quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

UMA ANEDOTA DO BARÃO DE ITARARÉ

O CASO DO GUARDA-CHUVA


Um homem dirigiu-se a outro, na fila dos Correios.

- Boa tarde.

- Boa tarde.

- Você se lembra de mim?

- Não me lembro.

- Fomos apresentados na casa do Olavo Seixas, há cerca de três semanas.



- Tudo bem, mas como me reconheceu?


- Pelo guarda-chuva.


- Mas nessa época eu não tinha guarda-chuva.


-Pois é: eu tinha...

sábado, 26 de dezembro de 2009

DUAS POESIAS FUNDAMENTAIS

Argila

Raul de Leoni (1895 - 1926)


Nascemos um para o outro, dessa argila
De que são feitas as criaturas raras;

Tens legendas pagãs nas carnes claras

E eu tenho a alma dos faunos na pupila...


Às belezas heroicas te comparas

E em mim a luz olímpica cintila,

Gritam em nós todas as nobres taras

Daquela Grécia esplêndida e tranquila...


É tanta a glória que nos encaminha

Em nosso amor de seleção, profundo,

Que (ouço de longe o oráculo de Elêusis)


Se um dia eu fosse teu e fosses minha,

O nosso amor conceberia um mundo

E do teu ventre nasceriam deuses...


Preparação para a Morte

Manuel Bandeira (1886 - 1968)


A vida é um milagre.
Cada flor, com sua forma, sua cor, seu aroma,

Cada flor é um milagre.

Cada pássaro, com sua plumagem, seu voo, seu canto,

Cada pássaro é um milagre.


O espaço, infinito, o espaço é um milagre.

O tempo, infinito, o tempo é um milagre.

A memória é um milagre.

A consciência é um milagre.

Tudo é milagre.

Tudo, menos a morte.


— Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.


quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Ressalva

MERCHANDISING


Padre Justino estava incomodado com as velas que os fiéis faziam acender diariamente nas escadarias da Igreja de Santa Terezinha, que se situa na entrada do Túnel Novo, do lado de Botafogo. Pois a cera derretida era de limpeza difícil e onerosa.


Foi por isso que mandou afixar na entrada da Igreja um cartaz com os seguintes dizeres:

Para Deus, mais vale uma oração do que um pacote de velas.


No dia seguinte, um segundo cartaz apareceu junto daquele, com um recado adicional:

A não ser que se trate das legítimas velas Brumadinho.


sábado, 19 de dezembro de 2009

Duas poesias de Adélia Prado

Amor Feinho

Eu quero amor feinho.

Amor feinho não olha um pro outro.

Uma vez encontrado é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.

Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca, da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem e você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança: eu quero amor feinho.


Exausto

Eu quero uma licença de dormir,

perdão pra descansar horas a fio,

sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.

Semente.

Muito mais que raízes.


Adélia Prado (nascida em 1935), em "Bagagem"

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

ADMIRÁVEL MUNDO NOVO

BOCA DE OURO

Caminhando pela Ataulfo de Paiva, Crisóstomo fazia intermináveis comentários, sempre obcecado pelas suas estranhas premonições.


- No mundo que nos irá suceder estarão proibidas a História e a Engenharia, ramos do conhecimento que embasam e justificam todos os males.

Heródoto
- Não entendi...

-
Nada de Heródoto, nada de Arquimedes. Sem História, não se aprenderá sobre guerras, e, sem Engenharia, não haverá telefones celulares, fornos elétricos e câmeras fotográficas digitais. Nem aceleradores de partículas, golpes de aríete ou virabrequim, cujo desgaste é intolerável.

- De fato?

- Muitas coisas existem só porque tiveram a má sorte de serem inventadas, não sendo nada inteligente reinventá-las num mundo perfeito, entendeu?

- Sim, creio que sim...

- O homem, então, estará novamente no paraíso.

Entidades inexistentes

Teorema de Tales

Para Crisóstomo, as seguintes entidades não existirão, por desnecessárias, no mundo ideal que nos vai suceder:

Teorema de Tales
Lei dos grandes números
Gatos pardos, pingados e escaldados
Tribunal de pequenas causas
Elevadores e logaritmos neperianos

Críticos de cinema, dilema e eczema

Bidê, dendê e meus óculos, cadê?
Macbeth e Lady Macbeth, assassinos do sono

Teoria Geral do Estado e estado geral da teoria

Relógios, atrito de rolamento e elefantíase
Pisicanalistas e ansiedades básicas
Maiô e essa nega Fulô
Paris, Texas
Questão Christie
Comida a quilo, rádios de pilha, sacos cheios e conjuntos vazios

Medidas provisórias, cadernos de encargos e telefone
Torcicolo e dependências de empregadas
Ponto flexível, ponto de vista, duas horas em ponto e eu dormi no ponto
Viés diagonal e reversão de expectativas
Tratado básico de eletricidade, sem mestre, terceira edição



O Oriente será habitado por gente pacífica, e no Vietnã crianças soltarão pipas coloridas no Golfo de Tonquim.
Heráclito se esquecerá de dizer que "não se pode entrar duas vezes no mesmo rio". Porque Heráclito, coitado, já não será o mesmo, nem o rio.
As indiretas serão abolidas, e o bolo, repartido.
Políticos não serão molestados, como de outras vezes, pela peste suína africana, médicos não farão greves, e o MAM, ao queimar, poupará Mathieu e Portinari.
Serão abolidos os telegramas, as genuflexões, a luz polarizada, os ensinamentos de Pontes de Miranda e a paulatina, mas eficiente, poluição da Baía de Guanabara.

Código

"Crisóstomo"significa "Boca de Ouro", em grego. Para ele, apenas um monumento será erigido, num sítio especial a ser escolhido para sediar o admirável mundo novo. Nele se lerá o único código permitido:

- Abaixo o Estreito de Dardanelos...

"Guerra a todas as máquinas de calcular, aos índices de produtividade, à estatística e à inflação persistente, mas controlada;
Guerra às democracias, ao ângulo obtuso, ao número 18 e aos nomes de guerra;
Guerra à lei da gravitação universal, ao ano decretório, à tripanossomíase sul-americana e aos mecanismos de defesa do nosso ego atribulado;
Guerra ao crivo de Eratóstenes, ao Estreito de Dardanelos e ao esternoclideomastoideo;
Guerra às divisões celulares, à segunda divisão e às divisões blindadas;
Guerra ao anacoluto, ao estilo gótico e ao Tratado de Tordesilhas, revisto e ampliado;
Guerra a todas as guerras."

A guerra contra todas as guerras, esta guerra com certeza existirá.

sábado, 12 de dezembro de 2009

Proposições indecidíveis

Paradoxo do mentiroso

Alguém declarou: “sou mentiroso.”

- Esse cujo disse uma verdade ou uma mentira?


Impossível saber. Verdade não pode ser, pois contrariaria o que a própria frase está a dizer. Também não pode ser mentira, pois esta paradoxalmente transformaria o mentiroso num não-mentiroso. Um enunciado desse tipo configura uma proposição indecidível, conhecida como "paradoxo de Creta" ou "paradoxo do mentiroso", que vem sendo estudada desde os pré-socráticos.

Autoalusão


Há enunciados que se autocontradizem, como nos cinco exemplos a seguir:

É proibido proibir.

Não tolerarei erros hortográficos.

Acentue todas as proparoxitonas.

Toda generalização é despropositada.

Fabricamos o sorvete Sem Nome

Erros lógicos

Um professor escreveu no quadro-negro: “esta frase contém seis palavras”. Os alunos perceberam que o enunciado estava errado, pois a frase na verdade tem cinco palavras.

- Professor, houve um erro de contagem.

Chamado a corrigir a frase, um aluno acrescentou-lhe um “não”, de maneira a alterar o enunciado para “esta frase não contém seis palavras”.

- A frase permanece no erro, observou o professor, pois, com o acréscimo que você fez, passou a ter realmente seis palavras. Eu tinha errado na contagem. Você errou porque conferiu poder absoluto às palavras, esquecendo-se da lógica.

Paradoxo de Russell


Bertrand Russell

Alguém narrava para Bertrand Russell que, numa pequena cidade da Espanha, todos os homens andavam sempre muito bem barbeados; o único barbeiro da cidade barbeava todas as pessoas que não se barbeavam a si próprias, e mais ninguém.

- Isso não é possível, disse o filósofo, pois o barbeiro não podia andar barbeado sem que ninguém o barbeasse!

- Barbeio todos os que não se barbeiam a si próprios, e somente estes...
- Então você deveria ser barbudo...

De fato, a primeira informação inclui o barbeiro entre os barbeados: "todos os homens da cidade andam sempre muito bem barbeados". Mas a segunda o exclui dessa condição, ao informar que "o citado barbeiro barbeia todos os da cidade que a si não se barbeiam, e mais ninguém". Como o barbeiro não pode ao mesmo tempo "ser barbeado" e "não ser barbeado", segue-se que não há resposta possível para a questão "quem barbeia o barbeiro?"

Repercussão na Matemática

As autoalusões e proposições indecidíveis tiveram importante repercussão no desenvolvimento da Matemática, sobretudo na teoria dos conjuntos e no reconhecimento de que há verdades matemáticas que não podem ser demonstradas.


sábado, 5 de dezembro de 2009

PALAVRAS DE FILÓSOFOS (3)

QUEM DISSE?
Platão

(1) Somente anjos e animais não conhecem a angústia.

(2) A ciência dos números pode explicar cada aspecto da realidade.

(3) Nas mãos do homem, tudo degenera.

(4) Todo conhecimento é uma recordação.
Hegel
(5) Convém apostar na existência de Deus, pois o prêmio é muito grande.

(6) As palavras são um excelente instrumento para mentir.

(7) Talvez a vida seja um sonho muito longo.

(8) Habitamos um dos infinitos mundos do Universo.

(9) Tudo que existe se afirma, se nega e se supera.

(10) A virtude está no justo meio.


Confira

(1)
Sören Kierkegaard (1813-1855)
Francis Bacon
(2)
Pitágoras (cerca de 570-500 a. C.)


(3)
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)

(4)
Platão (428-347 a. C.)

(5)
Blaise Pascal (1623 - 1662)

(6)
Francis Bacon (1561-1626)
Giordano Bruno
(7)
Arthur Schopenhauer (1788 - 1860)

(8)
Giordano Bruno (1548-1600)

(9)
Wilhelm Friedrich Hegel (1770 - 1831)

(10)
Aristóteles (384-324 a.C.)

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

AI DOS VENCIDOS

ERREI, FUI HOMEM...

Casei- me em 2001, logo após ser contratado pela Energy Improvements. Por orientação do diretor de empreendimentos, tomei um curso de oito meses na Fundação Getúlio Vargas, no qual entrei engenheiro civil, sabendo construir prédios, obras hidráulicas, estradas e viadutos, e saí engenheiro de produção, preparado para examinar projetos de investimentos, orientar a tomada de decisões em regime de incerteza e discutir cláusulas contratuais de joint-ventures com companhias internacionais de energia.

Sofia

Imediatamente formei uma equipe de negociações, integrada por dois engenheiro de minas, um economista, um advogado e alguns estagiários. Minha secretária, Sofia, falava vários idiomas, sabia tudo de informática e era admirada por sua beleza excepcional, mas nela enxergava apenas a excelente profissional, pois amava minha mulher, que me bastava, e não tinha olhos para nenhuma outra pessoa.

Sun Tzu

Nossa atuação era de natureza prospectiva. Competia-nos descobrir a oportunidade, estimar os custos e receitas de cada projeto potencial, orientar a decisão a ser tomada pelo conselho de administração, buscar sócios, participar das licitações e negociar os acordos. Primeiro, calculávamos os resultados virtuais dos eventos possíveis,
a respectiva probabilidade de ocorrência e, finalmente, o valor monetário esperado do projeto médio, composto com as propriedades de todos os eventos possíveis. Depois, efetuávamos as negociações dos contratos, que eram assinados com agências do governo ou, quase sempre, com companhias que se associavam às nossas joint-ventures. No decorrer dos meses, com a experiência adquirida, chegamos a desenvolver uma linha de atuação, a filosofia da competência, para não errar nas negociações, pois os estrangeiros vinham cheios de estratagemas, dossiês pessoais e providências facilitadoras.


- Aquela história de Sun Tzu, prazos enganosos, falsos orçamentos, cláusulas de palha e quejandos, que a gente conhecia exclusivamente para nossa defesa, pois o recurso da enganação não se encaixava no nosso repertório como um postulado estratégico.

Todos os pontos deveriam estar negociados antes da assinatura de qualquer protocolo, ou seja, se a negociação não estivesse toda concluída, não haveria solenidade comemorativa de nenhuma natureza, nem encontro dos negociadores estrangeiros com nossos diretores. Também exercitávamos a flexibilidade, com o objetivo de acomodar pretensões justas da outra parte, caso houvesse, sem comprometer os nossos interesses. Decidi também que nós nos prepararíamos à exaustão antes de qualquer negociação, excluindo definitivamente a figura do negociador desprevenido e despreparado. Ficou também estabelecido que cultuaríamos a discrição, não mentindo para os que negociavam conosco, não demonstrando autossuficiência, não ironizando as posições da outra parte e nunca comentando aspectos da negociação com pessoas não envolvidas nas mesmas.

Negociadores

É justo acrescentar que Sofia, extrapolando suas funções, aos poucos mostrou-se de grande valia na formulação de cláusulas alternativas e na redação dos textos. Muitas vezes participava das nossas discussões preparatórias e não raro sugeria caminhos alternativos, que serviam ao êxito das negociações.

Êxito

Funcionou. Funcionou, sim, muito bem. Ouso dizer, a partir dessa experiência, que o planejamento determina o êxito.
Uma vez concluídas as negociações, a execução das obrigações contratuais cabia a outros departamentos, que, para meu orgulho e felicidade, nunca se queixaram de nenhum defeito substantivo em nenhuma cláusula negociada sob minha supervisão. Oito anos de êxito. Eu me considerava um negociador vitorioso, gostava do que fazia e vivia uma permanente sensação de bem-estar. É bom, muito bom, perceber que se tem importância num projeto decididamente vencedor. Um diretor chegou a dizer que eu negociava "como um lorde-chanceler”, o que me deixou orgulhoso, e até envaidecido, mas o que me movia, para além de meu amor por minha mulher, era a obsessão do trabalho bem feito.

Carla
Carla, minha mulher, fazia uma exuberante carreira paralela, como estilista profissional. Nossa parceira familiar sólida e generosa era fundamental para nossas conquistas e êxitos profissionais. Pois nós nos amávamos, para dizer numa palavra tudo. Eu me divertia com a ideia de que ela poderia substituir-me na Improvements, apta que estava para estimar custos e receitas, traçar perfis de lucro e calcular juros e taxas de rentabilidade. E refutar todos os ardis que os do outro lado da mesa lhe opusessem na negociação das cláusulas contratuais.

- Mas a recíproca não era verdadeira, pois eu nada entendia de moda e de desfiles...


Houve, porém, a Sofia...

É preciso, todavia, contar todo o resto, pois errei, fui homem. Sofia, a linda secretária, tornava-se cada dia mais irresistível e, aos poucos e com muita arte, acabou me atraindo para jantares dissimulados e escapadelas desestabilizadoras. Não cabe aqui a menção de pormenores e miudezas, que nem serviriam para melhorar a narrativa, bastando acrescentar que, ao fim e ao cabo, terminei ficando sem as duas mulheres. Carla me colocou imediatamente para escanteio, desaparecendo completamente da minha vida.

- A independência financeira torna o desenlace fácil e operacional...

Desorientado e sem rumo, comecei a equivocar-me nas negociações, escolhi projetos temerários e resultei demitido da Improvements. De pronto Sofia me descartou: claro, eu já não representava uma prenda a ser conquistada.

Estou, em 2009, como comecei, oito anos atrás: sem mulher e sem emprego.

- Ai dos vencidos!

A frase foi dita em 387 a. C. pelo general gaulês Breno, aos romanos derrotados, que reclamavam dos elevados tributos de guerra. Sabia muito o bravo e eficiente general.

sábado, 28 de novembro de 2009

ZENÃO DE ELEIA

FLECHA QUE VOA, MAS NÃO VOA

Zenão de Eleia

O paradoxo da flecha voadora foi construído por Zenão de Eleia (495 - 430 a.C.) para contestar nosso entendimento sobre movimento e pluralidade. Argumentava Zenão que uma flecha disparada fica imóvel em cada instante, pois, do contrário, ocuparia várias posições num só instante, o que é impossível. Se o tempo é feito de uma sequência de instantes, segue-se que a seta permanecerá sempre imóvel, contrariamente ao que se observa. Ou, dizendo de outra maneira, a cada instante de tempo a flecha está em um ponto definido e, portanto, em repouso naquele instante. No instante seguinte ela também estará em repouso e assim sucessivamente, ou seja, em repouso para sempre.

Pode parecer um jogo de palavras, para não dizer um contrassenso, mas esse arrazoado tem grande poder de sedução. Na década de 1920, o filósofo e matemático inglês Bertrand Russell (1872-1970) considerou o paradoxo da flecha voadora como extremamente sutil e profundo.


Paul Valery

Valery

Paul Valery (1871-1945), um poeta que tinha interesse em música, matemática e filosofia, também se encantou com os jogos intelectuais de Zenão. No seu celebrado poema “Le cimetière marin” ("O cemitério marinho"), Valery invoca o paradoxo da flecha em admiráveis versos decassílabos:


Zénon! Cruel Zénon! Zénon d'Êlée!
M'as-tu percé de cette flèche ailée

Qui vibre, vole, et qui ne vole pas!

Le son m'emporte et la flèche me tue!


(Zenão! Cruel Zenão! Zenão de Eleia!

Tu me feriste com tua flecha alada,

Que vibra, voa, mas que não voa nada.

O som me enleva, e a flecha me mata!)


Pluralidade e mudança


- Saibam, senhores, que a pluralidade não existe...

- Seu paradoxo não tem correspondência na realidade, disse um vizinho a Zenão. Todos sabemos que a flecha disparada sempre sai de um ponto e alcança outro, ou seja, há algo errado no seu raciocínio.

- Claro, retrucou Zenão. Mas não basta apontar o absurdo, temos de explicá-lo. E eu explico:
a pluralidade não existe, e a mudança é impossível.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

VERSOS RIDÍCULOS

MINHA CACHORRINHA

Uma certeza que me acompanha existência afora, nem sei exatamente por quê, é a de que todo mundo acaba fazendo alguma poesia, nem que seja umazinha só, mirrada e solitária. No meu caso, isso é meio complicado porque não tenho nenhuma afirmação abrangente a fazer, nem para os amigos, nem sobretudo para a humanidade.

Tenho cara de sósia

Sobreveio, porém, o incidente vivido à porta do motel, que preciso contar desde o começo.
Confesso constrangidamente que tenho cara de sósia, do tipo mais genérico e vulgar, tantas vezes já me confundiram com outras pessoas. Nunca, porém, o mal-entendido veio com tanto fervor e destempero.


Saíamos do motel, quando uma desconhecida, irrompendo do nada, deu um empurrão em May e dirigiu-se a mim de maneira extravagante e agressiva.

- Pensa que a coisa vai ficar assim, seu cretino? Me deixando por essa aí? Não adianta tirar a barba, nem o bigode, que eu te reconheço debaixo de qualquer disfarce, mesmo fantasiado de satanás ou de vice-rei da Catalunha! Eu irei atrás de você até as profundezas do inferno!


De um lado, uma mulher equivocada, plena de fúria e desespero, e, do outro, eu, um homem desconcertado, sem saber o que fazer, nem como reagir.



- Mas quem é a senhora?

- Não sabe quem sou eu, essa é boa, muito boa! E, além de tudo, me chamando de senhora! Você sempre me chamou de minha cachorrinha, não se lembra não, seu cretino?


Cada vez mais desorientado, a custo me desvencilhei da megera, um pesadelo vociferante, que finalmente se afastou, sempre aos gritos, desaparecendo numa curva da Niemeyer. Exausto e humilhado, tive então outra surpresa: May, na confusão, havia abandonado o local, seguindo de táxi para o Leblon.

Um tribunal chamado May

À perplexidade daquele momento juntou-se a decepção dos dias que se seguiram. May se recusou a atender os meus telefonemas. Não sei se doeu mais a separação ou se a lógica absurda na qual se baseou. Senti semanas a fio uma terrível sensação de impotência, a de um inocente condenado por causa de um lamentável mal-entendido, inerme e inerte diante de um tribunal chamado May, a mulher que eu amava. Que ouviu uma acusação contra mim, de nenhum fundamento, me julgou e me condenou, sem sequer me conceder a generosidade de me ouvir.


Apesar disso, ou, quem sabe, exatamente por isso, eu sentia muita falta dela. Afinal, May não tinha culpa de ignorar a minha inocência. Foi então que fiz a poesia, cumprindo o destino de ser poeta por um dia. Poesia tem de ser mostrada, imaginei, ou deve ir para a lata do lixo. Foi por isso que pensei em ir ao Museu, chamar pela May e depor-lhe o meu amor. Uma declaração seguida de uma declamação, de acordo com um teatro que cheguei a ensaiar.

O que declarar:

"Fiz uma poesia para você, os primeiros versos da minha vida. Versos ruins, sem dúvida, o que não tem nenhuma importância, nem consequência. Porque não sou poeta, May, mas um homem confessando o seu amor."

O que declamar:

"A febre, grande ameaça,
Sempre demora, mas passa.
A banda passa na praça,
Tocando com muita graça.
A uva demora, mas passa.
Passa boi, passa boiada,
Passarinho, passarada.
O aluno se vira e passa,
O filme passa no paço,
E, do pascácio que passa,
Não fica nem a carcaça.
Mas você, aqui no peito,
Agarrada como traça,
Impassante, impassada,
Só você é que não passa."

May

Horror ao vexame

Não era simples, todavia. Para ir ao Museu eu teria de arrostar e vencer todas as minhas resistências. O que não aconteceu, pois, t
udo aferido e sopesado, prevaleceu o meu recato. Ir ao Museu, de poesia em punho, onde já se viu, ora essa! Galileu Galilei afirmou que a Natureza tem horror ao vácuo; pois eu, o que tenho é o horror do vexame.

- Vai para a lata do lixo...

- E, convenhamos, os meus versos, sabe-se lá, como os meus versos são ridículos!

sábado, 21 de novembro de 2009

Lieserl

A filha de Albert Einstein

Mileva e Einstein

Albert Einstein, alemão da cidade de Ulm, casou-se com a física Mileva Maric, uma sérvia de Bacska, que conheceu na Escola Politécnica de Zurich. Ele a chamava carinhosamente de Marity. Houve nesse casamento um mistério nunca esclarecido: a filha Lieserl, da qual só se sabe o nome, desapareceu de cena alguns dias depois de ter nascido, na Sérvia, em 1902.
Esse fato só se tornou conhecido 85 anos depois, em 1987, quando as cartas de Einstein foram tornadas públicas por decisão judicial. Cartas que foram trocadas enquanto Einstein procurava emprego na Suíça e Maric esperava a criança na casa dos pais, em Novi Sad, uma cidade da Sérvia às margens do Danúbio. Numa das cartas, de 19 de setembro de 1903, Einstein escreveu:

"Lamento muito pelo que sucedeu a Lieserl. É muito fácil sofrer sequelas permanentes de escarlatina. Se ao menos isso acabasse! Como a criança foi registrada? Devemos tomar precauções para que isso não tenha problemas mais tarde."

Lieserl jamais voltou a ser mencionada em nenhuma das cartas, e fracassaram todas as tentativas de obter pistas sobre sua vida. Não se conhece, de fato, nenhuma palavra de Einstein ou de Mileva sobre o destino de Lieserl, sendo geralmente admitido que Einstein não chegou a ver a filha. Uns poucos acreditam que a menina teria morrido, ainda bebê, mas muita gente suspeita de que tenha sido dada em adoção, em face de problemas financeiros enfrentados pelo casal.
Pois naquele ano de 1902 Einstein, ainda desempregado e aguardando uma colocação no Escritório de Patentes de Berna, colocou o seguinte anúncio em um jornal suíço:

"Aulas particulares de
MATEMÁTICA E FÍSICA
para universitários e secundaristas
dadas especialmente por
ALBERT EINSTEIN, professor
diplomado pela politécnica federal.
GERECHTIGKEITSGASSE, 32, primeiro andar
Aulas experimentais grátis"

Para complicar a história, Einstein e Mileva continuaram juntos por 15 anos e tiveram mais dois filhos, Hans Albert, em 1904, e Eduard, em 1910.

Maric, com os dois filhos de Einstein: Eduard e Hans

Einstein e seu filho Hans

Ovos laterais

Einstein se divorciou de Mileva em 1918 e, na década de 1930, morava
com sua segunda mulher, Elsa Löwentall, em Princeton, nos Estados Unidos. Um amigo residente nessa mesma cidade, Hermann Weyl, recebeu de um professor do Christ Church College, de Oxford, Inglaterra, um telegrama sobre uma mulher que tentava provar ser filha de Einstein:

"Senhorita Herrschdoeffer acha que é filha Einstein. Busca apoio nos altos círculos porque não pode contar com a madrasta, Elsa Löwentall. Não duvide e comunique Einstein pessoalmente. Telegrafe em seguida. Frederick Lindemann."

Ninguém naquela ocasião associou o episódio a Lieserl, cuja existência era então desconhecida de todos. Sabe-se que a secretária de Einstein, Helen Dukas, contratou para investigar o caso
um detetive particular, cujas averiguações teriam indicado que se tratava de um delírio ou de uma impostura de Grete Markstein, que era, na verdade, uma atriz alemã. Einstein escreveu a respeito para um amigo, com uma ressentida pilhéria:

- Dizer que pus ovos para os lados seria engraçado, se não magoasse outras pessoas.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

TERTÚLIAS ELEGANTES

SHAKESPEARE E O DENTISTA

Convidado de um convidado, achava-me ali na condição de quase-penetra. Não estranharia nem um pouco se Fiona Florence e Mastroianni irrompessem abraçados naquela sala imensa, pois sentia-me como se estivesse num filme de Fellini.
Primeiro, Angelina declamou a poesia “Congresso no Polígono das Secas (ritmo senador; sotaque sulista)”, de João Cabral de Melo Neto. Depois, um torneio de mágicas, muito divertido e interessante. O melhor veio, porém, quando se fez um sorteio para ver quem iria propor
um enigma relacionado com Shakespeare e suas personagens, pois quase todos estavam com suas histórias muito bem preparadas.

Cartas

Alice Ben-dov

A sorteada foi uma escritora chamada Alice Ben-dov. Vou tentar reproduzir a história que ela narrou, sobre um dentista do Leblon, que um dia recebeu uma carta para lá de esquisita:

“Silvestre, você não passa de um dentista idiota, pois ignora sua própria história. Se desejar conhecê-la, almoce amanhã no Humphrey’s, exatamente à uma. Como você está familiarizado com Shakespeare, se olhar para baixo, saberá o porquê...
Tiago Lessone.”

Eis o que Silvestre pensou dessa carta:

“Sou idiota, como não, e muito obrigado por manifestar sua abalizada opinião. Ignoro a minha história? Almoçar à uma, no Humphrey’s? Ora, pois! Como conheço Shakespeare, só por isso, basta olhar para baixo... Para ver a rua?
Constatar o quê? Muito barulho por nada? Alguma Sorveteria do Hamlet, com picolés da Dinamarca, um Mercador de Bugigangas Importadas, ou o Rei Lear, com seus bolinhos de bacalhau e geladeiras de segunda mão? Ou será a jaqueira do nosso playground? Peço-lhe, querido bardo, a gentileza de informar ao senhor Tiago Lessone, seja ele quem for, que olhei para baixo e, para minha grande surpresa e desorientação, lá estavam os meus pés, em número de dois, calçando sapatos pretos de tamanho 42, assentados tranquilamente no chão do meu consultório, e, mais abaixo, uma jaqueira que faz o incomensurável favor de nunca ter dado nenhuma jaca. Peço-lhe, mais, que informe ao Lessone que não tenho nenhum tempo, nem disposição, para comparecer ao Humphrey’s”.


Silvestre

Dias depois, o dentista recebeu outra carta:

“Silvestre, você não deu importância à minha carta e não compareceu ao Humphrey’s. Sua história não lhe interessa? Segunda chance, amanhã, no Humphrey’s, às 13 horas. Olha para baixo!
Tiago Lesst.”

Havia uma grande mudança, logo percebida pelo Silvestre, pois o sobrenome, Lessone, fora trocado para Lesst. Pela segunda vez ele decidiu não fazer nada. Houve, poucos dias depois, uma terceira carta, recomendando mais uma vez que ele comparecesse ao Humphrey’s. Só que
desta vez a assinatura mudara para Tiago Lessfirst. Tudo muito esquisito...

Lessone, Lesst ou Lessfirst?


Silvestre pensou longamente nos três sobrenomes do Tiago, entendeu o recado e decidiu comparecer ao Humphrey’s na hora sugerida pela terceira carta. Para sua grande surpresa e desapontamento, no restaurante encontrou sua mulher abraçada com um amante.
Silvestre não é homem de grandes explosões, mas acabou separando-se da mulher.


No Humphrey's
O enigma

- Por que Silvestre atendeu à terceira carta?, eis o enigma, arrematou Alice, dirigindo-se aos presentes.

Os convidados tinham 30 minutos para desvendar a história. Houve, no início, muito palpite, desorientação e manifestações equivocadas. Depois, todos permaneceram em silêncio, e tão longa foi essa pausa que tive a impressão de que ninguém chegaria à solução.
Quando já se encerrava o prazo, entretanto, Susana de Malta, que é tradutora juramentada e mora na Aristides, apresentou a solução do enigma:

- A instrução de olhar para baixo tinha a ver com o sobrenome cambiante. Não era para olhar os sapatos ou a rua, mas a parte de baixo da carta, ou seja, a assinatura do Tiago. Tiago “Lessone” é Tiago sem “one”; Tiago “Lesst” é Tiago sem “T”; e Tiago “Lessfirst” é Tiago sem a inicial. Três informações na mesma direção, pois Tiago sem a inicial é Iago. Sim, Iago, a personagem pérfida que insinua para Otelo que Desdêmona tem um romance secreto com Cássio. Na tragédia de Shakespeare, Otelo acredita na intriga e, possuído pelo demônio do ciúme, estrangula Desdêmona e se suicida.

- Compreendemos muito bem, ou seja, uma recorrência shakespeariana como forma de alertar sobre a mulher. Silvestre só entendeu, afinal, porque conhecia a obra de Shakespeare, o que significa que cultura, entre outras nobres finalidades, também serve aos maridos enganados.

- Serve muito,
observou Alice. Silvestre teve mais bom senso que Otelo. Quero dizer, foi menos radical...

- Só que no caso do Silvestre a denúncia era verdadeira, ao contrário do que ocorre na tragédia de Shakespeare.

- Mais uma agravante contra Otelo. Esse Humphrey’s deve ser um lugar elegante...

- Sim, os clientes fazem as reservas com antecedência, o que permitiu as cartas antecipadas do Tiago sem T para o dentista. E tem mais...O Tiago sem T, se não for o gerente responsável pelas reservas, tem acesso a elas, creio eu.


E o Peloponeso?

Alice e Susana receberam prêmios, cabendo a cada uma xilogravura do Scliar. A festa ainda prosseguiu e encerrou-se depois de algumas projeções coloridas do sítio arqueológico de Epidauro, um santuário situado a nordeste do Peloponeso. Para dizer tudo em poucas palavras, uma rica e sofisticada tertúlia de intelectuais.



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Fui ao atlas e fiquei sabendo onde fica o Peloponeso, uma península no sul da Grécia

sábado, 14 de novembro de 2009

LAMPIÃO E O PREFEITO

O ATAQUE A MOSSORÓ


No dia 13 de junho de 1927, Lampião (1897 ou 1898 - 1938), que havia dias assediava a cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte, enviou uma carta ao prefeito Rodolfo Fernandes, exigindo quatrocentos contos de réis para não atacar a cidade. Como o prefeito recusou a proposta, igualmente por carta, Lampião e seu bando invadiram a cidade.
Seu objetivo era receber o resgate ou saquear a indústria, o comércio, as residências e as instalações do Banco do Brasil.

Carta de Lampião ao prefeito

“Coronel Rodolfo:
Estando eu aqui, o que pretendo é dinheiro. Já foi um aviso para o senhor aí. Se por acaso resolver mandar-me a importância que nós lhe pedimos, evito a entrada aí; não vindo essa importância, eu entrarei até aí. Penso que, a Deus querer, eu entro, e vai haver muito estrago. Por isso, se vier o dinheiro, eu não entro aí. Mas mande resposta logo. Virgulino Ferreira, Capitão Lampião.”

Resposta do Prefeito a Lampião

“Virgulino Lampi
ão: Recebi o seu bilhete e respondo que não tenho a importância que pede; o comércio também não tem. O banco está fechado, pois os seus funcionários se retiraram daqui. Estamos dispostos a suportar tudo que o senhor quiser fazer contra nós. A cidade confia na defesa que organizou. Rodolfo Fernandes, prefeito.”

Praça Rodolfo Fernandes, Mossoró

O ataque

Nesse mesmo 13 de junho deu-se o ataque de Lampião a Mossoró, de acordo com um plano
idealizado pelo cangaceiro potiguar Massilon Leite Benevides, conhecedor da região. Massilon confiou na negligência da população, que não acreditava num ataque de Lampião. Ele não sabia, porém, da determinação do prefeito e dos cidadãos que se dispuseram a defender a cidade contra os marginais, que foram rechaçados e bateram em retirada, deixando para trás um companheiro morto e outro ferido. Nunca mais Lampião se atreveu contra nenhuma cidade do Rio Grande do Norte, ele que, referindo-se à resistência de Mossoró, chegou a fazer o seguinte comentário: “da torre da igreja, até o santo atirava na gente.”

Fim de carreira
Maria Bonita

Lampião continuou sua carreira de invasões e arruaças até ser morto por um grupamento da Polícia Militar alagoana em 28 de julho de 1938, na fazenda de Angicos, no município de Poço Redondo, Sergipe. Com ele morreram sua mulher, Maria Bonita, e os cangaceiros Luís Pedro, Mergulhão, Elétrico, Quinta-Feira, Caixa de Fósforo, Adília, Cajarana e Diferente, e outros 23 cangaceiros se entregaram à volante comandada pelo tenente João Bezerra. Os mortos foram decapitados e suas cabeças ficaram expostas nas escadarias da igreja matriz de Santana do Ipanema, no sertão de Alagoas. De lá foram conduzidas para Maceió e depois para Salvador, onde foram mantidas como "objetos de pesquisa científica", no Instituto Médico Legal de Salvador (Instituto Nina Rodrigues), até a década de 1970.

Diabo Louro

Uma semana depois do massacre da fazenda de Angicos, o cangaceiro Corisco, que carregava o apelido de "Diabo Louro", amigo de Lampião e ex-integrante do seu bando, desfechou violentos ataques retaliatórios contra cidades à margem do Rio São Francisco. Chegou a enviar algumas cabeças cortadas ao prefeito do povoado de Piranhas, Alagoas, com um bilhete audacioso: "se o negócio é de cabeças, vou mandar em quantidade".
Corisco foi morto pela polícia em julho de 1940, na região de Brotas de Macaúbas, no Estado da Bahia.