escreveu um ensaio sobre a filosofia da ciência, que foi elogiado pelo filósofo Augusto Comte.
Gauss queria que a francesa recebesse um grau de doutora honoris causa da Universidade de Göttingen, na Alemanha, mas a morte de Sophie Germain, em 1831, impediu que a honra lhe fosse conferida.



Na estrutura da Torre Eiffel foram gravados os nomes de 72 sábios que de algum modo contribuíram para sua construção. Sophie Germain foi ignorada, não obstante seus estudos sobre resistência dos materiais, sem os quais a obra monumental não poderia ter sido erigida.

“Mulher solteira, sem profissão”

O atestado de óbito de Sophie Germain registrou que se tratava de “mulher solteira, sem profissão”, em vez de “matemática” ou “cientista”.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

VERSOS RIDÍCULOS

Adeus para nunca mais!

Mesmo longe de May, estava levando a sério o propósito de adquirir um pouco de cultura, tanto que me inscrevi num curso sobre filósofos pré-socráticos e decidi ler alguns poucos autores de primeira linha, como Schopenhauer e Machado de Assis. Lia devagar e escassamente, por falta de tempo, mas cheguei a Albert Camus, que, ao contrário daquele seu estrangeiro, repudia a depressão e ama a vida:

- Amo a vida, eis minha verdadeira fraqueza. Amo-a tanto, que não tenho nenhuma imaginação para o que não seja vida.


Também amo a vida, pensei, e minha vida está ligada à May. Naquele momento decidi telefonar para ela. Tanto tempo passado, quase quatro semanas, e esgotado o ressentimento, não se recusaria a me atender. Camus seria o pretexto. Sabe, May, não é por nada não, mas queria lhe perguntar sobre Camus, pois ando pensando naquele filme do estrangeiro e quero discutir com você sobre os livros dele. Afinal, há tanto tempo não nos falamos. Não sei, isto é, não sei mesmo... Quem gosta de física está irremediavelmente ligado ao drama do Giordano Bruno, pobre dele, que não se retratou, e teve essa história do senhor Meursault, que também não se retratou. Retratação, não; arrependimento, também não. Quero ver se compreendo o Giordano pela discussão e entendimento do Meursault. Acho, nem sei se acho, que o senhor Meursault não passa de uma triste metáfora. Você pode me ajudar?

Giordano Bruno

- Na hora sairia melhor... Pois uma coisa era certa: meu desempenho cresce, e muito, quando estou sob pressão.

Meu coração acelerou quando perguntei se ela podia me atender.

- May? Ela se despediu do Museu há cerca de dez dias.

- Despediu-se do Museu? Demitida?

- Não, não, pediu demissão. Ela se mudou para Londres, acompanhando o Kurtis.

- Londres? Kurtis, quem é Kurtis?


- Sim, Kurtis, o professor da Economia.

O telefone quase me caiu das mãos. Onde estou, meu Deus? Não ciciam mais os buritis, às noites seguem-se os dias, mais forte que o tufão, meu filho, é Deus... Os rios correm pressurosamente para o mar, sigam-me os que forem brasileiros, Deus não criou o mundo, mas emanou-o, um burro coça o outro, tudo se afirma, se nega e se supera, ama com fé e orgulho a terra em que nasceste, a discórdia é a peste e a tolerância, o remédio, ridendo castigat mores, não existe amor sem sexo, o pão nosso de cada dia nos dai hoje, amar foi minha ruína, os brutos também amam, o encouraçado Potenkim, como era verde o nosso vale, ninguém assistiu ao enterro da tua última quimera.



- Ninguém assistiu ao enterro da tua última quimera, idiota!

Fazer o quê? Escafeder-me, evaporar, gritar viva a Rainha Elisabeth II e abaixo as três leis de Newton, admitir que de solidão morrem os crisântemos amarelos e confessar que odeio a palavra arrebol e seus termos cognatos, antes de reconhecer que, afinal e definitivamente, sou o maior cretino de toda a história da humanidade, não importa como, quando ou por quê, seja em Araxá, Veneza ou Tegucigalpa.
Foi para a Inglaterra, com um tal de Kurtis!
Lembrei-me naquele momento de um verso do Fernando Pessoa: como a dobrada à moda do Porto, o amor não é prato que se coma frio. Nem hoje nem sábado, acrescento eu. E o idiota, aqui, idiota ao quadrado, e de gravata borboleta, fazendo versinhos, bonitinhos, metrificadinhos, cheios de riminhas. Comendo dobradas a frio, com chá de capim cidreira!


- E dizer que pensei em ir ao Museu, de poesia em punho, ora essa! Versos ridículos, decididamente ridículos!

Sobrevida

- Adeus, para nunca mais!

May ainda sobreviveu em mim por algum tempo. Muitas vezes interrompi os estudos para lembrar os momentos bons ou para ruminar minha decepção com o esdrúxulo desenlace. Passadas algumas semanas, engraçado que seja, subitamente meus sentimentos mudaram completamente. Após uma noite de sono profundo, acordei mais tarde do que habitualmente, consultei-me alma adentro, espreguiçando-me demoradamente: senti que May já não era importante para mim. Tudo fora maravilhoso, com saldo positivo, mas a partir daquele instante ela deixou de ter significado, como se nunca tivesse existido. E em voz alta repeti várias vezes o verso da Última Canção do Beco, de Bandeira: "Adeus, para nunca mais".

- Adeus, para nunca mais!

sábado, 22 de janeiro de 2011

MULHERES GENIAIS (I de III)

Hipácia de Alexandria, mártir da ciência

Hipácia (370- 415), filha do professor Teon, da Universidade de Alexandria, foi educada por seu pai para ser uma mulher perfeita.Tornou-se filósofa, matemática e astronôma, para além de ser considerada a maior oradora de seu tempo. A ela atribui-se a invenção do astrolábio e do planisfério, que são instrumentos usados na Astronomia, e de um hidrômetro, usado na Física. Seu talento para ensinar Astronomia, Filosofia e Matemática atraía admiradores de todo o império romano, tanto pagãos como cristãos. Consta que era constantemente procurada por matemáticos de todo o mundo para encontrar a solução de problemas que não conseguiam resolver.


Obcecada pela Matemática e pelo processo de demonstração lógica, exercia grande influência nos meios filosóficos alexandrinos, tentando unificar o pensamento matemático de Diofante com o neoplatonismo de Plotino.

- Pensar errado é melhor do que não pensar, afirmava Hipácia para seus alunos.

Sua devoção à ciência foi o motivo de sua trágica morte, pois Cirilo, o patriarca de Alexandria, começou a perseguir os seguidores de Platão, aos quais chamava de “hereges”, e colocou Hipácia no topo da lista de pessoas indesejáveis.


Cirilo

Hipácia representava uma ameaça por defender a Ciência e o Neoplatonismo, para além de ser mulher, e muito bonita, o que exacerbava todos os ânimos e aumentava a intolerância contra ela. Numa época em que se procedia à marginalização das mulheres nas funções do poder, uma pagã assumia o símbolo da sabedoria e concorria com as autoridades religiosas da sua cidade. Como admitir que uma mulher pregasse em suas aulas que o Universo era regido por leis matemáticas?

Alexandria

Insuflados pelo patriarca, fanáticos tresloucados investiram contra ela, no ano de 415, num dos episódios mais lamentáveis da história da humanidade, que foi assim descrito pelo historiador inglês Edward Gibbon:

"Num dia fatal, na estação sagrada de Cuaresma, Hipácia foi arrancada de sua carruagem, despida e arrastada nua para a igreja, onde foi desumanamente massacrada pelas mãos de Pedro, o Leitor, e sua tropa de fanáticos selvagens e impiedosos. A carne foi esfolada de seus ossos com ostras afiadas
e seus membros, ainda palpitantes, foram atirados às chamas".


Acredita-se que a obra de Hipácia tenha incluído importantes estudos sobre a Aritmética de Diofante, as Cônicas de Apolônio e o Almagesto. Nada, porém, chegou até nós, talvez como conseqüência da destruição da biblioteca de Alexandria, no ano 642, pelos árabes do General Amr Ibn Al As, que conquistaram o Egito sob o comando do Califa Omar. A partir do episódio de Hipácia, Alexandria perderia o seu esplendor e o Ocidente iria mergulhar no obscurantismo e nele permanecer durante vários séculos.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

POETÂNCIAS

"EU", POR ELES


('É porque nada sou que tudo sinto!' - Augusto Frederico Schmidt)



EU, que faço versos como quem morre...

EU, que perdi o bonde e a esperança...

Bandeira e Drummond

EU, que nada posso lhes prometer, a não ser sangue, suor e lágrimas...

EU, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas...

EU, que te peço perdão por te amar assim tão de repente...

EU, que te quero verde, verde vento, verdes ramas...

Federico García Lorca

EU, que te direi as grandes palavras...


EU, que ganhei (perdi) meu dia...

EU, que guardo no peito a imagem querida do mais verdadeiro, do mais santo amor...

EU, que trago-te flores - restos arrancados da terra que nos viu passar unidos e ora mortos nos deixa, e separados...


EU, uma educação pela pedra, por lições, para aprender da pedra, frequentá-la...

João Cabral de Melo Neto

EU, que serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História...

EU, palhaço das perdidas ilusões...
Orestes Barbosa
EU, que até morrer estarei enamorado de coisas impossíveis...

EU, que errei, fui homem...

EU, que na curva perigosa dos cinquenta derrapei neste amor...

EU, que comigo me desavim, não posso viver comigo, nem posso fugir de mim...

Sá de Miranda

EU, eunuco, reles, verme, incauto e sagaz...

EU, que comecei a morrer muito antes de ter vivido...

EU! Ai do que em mim me chamo EU!

EU? EU sou o Incriado de Deus, o demônio do bem e o destinado do mal, mas EU nada sou!

Vinícius


Observação do gozador,
no quadro-negro

- EU, filho do carbono e do amoníaco, já Bocage não sou!


C + CO(NH2)2


sábado, 15 de janeiro de 2011

POETA POR UM DIA

Walter Raleigh e Florbela Espanca



- Pode bater, homem, pode bater!

Walter Raleigh, o grande herói britânico, escreveu uma poesia-epitáfio pouco antes de ser decapitado a machadadas, a qual tive a ousadia de traduzir:

Assim é o Tempo, que toma com desdém
Juventude e alegria, as coisas que a gente tem,
E nos retribui, sim, mas com velhice e poeira;
Ele, o cujo, na morada escura e derradeira,
Perdido nosso rumo e sem nenhum caminho,
Vai calando nossa história de mansinho:
Mas da terra, da sepultura e do pó, em meio,
A mim o Senhor me resgatará, eu creio.

Uma certeza que me acompanha existência afora, nem sei exatamente por quê, é a de que todo mundo acaba fazendo alguma poesia, mesmo que seja umazinha só, mirrada e despretensiosa. Talvez, assim como Raleigh, na hora da morte. Serei uma exceção a essa regra, eis o que eu pensava, pois sempre estive certo de que não tenho nenhuma afirmação abrangente a fazer, nem para os amigos, nem sobretudo para a humanidade.

- Gosto dos versos dos grandes poetas, neles muitas vezes me vejo refletido, mas falta-me talento para a arte. Embora apreciador das iguarias, nunca me atreverei a cozinheiro.

Asim eu pensava. Devo confessar que esse foi mais um engano de minha parte. Pois, no desespero do mal-entendido que me fizera perder a namorada, chegou minha vez de ser poeta por um dia, e outro dia registrei no papel vinte versos que brotaram de uma só vez na minha mente. Neles confessava meu amor, abrindo-me como se fosse uma Florbela Espanca.

- Procurei o amor que me mentiu

Essa poesia tem de ser mostrada, imaginei, ou deve ir para a lata do lixo. Foi por isso que pensei em ir ao Museu, procurar May e depor-lhe o meu amor. Uma declaração de amor, seguida de uma declamação, de acordo com um teatro que cheguei a ensaiar.

- Fiz uma poesia para você, veja aqui, os primeiros versos da minha vida. Versos ruins, sem dúvida, o que não tem nenhuma importância, nem consequência. Porque não sou poeta, May, mas um homem confessando o seu amor.

Não era tão simples, todavia. Para ir ao Museu, teria de encarar, e vencer, minhas resistências intestinas, meu constrangimento e o horror que padeço pelo vexame. Vou amanhã, não, melhor não, terça-feira é mais apropriado, vou depois de amanhã, quem sabe vou, quem sabe não vou. Até que, tudo aferido e sopesado, prevaleceu meu recato e acabei não indo. Frustrou-se desse modo a minha primeira iniciativa de tentar chegar até a May.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

EFEITO-BORBOLETA

Minha cachorrinha

O acaso decide muita coisa ou, explicando melhor, um incidente corriqueiro pode ter consequência importante, quer nos fenômenos naturais, quer na vida das pessoas. Um exemplo: o Benício deve sua existência à gripe de um carteiro. Deve, sim. Por causa da gripe, a carta não seguiu; por causa da carta que não chegou, Ismael não foi avisado e não compareceu; por causa do Ismael, que não veio,Tereza chorou; João decidiu consolá-la, namorou-a, casou-se com ela e o Benício nasceu.

- Há, portanto, uma condição inicial, irrelevante para todo mundo, mas fundamental para a existência do Benício: a gripe do carteiro.

Para os mais exigentes, o assunto também pode ser tratado cientificamente, dentro de um tópico chamado de “Ciência do Caos”, que procura ordens e padrões nos fenômenos complexos da natureza. Em 1966, o Professor Edward Lorentz, do MIT, publicou um artigo intitulado “Previsibilidade: o bater de asas de uma borboleta no Brasil provoca um tornado no Texas?”. Nele introduziu a teoria do “efeito-borboleta”, uma formulação que mostra matematicamente que pequenos acontecimentos podem ter consequências importantes na explicação dos fenômenos. Foi aquele sopro, a casca de banana, o pneu furado, a bola arremessada para a lateral, a gripe do carteiro, cujos efeitos, ampliados segundo relações não-lineares, exacerbam as consequências, às vezes provocando tornados ou, às vezes, dando vez ao Benício.

- Gripe do carteiro ou efeito-borboleta, seja lá o que for, há também um acaso importante, e definitivo, na minha história com May.


Saíamos certa noite do motel, quando uma desconhecida, irrompendo do nada, deu um empurrão em May e passou a gritar comigo, num gesto de pura alucinação. Confesso constrangidamente que tenho cara de sósia, do tipo mais genérico e vulgar, tantas vezes já me confundiram com outras pessoas. Nunca, porém, o mal-entendido me veio com tanto fervor e destempero.

- Pensa que a coisa vai ficar assim, seu cretino? Você me deixando por essazinha, aí? Não adianta tirar a barba, nem o bigode, que eu te reconheço debaixo de qualquer disfarce, mesmo fantasiado de satanás ou de vice-rei da Catalunha! Eu irei atrás de você até as profundezas do inferno!

De um lado, a mulher equivocada, com sua fúria e desespero, e, do outro, eu, um homem desconcertado, sem saber o que fazer, nem como reagir.


- Mas quem é a senhora?

- Não sabe quem sou eu, essa é boa, muito boa! E, além de tudo, me chamando de senhora! Você sempre me chamou de minha cachorrinha, não se lembra não, seu cretino?


Haja efeito-borboleta para explicar aquela mulher! Cada vez mais desorientado, só a custo me desvencilhei da desvairada. Quase uma libertação. Quase, não mais que isso, pois logo constatei que May havia abandonado o local, desaparecendo completamente.

- À perplexidade daquele momento juntou-se a decepção que se seguiu.

May recusou-se a atender aos meus telefonemas. Não sei se doeu mais a separação ou se a lógica absurda na qual se baseou. Semanas a fio senti uma terrível sensação de impotência, a de um inocente condenado por causa de um lamentável mal-entendido, inerme e inerte diante de um tribunal chamado May, a mulher que eu amava. Que ouviu uma acusação contra mim, de nenhum fundamento, julgou-me e condenou-me, sem sequer conceder-me a generosidade de me ouvir.

sábado, 8 de janeiro de 2011

UMA FESTA DE INTELECTUAIS

SHAKESPEARE E O DENTISTA

Sobravam no ambiente elegância e refinamento. Angelina Soares declamou a poesia “Congresso no Polígono das Secas (ritmo senador; sotaque sulista)”, de João Cabral de Melo Neto. A seguir, os líricos Beniamino Prior e Katia Ricciareli, que então visitavam o Rio de Janeiro, cantaram, à capela, “Parigi, o cara, noi lasceremo”, da Traviata. Completando, houve um torneio de mágicas, muito divertido, e até hoje não sei explicar por quê, nem como, a dama de ouros, dividida em quatro, foi parar, toda reconstituída, na bolsa da Valéria Castegliani.

Mais divertido, porém, foi o sorteio para escolher quem iria propor um enigma relacionado com Shakespeare e suas personagens, ficando a impressão de que quase todos estavam com suas histórias muito bem preparadas. A sorteada foi uma escritora chamada Alice Ben-dov. A história que narrou era sobre um dentista do Leblon, o qual certo dia recebeu uma carta para lá de esquisita:

“Silvestrini, você não passa de um dentista idiota, pois ignora sua própria história. Se desejar conhecê-la, almoce amanhã no Humphrey’s, exatamente à uma. Como você está familiarizado com Shakespeare, se olhar para baixo, saberá o porquê... Tiago Lessone.”


Eis o que Silvestrini pensou dessa carta: “Sou idiota, como não, e muito obrigado por manifestar sua abalizada opinião. Ignoro a minha história? Almoçar à uma, no Humphrey’s? Ora, pois! Como conheço Shakespeare, só por isso, basta olhar para baixo... Para ver a rua? Alguma sorveteria do Hamlet, com picolés da Dinamarca, ou o Rei Lear, com seus bolinhos de bacalhau e geladeiras de segunda mão? Muito barulho por nada? Algum mercador de bugigangas importadas? Ou será a jaqueira do nosso playground? Peço-lhe, querido bardo, a gentileza de informar ao senhor Tiago Lessone, seja ele quem for, que olhei para baixo e, para minha grande surpresa e desorientação, lá estavam os meus pés, em número de dois, calçando sapatos pretos de tamanho 41, assentados tranquilamente sobre o chão do meu consultório, e, mais abaixo, adiante, uma avenida dividida por um canal ornado de flores e de garças elegantes. Peço-lhe, mais, que informe ao Lessone que não tenho nenhum tempo, nem disposição, para comparecer ao Humphrey’s”.

Dias depois, o dentista recebeu outra carta:


“Silvestrini, você não deu importância à minha carta e não compareceu ao Humphrey’s. Sua história não lhe interessa? Segunda chance, amanhã, no Humphrey’s, às 13 horas. Olhe para baixo! Tiago Lesst.”


Havia uma mudança, logo percebida pelo Silvestrini, pois o sobrenome, Lessone, fora trocado para Lesst. Pela segunda vez decidiu não fazer nada. Houve, poucos dias depois, uma terceira carta, recomendando mais uma vez que comparecesse ao Humphrey’s. Só que desta vez a assinatura mudara para Tiago Lessfirst.

No Humphrey's

Tudo muito esquisito... Silvestrini pensou longamente nos três sobrenomes do Tiago, entendeu o recado e decidiu comparecer ao Humphrey’s na hora sugerida pela terceira carta. E lá encontrou sua mulher abraçada com um amante. O dentista não é um homem de grandes explosões, mas acabou separando-se da mulher.

- Por que Silvestrini atendeu à terceira carta?, eis o enigma, arrematou Alice, dirigindo-se aos presentes.


Os convidados tinham trinta minutos para desvendar a história. Houve, no início, muito palpite, desorientação e manifestações equivocadas. Depois, todos permaneceram em silêncio, e tão longa foi a pausa que tive a impressão de que ninguém chegaria à solução. Quando já se encerrava o prazo, entretanto, Susana de Malta, que é tradutora juramentada e mora na Aristides Espínola, apresentou a solução do enigma:

- A instrução de olhar para baixo tinha a ver com o sobrenome cambiante. Não era para olhar os sapatos ou para a rua, mas a parte de baixo da carta, ou seja, a assinatura do Tiago. Tiago “Lessone” é Tiago sem “one”; Tiago “Lesst” é Tiago sem “T”; e Tiago “Lessfirst” é Tiago sem a inicial. Três informações na mesma direção, pois Tiago sem a inicial é Iago. Sim, Iago, a personagem pérfida que insinua para Otelo que Desdêmona tem um romance secreto com Cássio. Na tragédia de Shakespeare, Otelo acredita na intriga e, possuído pelo demônio do ciúme, estrangula Desdêmona e se suicida.


Kiri Te Kanawa, como Desdêmona

- Compreendemos muito bem, ou seja, uma recorrência shakespeariana como forma de alertar sobre a mulher. Silvestrini só entendeu, afinal, porque conhecia a obra de Shakespeare, o que significa que cultura, entre outras nobres finalidades, também serve aos maridos enganados.

- Serve muito, observou Alice. Silvestrini teve mais bom senso que Otelo. Quero dizer, foi menos radical...


- Só que no caso do Silvestrini a denúncia era verdadeira, ao contrário do que ocorre na tragédia de Shakespeare.

- Mais uma agravante contra Otelo. Esse Humphrey’s deve ser um lugar elegante...

- Sim, os clientes fazem as reservas com antecedência, o que permitiu as cartas antecipadas do Tiago sem T para o dentista. E tem mais...O Tiago sem T, se não for o gerente responsável pelas reservas, tem acesso a elas, creio eu.


- E, além disso, conhece Shakespeare...


- Tudo é possível numa história virtual...

Alice e Susana receberam xilogravuras do Scliar, como prêmio. A festa ainda prosseguiu e encerrou-se depois de algumas projeções coloridas do sítio arqueológico de Epidauro, um santuário situado a nordeste do Peloponeso.

Peloponeso, no sul da Grécia

-May...

- Vai me perguntar onde fica o Peloponeso?

- Não, não. Quero apenas dizer que essa turma sabe se divertir.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

UM ROMANCE DE CAMUS

Estrangeiro de si próprio

Camus

Uma semana depois May me ligou novamente, sempre com boas iniciativas.

- Já tenho os ingressos.

- Mas qual o filme?

- Isso também é importante. O Estrangeiro, baseado num romance de Albert Camus.

Nota dez para a May, outra vez. O senhor Meursault decide ir ao enterro da mãe, cuja idade desconhece. Sei lá, sessenta anos. Encontra-se depois com Marie Cardona e vê um filme de Fernandel; Mersault se relaciona com um vizinho, Salamano, que tem um cachorro nojento; e com outro, Raymond Sintès, que é cafetão e tem o hábito de espancar a mulher até o sangramento.


No domingo, Meursault, Marie Cardona e Raymond Sintès vão para a casa de praia de Masson, um amigo de Raymond. Dois árabes atacam Raymond na praia, pois querem vingar-se da surra que deu na prostituta. São repelidos por Raymond e Masson, que, a seguir, voltam para casa. Meursault passeia pela praia sozinho e avista um dos árabes, que exibe a faca, mas sem nenhuma atitude agressiva. Era só Meursault voltar também para casa, e tudo estaria terminado. Mas havia o sol na cara. Mersault atira, e o árabe tomba, fulminado. Depois atira mais quatro vezes contra o corpo inerte do homem caído. O advogado, o juiz e o promotor tentam entender o gesto de Mersault, que, de fato, nunca se arrepende de nada porque é dominado pelo que vai acontecer.

- Eu matei o árabe por causa do sol.

O capelão insiste em falar com o senhor Meursault, pois precisa conquistar sua alma de condenado à morte.



- Deus irá ajudá-lo, Meursault.

- Não quero que ninguém me ajude, e me falta tempo para me interessar pelo que não me interessa.

Uma obra de Camus, mostrando, numa reflexão sobre o absurdo, um homem que se estranha, estrangeiro de si próprio.


- Bota esquisito nisso...

- Muito esquisito.

- Bota esquisito nisso, Carlinhos.

sábado, 1 de janeiro de 2011

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Um pouco do "Resíduo"
(muito pouco)

De tudo ficou um pouco.
Do meu medo. Do teu asco.

Dos gritos gagos.

Da rosa ficou um pouco.
Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato se cobriu.

Ficaram poucas roupas, poucos véus rotos,
pouco, pouco, muito pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco do teu queixo no queixo de tua filha. De teu áspero silêncio um pouco ficou, um pouco nos muros zangados, nas folhas, mudas, que sobem.

Se de tudo fica um pouco, mas por que não ficaria um pouco de mim? No trem que leva ao norte,
no barco, nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
Na consoante? No poço?

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)