quarta-feira, 25 de junho de 2008

LIÇÕES DE SABEDORIA

Na alfaiataria

Numa cidadezinha distante, nas bandas mineiras de eu menino, havia um alfaiate, o Zé, que gostava de comentar sobre religião, ciência e filosofia.
Muitos freqüentavam a alfaiataria só para ouvir suas dissertações bem-humoradas e eruditas. Não sei explicar como adquiriu tanta cultura, num ambiente em que os temas raramente ultrapassavam o futebol e os concursos de beleza. Alguns diziam, com malícia, que passava as noites acordado, estudando o que iria comentar de dia. Pode ser, mas o Zé era muito bom no improviso, fazendo digressões sobre questões pontuais e inesperadas, que sempre surgiam no meio de uma conversa qualquer.

Voltaire, François Marie Arouet de

Tema complicado, se ciência ou filosofia, era exatamente com ele. Mito da caverna e mito da linha dividida, que chamava de "as alegorias de Platão", evolução das espécies e seleção das variações vantajosas, o espaço-tempo de Einstein, as geometrias de János Bolyai e Lobachevsky, espirais gnômicas, tempo de Planck, a importância do Código de Napoleão, Avicena, Isaac Newton Faz-Tudo... Ah, a universalidade de Voltaire, cujo nome o Zé só mencionava por extenso, François Marie Arouet de Voltaire, a seu juízo o mais brilhante e divertido conversador de todos os tempos e o mais prolífico de todos os escritores, com uma impressionante obra de trinta mil páginas. Trinta mil páginas! E ainda tinha tempo para conversar!

Hidropsia
Empédocles
Heráclito
Jamais me esquecerei das histórias engraçadas sobre personagens históricas, que ele contava sacudindo a tesoura, como a do pretensioso Empédocles de Agrigento (“tudo é formado de água, ar, terra e fogo”), que, para provar sua imortalidade, atirou-se do Etna, desaparecendo cratera adentro; ou a do irritado Heráclito de Eféso (“a natureza ama esconder-se”), que só se alimentava de ervas e um dia enterrou-se no esterco, até o pescoço, para curar-se de uma hidropsia, esclarecendo o Zé, com toda a autoridade, que a hidropsia é uma retenção patológica de água na cavidade abdominal. Ali Heráclito permaneceu resignadamente até a morte, “pois os médicos são ignorantes e não conseguem promover uma seca após uma inundação”.

- Morreu na merda, arrematava divertidamente o Zé.

- E a história de Hipassus?

- Hipassus cometeu o crime de divulgar a existência dos números irracionais, um segredo pitagórico, e foi atirado ao mar pelos seus colegas da Escola de Pitágoras. Numa outra versão, mais amena, Hipassus foi apenas expulso da comunidade, mas Pitágoras fez erigir um sepulcro com o seu nome.

Assertividade

Lembro-me também da insistência do Zé sobre a importância de ser assertivo.

- O bobo passa por sábio , se falar pouco, mas com estilo e assertividade. Com assertividade, não importa o assunto. Não importa mesmo!

Seus exemplos prediletos de assertividade estavam na história e na literatura:

Álvares de Azevedo

Lamentando: Que fatalidade, meu pai!

Hesitando: Ser ou não ser, eis a questão.

Fulgurando: O estado sou eu.

Deduzindo: Penso, logo existo.

Triunfando: Vim, vi e venci.

Osório

Morrendo: Quero morrer no meu posto!

Seduzindo: Do alto destas pirâmides quarenta séculos vos contemplam.

Liderando: Sigam-me os que forem brasileiros!

Negociando: Meu reino por um cavalo!

José do Patrocínio

Metamoforizando: Deus me deu sangue de Otelo para ter ciúme da minha pátria.

O que restou do Zé

Zé de Alencar
O Zé,
perdido no interior do Brasil, reunia platéias sem saber cantar nem jogar futebol, contava histórias sobre a inteligência humana e sabia mostrar o lado fascinante da cultura. Houve por aí o Zé da Zilda, Zé de Anchieta, Zé Alencar e Zé de Alencar, Zé Kéti, Zequinha e Zé de Abreu, Zé do Patrocínio, Super Zé Maria, Zé Bonifácio de Andrada e Silva, Zé Boquinha, Zequinha Sarney, Zé de Arimatéia, Zé Bové, Zeca Pagodinho e Zeca Camargo, Zé de Habsburgo, Paulo José, São José, Maria José e inúmeros outros Zés, qualificados e bem-sucedidos.
Mas do Zé, que é some
nte Zé, o que ficou foi
uma vaga lembrança.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

A IDADE DOS FÍSICOS

Idade e motivação dos gênios

Acabo de ser aprovado no vestibular de Física, eu que voltei aos estudos há apenas seis meses. E, por ser mais velho que meus colegas, tenho medo de ter passado do ponto. Esse o motivo que me levou a pesquisar sobre a idade produtiva de Newton, Einstein, Maxwell, Bohr, Heisenberg, Gödel e Schrödinger.

Isaac Newton

Constatei o que não queria: a precocidade dos gênios. Os principais trabalhos de Isaac Newton foram concluídos antes dos 25 anos, uma boa parte no tempo em que ficou isolado em Woolsthorpe, ao abrigo da peste que assolou a Inglaterra em 1665 e obrigou ao fechamento da Universidade de Cambridge; Albert Einstein apresentou, em 1905, suas teorias sobre a natureza dual da luz, efeito fotoelétrico, movimento browniano e relatividade especial, quando tinha 26 anos; James Clerk Maxwell, cujas equações uniram a eletricidade ao magnetismo e à ótica, foi considerado gênio aos 24 anos; Werner Heisenberg estabeleceu o princípio da incerteza com 26 anos; Niels Bohr ganhou a medalha de ouro da Academia de Ciências da Dinamarca aos 22 anos, por seus trabalhos sobre a tensão superficial da água; Kurt Gödel abalou os alicerces da Matemática quando tinha apenas 25 anos.

Necessidade financeira

Mileva e Einstein

Muito simples, pensei, com a minha mania de induções e generalizações.
Entre 20 e 30 anos situa-se a idade do casamento, e surge a necessidade de conseguir o sustento da família. Não resta ao gênio senão fazer o que sabe, que é pôr em prática a sua genialidade. Einstein, por exemplo, casou-se em 1903 com a sérvia Mileva Maric, pouco antes de impor-se ao mundo, e o conjunto de façanhas de 1905 foi necessário para conseguir o dinheiro do aluguel, sendo certo, entretanto, que o Prêmio Nobel de Einstein só viria em 1921, no valor de 32.250 dólares da época.
Bem, se o negócio for movido a necessidade, estou do lado bom, que é o lado de dentro...

Uma coisa ou outra

Examinei depois o caso de Erwin Schrödinger, descobridor de que o comportamento do elétron pode ser explicado por uma equação de onda, que o situa em diferentes posições no espaço. Ao mesmo tempo! Muito complicado e, não obstante, uma vitória da inteligência humana.
Pois bem, Schrödinger formulou essa teoria em 1926, quando tinha 39 anos, e esse fato pode ser um argumento a meu favor, que só serei físico aos 35 anos. O bravo Schrödinger elaborou seu trabalho quando passava uma temporada com uma amante misteriosa nos Alpes suíços, a qual ficou conhecida nos meios científicos como a Dama de Arosa.

Equação de onda
(Manuscrito de Schrödinger)

Erwin Schrödinger

Cabe, portanto, um adendo à minha indução. A consolidação do gênio ocorre entre 25 e 30 anos e resulta de uma necessidade financeira, que era essa a situação de Einstein e Gödel; uma forma alternativa de consolidação de genialidade também pode ter lugar, em qualquer idade, se o gênio estiver se
afirmando perante a amada, como na situação de Shrödinger nos Alpes, o qual, aliás, nunca teve nenhum problema financeiro.
Continuo dentro. Falta só a Dama de Arosa...

Sou candidato ao Prêmio Nobel?

Um amigo me perguntou se tenho a pretensão de ser um Bohr, um Einstein ou, considerando a minha idade, um Schrödinger, pois estranhou essa pesquisa de idades e amantes.

- Acho que você está querendo ganhar um Prêmio Nobel!

Informei-lhe que meu desejo é ser um bom professor de Física. Quanto ao Prêmio Nobel, dou a mesma resposta de Dona Edith, a nonagenária da Antero de Quental, quando lhe perguntavam se achava possível receber uma proposta de casamento:

- Por que não? A gente nunca sabe...

quarta-feira, 11 de junho de 2008

CECÍLIA MEIRELES E A FÍSICA QUÂNTICA

Complementaridade

Desde Isaac Newton (1642-1727), defendia-se que a luz era formada de partículas, bastando ver que a luz ultra-violeta, de alta energia, ao incidir sobre um metal condutor de eletricidade, desloca elétrons e produz o efeito fotoelétrico - só uma particula (luz) pode se chocar com outra (elétron) para produzir o movimento desta última.
Esse modelo era combatido por Christiaan Huygens (1629-1695), que defendia a teoria ondulatória, pela qual a luz seria formada de ondas, tanto que, incidindo sobre um anteparo com duas fendas, um raio de luz passa simultaneamente por ambas as fendas, provocando efeitos de claro-escuro numa tela receptora colocada atrás do anteparo -uma partícula, com efeito, não passaria pelas duas fendas
.
Dois modelos distintos, incompatíveis e mutuamente excludentes, alicerçados em sólidas razões científicas, como pode? Qual seria o modelo correto?

Em 1905, Albert Einstein (1879-1955) resolveu o impasse, ao postular que a luz pode assumir os dois modelos de comportamento, o de Newton e o de Huyghens, apresentando-se ora como partícula, ora como onda. Dezoito anos depois, o francês Louis de Broglie (1892-1987) defendeu que o caráter dual onda-partícula não era uma exclusividade da luz, sendo extensível às demais partículas subatômicas, o que foi posteriormente demonstrado por experiências científicas de alta precisão. Todas as partículas subatômicas, incluindo prótons, elétrons e nêutrons, são ora partículas, ora ondas!

Louis de Broglie

E não é só. O dinamarquês Niels Bohr (1885-1962) enunciou, em 1928, o princípio da complementaridade, pelo qual quem vê onda vê somente onda e quem vê partícula vê somente partícula. Só um dos modelos é percebido pelo observador: na experiência do efeito fotoelétrico, a luz se comporta como partícula, sem mostrar seu caráter igualmente ondulatório; na experiência da dupla-fenda, a luz tem o caráter de onda, escondendo a alternativa corpuscular.
Conclusão: a natureza, ambígua e escorregadia, tem dois modelos, mas só mostra um de cada vez!

Niels Bohr

Ou isto ou aquilo

É então que entra em cena o poema "Ou isto ou aquilo", de Cecília Meireles, publicado em 1964:


Ou isto ou aquilo

Ou se tem chuva e não se tem sol
ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa estar
ao mesmo tempo nos dois lugares!

Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.

Ou isto ou aquilo, ou isto ou aquilo, ou isto ou aquilo...
e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinque, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranquilo.

Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.


Cecília Meireles (1901- 1964) sabia de complementaridade, tanto quanto Einstein, de Broglie e Niels Bohr, ela, que a esse fim, nunca precisou ir a nenhum laboratório, cujo, no seu caso, guardava-o na própria alma.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

UMA TÉCNICA DE ALHEAMENTO

EUTANÁSIA

Certo dia, a uma pergunta de Português, em vez de “antonomásia”, respondi “eutanásia”, e esse equívoco mudou para sempre a minha vida. Não é normal, nem justo, que fique impune um pecado desta magnitude. Recebi, porém, uma pena desproporcional:
deram-me o apelido de "Eutanásia", e passei a ser enxovalhado pelos colegas, pelas meninas e até pelos professores.

O bobo da corte
- Como vai, Eutanásia?

- Bom dia, Eutanásia!

- Vamos jogar bola, Eutanásia?


- Alhos com bugalhos, Malásia com Dona Eufrásia, viva o Eutanásia!

Eutanásia, o bobo da corte, eu, exatamente eu! Esquecia-me de acrescentar que tenho horror ao vexame. Passados quase vinte anos, ainda carrego dentro do peito dolorido o ônus desse passado insuportável. Acumulei pouco amor, nenhuma fé, muita renúncia e abjeções dolorosas, certo de ser um culpado definitivo, nem importa de quê. Sou culpado, absoluta e inarredavelmente culpado, e a todos eximo de me perdoar ou absolver.


Alheamento

O recurso era ignorar as provocações, e, isolado na carteira da última fila, sentia-me humilhado, só e desnecessário. Não prestava nenhuma atenção às aulas e quase não interagia com as outras pessoas, que já não me interessavam, muito menos seus projetos, êxitos e fracassos. Não ria de anedota, contada fosse por colega ou professor, e cada vez menos ia ao pátio na hora do recreio. Aos poucos fui desenvolvendo uma técnica de alheamento que me permite voar para longe das minhas circunstâncias, sendo esta a blindagem contra o que não preciso ver e, principalmente, contra o que não quero ouvir. Eles falam aqui, e eu estou lá, longe, muito longe, tentando entender o princípio da relatividade, de Galileu, ou aprendendo com Schopenhauer que a gente vive para... continuar vivendo.

Permaneço desde então dedicado aos livros, estes, sim, amigos leais e incapazes de ignomínias ou provocações. Leio e dialogo com o que li, pois eu, apenas eu, sou a medida de mim mesmo.
Meu interesse maior é pelos poetas, seres especiais, iluminados, que prestam relevantes serviços no domínio dos sentimentos e dos sonhos. São os missionários da alma, a cozinha especial de que nos fala Fernando Pessoa, a nos servir, quentes e bem passados, os sentimentos universais dos seres humanos:


Quem, de fato, não se viu reproduzido nas Confidências de um Itabirano, de Drummond?

Quem não teve os sonhos de Pasárgada, de Manuel Bandeira?

Quem não admitiu, alguma vez, errei, fui homem, como Fagundes Varela, ou não teve, como João Cabral, uma educação pela pedra, por lições, para aprender da pedra, freqüentá-la?

João Cabral de Melo Neto

Não me limitei aos poetas, todavia. A esmo e sem nenhum planejamento, desvairadamente li
peças, folhetos e ensaios, Dostoiévski e Marcel Proust, as crônicas de Graciliano Ramos e de Rubem Braga, os discursos de Rui Barbosa, a vida de Abraham Lincoln, inumeráveis coisas assim, mas também matemática, cosmologia e, principalmente, livros de física ou sobre leis físicas, fascinado que sou pelo espetáculo soberano da Natureza.

- Eutanásia, como assim?

- Por antonomásia.