sábado, 27 de fevereiro de 2010

LUDWIG BOLTZMANN

Outra equação no túmulo

Até o início do século XX os físicos dividiam-se em duas correntes: os mecanicistas, que acreditavam ser possível explicar os fenômenos dos sistemas pelos movimentos dos átomos e moléculas, impondo à natureza um comportamento estatístico, e os energistas, que defendiam serem os fenômenos uma consequência das trocas de energia.
Para estes últimos, os átomos não tinham existência real.

Os físicos não se entendiam

Ludwig Boltzmann (1844-1906) , que foi professor das universidades de Graz, Viena, Munique e Leipzig, tornou-se o mais ativo mecanicista, insistindo em explicar os fenômenos macroscópicos (pressão, temperatura etc) pelas interações entre átomos e moléculas, no seu constante movimento. A maioria dos físicos, até mesmo Ernest Mach e Wilhelm Ostwald, que eram seus colegas de universidade, rejeitavam essa concepção, sem querer aceitar a existência real dos átomos e moléculas. Ernest Mach escreveu:

- Os átomos
são objetos do pensamento e não podem ser percebidos pelos sentidos. Só existem como metáfora.

Vieram, porém, os químicos...
Boltzmann manteve uma interminável disputa com o editor da publicação científica mais importante da Alemanha, que não admitia nos textos a serem publicados a consideração de átomos e moléculas como entidades reais, senão como constructos mentais e criação da matemática pura. Teve, porém, o apoio de Maxwell, na Escócia, e de Gibbs, nos Estados Unidos, e de grande parte dos químicos, que a esta altura já estavam cientes da teoria atômica de John Dalton (1766-1844), que era um químico experimentalista, concebida nos primeiros anos do século XIX, cuja pode ser consubstanciada nas seguintes afirmativas:

John Dalton

Os átomos são partículas reais, que se compõem para constituir a matéria, permanecendo inalterados nas reações químicas;

Os átomos de um mesmo elementos são iguais e de mesmo peso;

Os átomos de elementos diferentes são diferentes entre si;

Os átomos integram os compostos segundo proporções numéricas fixas; e

O peso de um composto é igual à soma dos pesos dos átomos dos elementos que o constituem.

A entropia é o logaritmo do caos
Em 1906, quando passava férias na Baía de Druino, perto de Trieste, Boltzmann se enforcou. Não se sabe se as acirradas disputas científicas que ainda o acompanhavam pesaram para esse trágico desfecho, sendo certo, porém, que Boltzmann tinha uma natureza muito depressiva.



S = k log W

Boltzmann definiu a entropia de forma geral e inequívoca em termos mecânicos, a partir da teoria cinética dos gases. No túmulo de Boltzmann, no Cemitério Central de Viena, encontra-se gravada a equação correspondente às suas idéias:

S = k log W

S é a "entropia" e W, uma medida do caos do sistema, sendo k a constante de Boltzmann. Ou seja, a fórmula de Boltzmann relaciona entropia e caos. Sua teoria foi definitivamente aceita pouco depois de sua morte, quando medidas de J. Perrin, em 1908, mostraram o movimento dos átomos e moléculas.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

MULHERES E ÓPERAS

MELISANDE, DE BANDEJA

Quando cheguei ao restaurante, era a Melisande que me aguardava.

- Muito prazer em conhecê-lo, Edu, que sou a Melisande. A Irene teve um problema de última hora e pediu-me que aqui estivesse em seu lugar.


- Muito prazer. Espero que o problema da Irene não seja grave e muito agradeço pela gentileza da tua presença.

Melisande

O normal teria sido suspeitar que se tratava de uma armação da Irene, que vivia me aconselhando a escolher uma moça para casar, pois eu já completara 26 anos. O que senti, porém, foi a sensação de estar sendo ajudado pela sorte. Acabara de ser promovido a diretor de departamento, uma benesse muito acima do que ousaria esperar, e estava, inesperadamente assim, diante de uma moça de extraordinária beleza.

- Já reparei que, quanto mais me esforço, mais sou ajudado pela sorte.

- O quê?

- Nada, não.

O Humphrey’s estava menos cheio do que habitualmente, e pudemos conversar longamente. Era uma estudante de jornalismo, que estava se especializando em artes cênicas. Muito culta, podia discorrer sobre temas variados, Borges, Machado de Assis e Caravaggio, tênis, hipismo, coisas assim. Resolvi falar também, e meu forte no terreno da cultura é ciência, mas terminei fazendo uma digressão meio inconsequente sobre Galileu e Nicolau de Cusa.

Pauline Bonaparte, de Caravaggio

Terminado o jantar, levei-a à sua residência, no Itanhangá. Foi quando me convidou para assistir a uma ópera, na semana seguinte, na residência de Elvira Stokes, que exibia em reuniões de amigos as óperas que importava da Inglaterra.

- Mitridate, de Mozart. Não se preocupe, que sou muito amiga da Elvira e posso levá-lo à sessão, sem constrangimentos de nenhuma natureza.


Mozart

Tudo isso
veio a calhar, pensei, quando regressava ao Leblon.

- Já reparei que, quanto mais me esforço, mais sou ajudado pela sorte.

A ópera


“Mitridate, Rei de Ponto” é uma ópera genial, que Mozart compôs durante um passeio pela Itália. Mitridate, o rei, luta lá fora contra os romanos, enquanto, em casa, seus filhos, Sifare e Farnace, fazem a corte a Aspásia. Cuja é, nada mais, nada menos, que a noiva de Mitridate. Isso mesmo, Mitridate e seus dois filhos estão apaixonados pela mesma mulher. Mitridate, ao regressar, decide matar a noiva e os filhos, o que não se concretiza porque tem de voltar à guerra. Ao fim e ao cabo, Mitridate morre em combate, Sifare fica com Aspásia, e Farnace, com Ismênia, filha do rei de Pártia.


- Todos se reconciliam perante o rei moribundo.

A ópera é uma sucessão de árias no mais puro estilo de Mozart, que a compôs quando tinha apenas 14 anos, tomando por base um romance de Racine. Estreou em 1770, no Teatro Regio Ducal, de Milão, e na ocasião foi exibida 21 vezes.

- 14 anos? Eu não era capaz de nada quando tinha 14 anos...


- Não soltava pipa, nem jogava pião?


- Jogava futebol, muito mal, tanto que eu ia sempre para o gol.

Farinelli

- Farnace é um papel para “alto castrato".

- Pensei que esse negócio de castrado era coisa do passado...


- Você tem razão. O castrado Farinelli foi o maior cantor de ópera do século XVIII, com sua voz de soprano ligeiro. Desde o início do século XX, não há mais cantores castrados. O papel a eles correspondente atualmente é confiado a um contratenor,
cantor masculino adulto que canta, em falsete, numa tessitura correspondente à do soprano, como o alemão Jochen Kowalski, a que acabamos de assistir.

Jochen Kowalski (Farnace)

Oito meses depois

Foi por causa de Melisande que resolvi me voltar para a cultura, dedicando boa parte do lazer à literatura, música, filosofia e história. Pois a ignorância humilha e fragiliza - se Rui Barbosa tivesse dito isso, eu seria o primeiro a aplaudir. Só para mostrar minha evolução, aproveito este ensejo para mencionar quatro óperas de Mozart, cada uma melhor que a outra: "A Flauta Mágica", "Dom Giovani", "As Bodas de Fígaro" e "Così Fan Tutte".

Irene

Outra consequência, a mais importante, é que Melisande e eu vamos nos casar amanhã, tendo Irene como madrinha.

- Ela me garantiu que desta vez não faltará.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

DIOFANTE DE ALEXANDRIA

UMA EQUAÇÃO NO TÚMULO

Três gregos da Antiguidade foram fundamentais na construção dos grandes pilares da Matemática: Pitágoras ( cerca de 570 a. C. - 496 a. C.), criador da Teoria dos Números; Euclides (360 a.C. — 295 a.C), autor dos Elementos, introduzindo a Geometria Euclidiana; e Diofante (depois de 150 a. C. - antes de 350 d. C.), um dos criadores da Álgebra.

Euclides

Diofante é certamente o menos conhecido dos três. Sabe-se, com efeito, que morou em Alexandria (assim como Euclides). Seu lugar de nascimento é desconhecido, tanto quanto o período em que teria vivido, sendo certo, porém, que nasceu depois do ano 150 a. C., porque seus livros citam Hipsicles (240 a. C. - 170 a. C.), e antes de 350 da nossa era, porque seu nome é citado por Theon (335-395), pai de Hipácia e professor da Universidade de Alexandria.

Alexandria

Foi Diofante quem introduziu as abreviaturas e convenções que permitiram exprimir as diversas relações e operações algébricas, revolucionando a "álgebra com palavras" dos babilônios. Antes de Diofante, a matemática dos gregos se limitava à teoria dos números, de Pitágoras, e à geometria estudada por Platão e seus seguidores, conforme depois sistematizada por Euclides.
Alexandria esteve, de fato, na vanguarda da Matemática, com Euclides (360 a.C. — 295 a.C); Arquimedes (287 a.C. - 212 a.C.); Apolônio de Perga (262 a. C - 190 a. C.), o geômetra que estudou as cônicas e criou os termos “elipse”, “parábola” e “hipérbole”; Hiparco de Nicéia (194 a.C. - 120 a.C.), que criou a trigonometria; Diofante (período indeterminado entre 150 a. C. e 350); e Hipácia de Alexandria (370- 415).

Aritmética
Todo o trabalho de Diofante foi reunido nos treze volumes da sua "Aritmética", dos quais apenas seis sobreviveram à destruição da Biblioteca de Alexandria. Quando o Califa Omar ordenou a queima dos livros, em 642, por achar que livros não interessavam, ou eram prejudiciais ao Corão, iniciou-se um período de estagnação da Matemática no Ocidente. Os estudos matemáticos tiveram prosseguimento com indianos e árabes, que se valeram do conhecimento dos gregos, expresso nos livros salvos da destruição da Biblioteca. Dedicaram-se, indianos e árabes, a reconstituir demonstrações de teoremas que se haviam perdido e tiveram o mérito de introduzir o zero e a numeração indoarábica, hoje usada por todos os povos civilizados, indistintamente.
A retomada dos estudos matemáticos na Europa seria feita de forma tímida a partir de 1202, com a publicação na Itália do livro de Leonardo Pisano
("Liber Abaci"), e mais fortemente a partir de 1453, quando os turcos saquearam Constantinopla. Os intelectuais bizantinos fugiram para o Ocidente com os textos a seu alcance, entre os quais se encontravam seis dos treze volumes da "Aritmética", de Diofante. Foi assim que a Europa tomou conhecimento de Diofante e da Álgebra.

O túmulo de Diofante

Algumas escassas informações sobre Diofante estão gravadas em seu túmulo, na forma de uma sequência do primeiro grau:

"Sua infância durou um sexto da sua vida; depois, usou barba por um doze avos; mais um sétimo, contraiu núpcias; seu filho nasceu cinco anos depois; esse filho, fraco e doente, teve a metade da vida do pai; e o pai, desgostoso, sobreviveu apenas mais quatro anos."


Quem se der ao trabalho de resolver a equação sugerida por esse curioso epitáfio, ficará sabendo que Diofante morreu com 84 anos. De fato,

X = X/6 + X/12 + X/7 + 5 + X/2 +4, de que decorre X = 84 (anos).

Para muitos, a inscrição no túmulo teria sido obra de Hipácia, a grande matemática que foi massacrada por Pedro, o Leitor, e sua tropa de cristãos fanáticos impiedosos.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Ludivine Sagnier

Sonhos de um candidato

albert.einstein@ulm.com

Olhei para o passageiro que viajava a meu lado e vi que se tratava de Albert Einstein.

- Albert Einstein?

- Sim, respondeu o outro, passando-me um cartão com os seguintes dizeres:


Dúvidas? Sunset Society,
albert.einstein@ulm.com


Espreguiçando demoradamente, fiquei perscrutando o sonho extravagante. Quem diria... Eu, euzinho, numa viagem de Hong Kong para Paris! Primeira classe, aeromoças belas e gentis, s´il vous plaît para cá, s´il vous plaît para lá, voulez vous du vin? E Einstein, ali do lado, de cartão em punho, albert.einstein@ulm.com, para todas as dúvidas.

- Que diabo seria Sunset Society?



Schopenhauer

É em sonhos assim que a gente incorre, desembocadamente e sem nenhum freio, quando tem de dar uma aula de Física perante uma banca de doutores. Para Schopenhauer, a vida é um longo sonho ou, o que é equivalente, vida e sonho são páginas comuns de um livro complicado. E o sonho cabia muito bem naquela véspera, pois, aula aprovada, curso de doutorado quase garantido. Cinco salários mínimos por mês, durante três anos.

- Cinco salários mínimos!

Na tua piscina

Não me recordo, no sonho, de haver desembarcado em Paris. Tomei um chope em Montmartre e dei um olé pelo Quartier Latin? Tomara que eu tenha topado com a Ludivine Sagnier, na entrada do Louvre, ou melhor, no Jardim de Luxemburgo. Para, enfim e cara a cara, depor-lhe a grande ambição da minha vida.


- Mas, afinal, que ambição é esta, Carlinhos?

- Nadar na tua piscina, Lu.

- Ça va.

Divine

Mecânica teria sido melhor, ora se! Era começar pelo princípio da inércia, passar pelo balde de Newton, discutir o caráter absoluto do movimento da Terra e o pêndulo de Foucault. No Universo tudo se passa como se matéria atraísse matéria, quem diria, na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias. A toda ação, uma reação, desde então e para sempre. Simetrias e invariâncias, o Princípio de D’Alembert, o tempo, Santo Agostinho, Kant, Stephen Hawkings, nosso passado tem forma de pera, o presente já passou, e o futuro é uma expectativa que reflete a nossa experiência... passada.

-Bem, isso já é Pedro Nava.

Termodinâmica, fazer o quê? Manter a calma, esse o segredo, e só mencionar assuntos por mim dominados, omitindo todo o resto. Se ocorrer a oportunidade, definir grandeza, pois definir grandeza é a festa de todo professor de Física:

- Grandeza é o atributo de um objeto ou atributo de um atributo de um objeto, no qual, atributo, se podem reconhecer diferentes graus de intensidade. Se não for atributo, não é grandeza; se não puder assumir diferentes graus de intensidade, também não é grandeza.


Terminada a aula, espero que todos se confraternizem comigo, a exaltar meus conhecimentos, repetindo a cada instante que Termodinâmica é isso aí, de aula assim é que os alunos precisam. Depois, a banca há de me convidar para jantar, e todos quererão saber como foi que me saí com a Ludivine.

- Não sei...


- Não sabe?

- Quer dizer... Não sei se fui bem ou se fui mal. Sei apenas que poderia ter me saído pior.

- Ou seja, você arrebentou. E ela?


- A Lu? É divina...

sábado, 13 de fevereiro de 2010

MÁRIO QUINTANA

O AUTORRETRATO

No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...



às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...



e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,

no final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!



(
Em Apontamentos de História Sobrenatural)

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

CHAMPOLLION E A PEDRA DE ROSETA

Hieróglifos
Pedra de Roseta

A escrita hieroglífica do antigo Egito foi decifrada pelo exame da pedra de Roseta, na qual se encontrava um texto grafado em três versões, hieróglifos, demótico e grego. Essa pedra foi descoberta num local situado a 30 quilômetros de Alexandria, em 1799, por Boussard, um dos sábios franceses que acompanharam Napoleão ao Egito.
A escrita demótica, que era uma forma simplificada de hieróglifos, tinha sido adotada em torno do ano 700 a. C. e vigorou até a chegada dos romanos ao Egito. O texto reproduz um decreto do corpo sacerdotal do Egito, de 196 a.C., atribuindo honras ao rei Ptolomeu V Epifânio (205 a 180 a.C.), como retribuição por benefícios recebidos.

Disputa


Champollion

Muitos pesquisadores tentaram decifrar os hieróglifos tomando por base a pedra de Roseta. O mais bem-sucedido foi Jean-François Champollion (1790 - 1832), um genial linguista francês que conhecia pelo menos 12 línguas, incluindo o copta, que sucedeu o egípcio antigo. Comparando, na pedra de Roseta, as escritas demótica e hieroglífica com sua versão em grego, Champollion decifrou os hieróglifos em 1822.
Numa verdadeira disputa com Champollion, o médico britânico Thomas Young
propôs em 1823 um novo sistema, e alternativo, para a escrita hieroglífica.

Thomas Young

Defensores de uma e de outra solução enfrentaram-se durante quatro décadas. A questão se definiu em 1866, quando um novo texto hieroglífico foi encontrado, o Decreto de Canopus, de autoria de Ptolomeu III Evergeta, de 237 a. C. O decreto, que impunha uma reforma do calendário para introduzir o ano bissexto, foi decifrado de maneira conclusiva com o auxílio do sistema de Champollion, não remanescendo desde então nenhum espaço para dúvidas ou contestações. Champollion já estava morto, desde 4 de março de 1832.

Onde está a pedra

Com a derrota de Napoleão no Egito, a pedra de Roseta tornou-se propriedade da Inglaterra, nos termos do Tratado de Alexandria, de 1801, bem como outras antiguidades que os franceses haviam localizado naquele país.

Museu Britânico

Desde 1802 a pedra de Roseta encontra-se no Museu Britânico, em Londres, que existe desde 7 de junho de 1753 e é o mais antigo museu público do mundo.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

DEI MAIS UMA DE DOM QUIXOTE

ASCENSÃO E QUEDA

Minha função me dava mais visibilidade do que poderia imaginar e, com o passar dos anos, fui adquirindo prestígio dentro da organização. Até que, um dia, o Board of Directors, que tudo dirigia lá de Nova York, decidiu me promover a diretor técnico de todas as atividades da WED na América do Sul. Um salto espetacular, que nunca passara, nem de leve, pelas minhas cogitações. Claro, achei muito bom, e bom continuaria se o acesso às informações que passei a ter na nova função não me fizesse ver que o mar era mais alvoroçado do que eu supunha, tendendo para o tempestuoso. A WED era muito grande e cheia de possibilidades, mas nela eu percebia imperfeições, que, entretanto, não impediam geração de lucros e abundantes distribuições de dividendos para os acionistas.

- É que os defeitos são absorvidos se o projeto é vitorioso e, se muito vitorioso, não são sequer percebidos.

A secretária de Mr. Forthwhite

Também é verdade que os chefes de divisão inventavam trabalho uns para os outros, tanto quanto cresciam geometricamente os cargos de confiança, não importando se a organização estava progredindo, estabilizada ou dando prejuízo, aplicando-se na plenitude os desígnios da lei de Parkinson. Mas a ação inocente, de mera decantação de processos autônomos a se diluírem no exercício da burocracia, terminava por aí, pois havia uma clara guerra de interesses e permanentes exercícios de bajulação. Alguns chefes de departamento trabalhavam exaustivamente, e por todos os meios, para assumir alguma posição na direção central. A qual se enchia de gente mais estúpida que o vice-presidente, Sean Forthwhite, de modo que este permanecia sempre como o mais inteligente do seu círculo.


Cheio de iniciativas esdrúxulas, Forthwhite tinha poder suficiente para levá-las adiante. Amanhecesse com uma sugestão, impraticável que fosse ou estapafúrdia, todo o sistema se ajustava para provar que se tratava de uma idéia absolutamente pertinente e inovadora; a materialidade da proposta passava ao controle dos chefes de departamento, que imediatamente geravam curvas estranhas em que a moeda era energizada em todas as contas por índices de utilidades que multiplicavam retornos e reduziam custos.

- Estamos aplicando os conceitos de Daniel Bernoulli.

Daniel Bernoulli

Infelizmente, porém, esses torneios generosos não costumam ser acolhidos pela realidade das condições de campo. Cumpre-se então a derrota inevitável. Após a execução do projeto, que jamais poderia dar certo por sua frágil concepção e superficialidade, começava a busca dos que deveriam ser escalados para assumir a responsabilidade pelo fracasso.


- Frustrou-se o êxito da operação, ora essa, por causa da incúria desses incompetentes, sabotadores morais, que não souberam implementar uma idéia revolucionária do vice-presidente. Uma idéia absolutamente revolucionária!

Para além de tudo isso, aos poucos fui percebendo que havia dolo também. Os princípios de governança estavam muito longe de serem neutros e inelásticos, e muitas vezes os interesses da corporação eram malbaratados por atitudes duvidosas e ilícitas. Trabalhar, antes um grande prazer, passou a ser um exercício que me angustiava, pois eu não podia concordar com as empresas de papel, que tinham executivos da WED remunerados com generosos acréscimos salariais por acumularem diretorias que não existiam, nem com as viagens de negócios dos diretores a Londres e Paris, que se emendavam com as férias da família na Côte D’Azur. Ou com as cisões ou fechamentos de capital feitos com prejuízo dos acionistas minoritários, muitas vezes resgatando suas ações mediante indenizações calculadas a valores históricos e corroídos pela inflação.
Também não consegui engulir a mudança, no meio do exercício, do critério para avaliação de desempenho dos executivos, uma fraude, afirmando uma eficiência que não tínhamos. Tudo feito com a conivência e beneplácito do conselho de administração da subsidiária brasileira. Foi a gota que fez transbordar o meu reservatório de decepções.
Era permanecer calado, mas intranquilo, ou jogar tudo para o alto, dos dois males o que fosse menos ruim. Foi menos ruim jogar tudo para o alto.

- Estamos enganando Nova York, foi o que eu disse a Sean Forthwhite.

- Mas você também recebeu bônus de desempenho, Carlinhos.

- Sim, mas devolvi tudo à WED. Veja aqui o recibo que me foi dado pela Tesouraria.

“Recebemos de Carlos Auvergne de Carvalho a quantia de 192 mil reais, correspondente à integral e voluntária devolução do bônus que a Western Energy Development lhe pagou como prêmio pela sua performance e desempenho no decorrer do exercício de 1998.”

Durei exatos 14 meses na nova função até que, para surpresa de todos, decidi pedir demissão.


- Sinto muito, senhores, mas a partir de hoje não trabalho mais para a WED.


- Que vou fazer agora?

Mais uma vez eu bancava o Dom Quixote e, por isso, só por isso, retornava à minha condição de desempregado. Oito anos de trabalho jogados na lata do lixo. Perdido, e angustiado como um Hamlet, eu só fazia ruminar a frase preferida de meu avô, o velho Auvergne:

- Eu me estrepo, mas não tergiverso.