quarta-feira, 29 de setembro de 2010

SOPHIE GERMAIN ERA “ELE”


A francesa Sophie Germain (1776 - 1831) tinha extraordinária aptidão para Matemática, mas teve de se passar por homem, com o nome de Antoine-August Le Blanc, para estudar na Escola Politécnica de Paris, que no alvorecer do século XIX ainda era uma academia de ciências reservada para homens.

Sophie Germain
("Antoine-Auguste Le Blanc")

Numa época em que as mulheres eram proibidas de estudar temas científicos, Sophie lia escondidamente sobre a Física, de Newton, e a Matemática, de Euler, à noite, depois que seus pais se recolhiam para dormir. Seu talento era, entretanto, tão grande que os maiores matemáticos europeus, como o francês Joseph-Louis Lagrange e o alemão Carl Friedrich Gauss, correspondiam-se com esse ""Le Blanc", sem saber que “ele” era ela.
A verdadeira identidade de Monsieur Le Blanc foi descoberta quando Napoleão invadiu a Prússia, em 1806. Pois Sophie Germain enviou uma carta ao general francês que comandou a invasão, pedindo-lhe que Gauss não fosse molestado.


- Por que me poupam?, perguntou o matemático alemão.


- A pedido de uma moça francesa, respondeu o general. Na sequência desses eventos, descobriu-se a verdadeira identidade de Antoine-August Le Blanc.

Gauss

A correspondência de Sophie com o matemático Adrien-Marie Legendre trouxe uma contribuição importante para a Teoria dos Números. Ela também se destacou nos estudos da Matemática Pura, da Matemática Aplicada e sobretudo no campo da elasticidade dos materiais, tendo sido a única pessoa a submeter um trabalho no concurso organizado pelo Instituto Francês de Ciências, em 1808, para responder ao seguinte desafio:

“Formular uma teoria matemática para as superfícies elásticas,
demonstrando sua compatibilidade com os dados experimentais.”


Uma medalha de ouro, de um quilograma, era o prêmio do vencedor, mas Sophie recusou-se a comparecer à cerimônia de premiação.
Antes de morrer, Sophie escreveu um ensaio sobre a filosofia da ciência, que foi elogiado pelo filósofo Augusto Comte.
Gauss queria que a francesa recebesse um grau de doutora honoris causa da Universidade de Göttingen, na Alemanha, mas a morte de Sophie Germain, em 1831, impediu que a honra lhe fosse conferida.



Na estrutura da Torre Eiffel foram gravados os nomes de 72 sábios que de algum modo contribuíram para sua construção. Sophie Germain foi ignorada, não obstante seus estudos sobre resistência dos materiais, sem os quais a obra monumental não poderia ter sido erigida.

“Mulher solteira, sem profissão”

O atestado de óbito de Sophie Germain registrou que se tratava de “mulher solteira, sem profissão”, em vez de “matemática” ou “cientista”.

sábado, 25 de setembro de 2010

ESTRELAS

Sobre estrelas e galáxias

Uma galáxia é um ajuntamento de estrelas, gás e poeira, que se unem por ação da gravidade. Sabe-se hoje que a parte visível do Universo comporta cerca de 100 bilhões de galáxias, cada uma contendo em média cerca de 100 bilhões de estrelas. Somando tudo, são 10 bilhões de trilhões de estrelas! Com o impressionante detalhe de que as estrelas guardam entre si distâncias extraordinariamente elevadas: a estrela mais próxima do Sol, a estrela Alfa, da constelação de Centauro, dele dista 4,2 anos-luz (cerca de 40 trilhões de quilômetros!).

Constelação de Centauro

- Se não existir vida fora da Terra, então o Universo será um grande desperdício de espaço (...), costumava dizer Carl Sagan.

As galáxias têm variados aspectos, mas Edwin Hubble classificou-as segundo três tipos: galáxias elípticas, galáxias espirais e galáxias irregulares.
Nossa galáxia, a Via Láctea, é uma galáxia espiral, de diâmetro igual a 100 mil anos-luz e espessura de 16 mil anos-luz, contendo entre 200 e 400 bilhões de estrelas. O Sol, uma delas, é a estrela que comanda nosso sistema solar, o qual, como um todo, desloca-se no espaço a uma velocidade de 16 quilômetros por segundo, em direção a Vega, a estrela mais brilhante da constelação de Lira. O diâmetro do Sol é mais de um milhão de vezes o diâmetro da Terra, sua massa é maior que 330 mil vezes a massa da Terra, e dele distamos cerca de 150 milhões de quilômetros. Sua luz demora mais de oito minutos para chegar até nós e é tão intensa que não nos deixa ver os outros astros durante o dia. O telescópio com que os cientistas estudam o Sol tem um filtro especial para proteger sua visão.

Via Láctea

Galáxia elíptica

Galáxia irregular

O que ocorre nas estrelas?

Uma estrela se forma quando uma gigantesca nuvem de gás hidrogênio começa a ser comprimida por ação da gravidade. A força da gravidade aquece o gás gradativamente, fazendo com que a energia gravitacional seja convertida em aceleração do movimento dos átomos de hidrogênio, ou seja, em energia cinética. Cada hidrogênio, no seu núcleo, tem apenas um próton, cuja carga positiva repele os prótons dos outros hidrogênios. Desse modo, inicialmente os prótons conseguem ficar separados, numa luta vitoriosa da sua energia eletromagnética contra a energia gravitacional.
Entretanto, quando, por ação da gravidade, a temperatura supera dez milhões de graus absolutos (graus Kelvin), a energia cinética dos prótons passa a sobrepujar a sua repulsão eletrostática, tendo como consequência que os prótons começam a se chocar uns com os outros. No choque, os núcleos de hidrogênio fundem-se em hélio, liberando uma enorme quantidade de energia, pois o próton do hidrogênio pesa mais que o próton do hélio, havendo uma sobra de massa (cerca de 0,7% do hidrogênio fundido), que se converte em energia nos termos da fórmula de Einstein (e = mc 2). Essa energia preserva a estrela, pois contrabalança a atração gravitacional, que tende a puxar a estrela da sua periferia para o centro, e dela se originam o calor e a luz emitidos pela estrela.

- Uma estrela é uma cozinha nuclear, que queima hidrogênio para sobreviver, resultando dessa queima uma cinza nuclear na forma de hélio refugado.

Com o decorrer de bilhões de anos, os átomos de hidrogênio vão sendo consumidos, sempre acumulando mais hélio, até que a fusão de hidrogênio cessa e a a cozinha nuclear para de funcionar. Não há mais a sobra de massa resultante da fusão nuclear, nem, portanto, energia para contrabalançar a gravidade, e esta tende a esmagar a estrela.

Gigante vermelha

Gigante vermelha

Mas a temperatura da estrela assim comprimida se eleva a tal ponto que a estrela adquire a capacidade de queimar o próprio hélio, convertendo-o em outros elementos, como carbono e lítio. A estrela diminui muito o seu tamanho, mas sua temperatura torna-se muito mais elevada e sua atmosfera se expande de forma extraordinária. Nesse ponto a estrela deixa de ser uma estrela amarela normal e passa a ser uma "gigante vermelha". É o que acontecerá com o Sol, daqui a cinco bilhões de anos, quando nesse processo sua atmosfera ultrapassará a órbita de Marte.

- Gigante vermelha é uma estrela queimando hélio.



Anã branca

Quando o hélio é todo queimado, a cozinha nuclear novamente para de funcionar, a gravidade volta a predominar, obrigando a gigante vermelha a encolher-se numa "anã branca", que pode ter um tamanho menor que um décimo de milésimo de seu tamanho original, embora preserve praticamente toda a massa original da estrela. Uma anã branca é o núcleo que resta da estrela depois que ela ejeta as suas camadas exteriores. Se a estrela original for pequena, sua anã branca será um pequeno astro moribundo cuja gravidade não segura os gases da periferia, que se espalham.

- Anã branca é o produto final de uma estrela que não tem
massa suficiente para transformar-se numa supernova.

Supernova

Supernova: uma estrela explodindo

Há, porém, o caso de estrelas muito pesadas (algumas vezes mais pesadas que o Sol), que podem continuar fundindo elementos que resultaram da fusão do hélio, numa luta desesperada contra a gravidade, resultando no processo elementos cada vez mais pesados, até chegar à produção de ferro. Quando se alcança esse estágio, em poucas horas o núcleo é transformado em ferro, a energia da estrela é sugada, a pressão cai e as camadas externas começam a despencar em direção ao centro da estrela. Vão de encontro ao núcleo sólido de ferro, onde quicam e são ejetadas para o espaço sideral a altas velocidades, numa explosão que se chama de "supernova". A explosão pode expulsar para o espaço até 9/10 da matéria de uma estrela, num processo em que os elétrons colapsam com o núcleo, chocando-se com os prótons e originando nêutrons.

- A supernova é, pois, a explosão catastrófica de uma estrela que exauriu seu combustível nuclear.

Estrela de nêutrons (Pulsar)

Pulsar
Durante algum tempo, a supernova se apresentará com um brilho superior ao de uma galáxia de cem bilhões de estrelas. Com a energia da explosão da supernova, e no calor e pressão da mesma, são produzidos todos os elementos mais pesados que o ferro, que são lançados no espaço juntos com os escombros da explosão.
Os gases liberados no espaço dão origem a uma nova nebulosa (na qual poderão surgir novas estrelas).
Ao fim e ao cabo, a supernova se transforma numa estrela de nêutrons, totalmente morta, girando e emitindo radiação, como se fosse um farol dentro do Universo, por isso às vezes chamada de "estrela que pisca" ou "pulsar"(nome que se originou da expressão "pulsating radio sources").

-Uma estrela de nêutrons, que resulta portanto do colapso de uma estrela que passou pelo estágio de supernova, tem uma área equivalente à da cidade de Campinas, mas com uma densidade tão grande que uma colher de chá de sua matéria pode pesar um bilhão de toneladas.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

UMA MULHER DE TALENTO

PAISAGEM COLORIDA

Nosso casamento deu início a uma fase importante da minha vida. Dois jovens, ambos com vinte e dois anos, dispostos a uma carreira vencedora, tanto no plano afetivo quanto no profissional. Deu muito certo, pois tudo funcionou bem, cada um cumprindo de modo competente sua parte no projeto. Reconheço, porém, a superioridade dela. É verdade que todo o tempo esteve sob minha proteção econômica, pois eu, que recebia uma remuneração razoável na WED, representei sempre o seu seguro. A cujas coberturas, a bem da verdade, nunca precisou recorrer, pois fez ao longo dos anos anos uma carreira vitoriosa, tanto do ponto de vista profissional como financeiro. Ela percebe as oportunidades e administra seus projetos de forma competente, o que, aliás, explica perfeitamente por que uma arquiteta interessada em modas decidiu tomar cursos de estatística e de econometria no Department of Business da Universidade do Texas. Burford, o professor que brincou com nossa ignorância, nunca saberá que Cecília lhe é muito superior, tanto quanto às suas raposas marrons...

- Ela planeja, controla, coordena e comanda tudo, como se fosse um Ford, um Fayol, sei lá.



Itanhangá


Esforço e muito talento igual a êxito, eis uma lei que justifica muito bem os vencedores do mundo. Em pouco tempo, era natural, passou a ganhar mais do que eu. Sempre haverei de reconhecer, com exemplos fartos, que Cecília é uma pessoa diferenciada, e ganhar dinheiro com maestria e dedicação é apenas uma das muitas manifestações de sua inteligência superior. Ela prepondera, esta palavra diz tudo, não importa se a causa é grande, influindo na conta bancária ou no destino das pessoas, ou se irrelevante, como na escolha de um guarda-chuva ou na elaboração de uma lista de convidados. Com muito dinheiro afluindo de ambos os lados, compramos a mansão do Itanhangá e assumimos uma vida de muito conforto material, que incluía carros importados e constantes viagens à Europa. O importante, porém, é que nós nos bastávamos, pois tudo em volta parecia ser, e era, mero complemento na paisagem colorida da nossa existência.

Por ordem do general


Dela falo com muita admiração. Lembro-me, claro, da madrugada angustiante de Veneza, do colar de Ouro Preto e da vitória do Full Advantage, aquela vez no Jóquei Clube. Ah, houve também a história dos cobertores, inesquecível... Os que não morreram tentavam salvar suas miudezas, que a correnteza ia arrastando de maneira decidida. As pessoas, se quisessem ajudar, poderiam enviar dinheiro ou levar suprimentos e agasalhos ao depósito da Rua da Constituição, lá no centro da cidade.

- Vamos ajudar essa gente, Carlinhos.

Compramos dez dúzias de cobertores, que, de carro e com algum embaraço no trânsito, levamos à Rua da Constituição. Tivemos uma recepção fria e burocrática, quase grosseira, e fomos instruídos a deixar os cobertores num pátio muito sujo, onde desordenadamente se amontoavam outros donativos. Tudo seria removido para o depósito, que ficava nos fundos, e distribuído aos flagelados, mas a seu tempo. Um mês depois, superada a urgência da catástrofe, Cecília quis voltar à Rua da Constituição.

- Tenho ordens para abrir o depósito, disse ela ao vigia.

- Abrir o depósito? Ordens de quem?

- Do general Esperantino Tinoco.


Esperantino Tinoco


Lá dentro estavam os nossos cobertores, embrulhados como os deixáramos no dia da tragédia. Por ordem do general Tinoco, nós os resgatamos e os encaminhamos a uma instituição de caridade.

- Não conheço esse general, Cecília.

- Nem seria possível conhecê-lo, simplesmente porque não existe. Foi a minha maneira de pressionar o vigia.

- Ótima, essa. Por que será que pediram donativos e não os enviaram para as vítimas?

- Esse o ponto. Embolsaram o dinheiro piedoso, esquecendo-se do resto, pois não tinham intenção nenhuma de ajudar ninguém; os suprimentos não monetários só eram admitidos na história para dar credibilidade ao apelo.

- Agora entendo; os donativos que não fossem em dinheiro não lhes interessavam.

- Mas há os chatos, como nós, Carlinhos.

E, entre estes, os espertos, como Cecília.


sábado, 18 de setembro de 2010

ORIGEM DO UNIVERSO (VI)

Duvidar da ciência pode não ser bom...


A teoria do Big Bang faz uma descrição coerente da evolução do Universo, não restando nenhuma dúvida de que este teve um início quente e denso, começando sua carreira a partir de um volume infinitesimal, ou seja, a partir de um ponto.


- E as leis da Física, como ficam? Se matéria atrai matéria, como justificar a explosão?

- Esse ponto absoluto, quase metafórico, caracteriza o que os cientistas chamam de singularidade, um estado de gravitação infinita, onde falham as leis físicas conhecidas, incluindo a própria Teoria da Relatividade. É bom saber que, no mundo do infinitamente pequeno, além de não valer a Teoria da Relatividade, não vale o determinismo, não vale a nossa lógica, não vale sequer a nossa capacidade de observação. Desse modo, a singularidade está a exigir a criação de uma teoria da gravitação quântica, o que, aliás, mobiliza hoje centenas de físicos e cosmólogos de todo o mundo.

- Falta isso, é?


Via Láctea

- Há cem anos não sabíamos se havia outra galáxia, para além da Via Láctea; hoje sabemos que há pelo menos 100 bilhões de galáxias; achávamos que o Universo era estático e descobrimos que está em expansão; era tido como eterno e infinito e em verdade iniciou-se de um ponto absoluto há 13,7 bilhões de anos. Ou seja, a ciência progride em direção à verdade, por aproximações sucessivas, com ensaios e erros, não sendo impossível que venha a ser encontrada uma teoria de unificação que explique a singularidade do Big Bang.

- Duvido.


Duvidar da ciência pode não ser bom...

Lord Kelvin (1824-1907), nascido William Thomson, era um físico irlandês muito influente do século XIX, a ponto de ter recebido inúmeras homenagens oficiais na Inglaterra e de ter sido sepultado ao lado de Newton, na Abadia de Westminster. Uma honra que mereceu por mais de 300 trabalhos e importantes contribuições em praticamente todas as áreas da Física.

Lord Kelvin (William Thomson)

Kelvin ficou mais conhecido por seu trabalho em Termodinâmica. Antes o cientista Jacques Charles chegara, por seus cálculos e experiências, à conclusão de que todos os gases teriam volume igual a zero à temperatura de -273 graus Celsius. Kelvin percebeu, porém, que não era o volume da matéria que se anulava nessa temperatura e, sim, a energia cinética de suas moléculas. Concluiu que - 273 graus Celsius era a temperatura mais baixa possível e chamou-a de "zero absoluto". A partir dessa noção, propôs uma nova escala de temperaturas, que posteriormente recebeu o nome de escala Kelvin, com valores sempre iguais aos da escala de Celsius, acrescidos de 273. As chamadas temperaturas absolutas. A escala Kelvin permite maior simplicidade nas expressões matemáticas das relações entre grandezas termodinâmicas.

Escala de Celsius X Escala Kelvin (= temperatura absoluta)

Em famosa carta de 27 de abril de 1900, Lord Kelvin declarou oficialmente que a Física já descobrira praticamente tudo que havia para descobrir no Universo e que os físicos estariam daquela data em diante condenados a revisar o que já se fizera anteriormente.

- Pouco modesto...

- Pois é...

Falecido pouco depois, não teve o dissabor de ver o quanto tudo mudou em termos de conhecimentos físicos, com o advento da Física Quântica, da Relatividade Especial, da Relatividade Geral, do Modelo do Big Bang e a consequente nova Cosmologia.


- Duvidar da ciência pode não ser bom...


Ruim de Opiniões

Aliás, Lord Kelvin ficou famoso por suas gafes e previsões equivocadas. São dele as seguintes pérolas do ceticismo malsucedido, registradas na história da evolução científica e das invenções tecnológicas:

"Átomos não existem."


"Radioatividade é bobagem."


"O rádio não tem futuro."


"Os aviões são impossíveis, porque mais pesados que o ar."


"Os raios X vão se revelar um embuste."


"A Teoria da Evolução, de Darwin, é incompatível com a pouca idade da Terra."




quarta-feira, 15 de setembro de 2010

UMA PRIMAVERA NO TEXAS

A RAPOSA MARROM

O professor Burford, comentando o teste de admissão para o curso que se iniciava, revelou que dois alunos haviam se confundido na interpretação da terceira questão. Pelo mesmo e prosaico motivo: dificuldades com o idioma inglês. Ambos brasileiros, ambos recém-chegados a Austin.

- Um deles é este aqui, disse Burford, apoiando a mão sobre meu ombro, e ele se chama Carlos Auvergne de Carvalho. The quick brown fox jumps over the lazy dog e, não obstante, o senhor não sabe o significado de dummy variable. Veja só!

Um vexame que nem cheguei a padecer, pois o professor, deslocando-se para o outro lado da sala, apontou para a bela jovem de casaco branco. Foi naquele momento que a vi pela primeira vez.

- Cecília, Cecília Lafayette de Castro.

Cecília

O aplauso de toda a turma era uma demonstração de solidariedade, que ela agradecia cheia de modéstia, mas com sorriso cativante. Um tributo à sua extraordinária beleza, sem dúvida, pois, se assim não fosse, teriam me aplaudido também, por que não? Melhor de tudo era que já não estava só naquele mundo estrangeiro, cujo sotaque eu decifrava com dificuldade e ouvido incompetente. No Union´s, o restaurante do campus universitário, ela me explicou que era arquiteta por formação, mas tinha a ambição de ser estilista.

- The quick brown fox jumps over the lazy dog, o que Burford quis dizer com isso?

- A ligeira raposa marrom salta sobre o cão preguiçoso. É uma frase que contém todas as letras usadas no idioma inglês, utilizada nos testes relacionados com máquinas de telégrafo. Essa frase faz parte do show do Burford, que viu em nós, estrangeiros, o pretexto para dizer que a língua inglesa se espalha elegantemente por aí, em todas as bibliotecas do mundo, usando não mais que escassas vinte e seis letras letras. Daí a estranheza com alunos graduados que não sabem o que é dummy variable. Já pensou na tragédia que será alguém morrer sem saber o significado de dummy variable?

- Estranheza e, quem sabe, desapontamento. Ou seja, isso de não saber inglês é pura negligência... Devemos reconhecer, todavia, que foi carinhoso conosco, pois, seja como for, apresentou-nos à turma.

- Sem dúvida... Mas, voltando à raposa, será que o Burford sabe português? São também vinte e seis letras, as mesmas, se não estou enganada.

- Suficientes para escrever os Lusíadas.

- E as crônicas do Rubem Braga...

Distribuição de frequência

- Mudando de assunto, Cecília, por que uma estilista tem de estudar estatística?

- Porque trabalha com moda.

- Um trocadilho?

- Não, não mesmo. Onde você acha que os estatísticos foram buscar sua noção de moda? A moda, a das roupas, tem tudo a ver com amostragem, média, mediana, momentos, desvio padrão...

- É, basta ter uma distribuição de frequências.

- E você, por que está aqui, na Universidade do Texas?

- Bem, sou engenheiro recém-formado e cumpro um treinamento de três meses, a serviço da WED.

- WED?

- Sim, W-E-D, Western Exploration and Development, uma companhia internacional de projetos de mineração e energia.

Megera domada

Além de bonita, Cecília logo revelou ser uma mulher inteligente. Decidimos estudar juntos e, entre histogramas, regressões e números-índices, tive a percepção de que estávamos construindo uma parceria vitoriosa, que iria para além de uma primavera universitária no Texas. Acertei, e na mosca, pois logo estávamos namorando, e morando juntos, perfeitamente integrados um ao outro.

Ron Reagan

Terminado o curso, visitamos Nova Orleans, Nova York, Chicago e San Francisco, antes de regressar para o Brasil. Vimos, no magnífico San Francisco Theatre, um balé cujo motivo era a peça de Shakespeare “The Taming of the Shrew”, impossível de esquecer, por um par de motivos. Primeiro, a dificuldade que Cecília e eu tivemos para saber que “The Taming of the Shrew” era o título inglês de “A Megera Domada”, ou seja, a raposa do Buford ainda estava a saltar sobre nós. Socorreu-nos o generoso e culto senador Artur da Távola, que estava providencialmente sentado a nosso lado. O outro ponto era que um dos dançarinos era Ron Reagan, filho do então presidente Ronald Reagan. Os dançarinos se apresentavam sob máscaras correspondentes aos respectivos personagens, de maneira que não nos foi possível reconhecer qual dos personagens era representado pelo filho ilustre.

- “Petruchio”, arriscou Cecília.

- “Batista Minola”, creio eu, disse Artur da Távola. E você, Carlinhos, que acha?

- Sou muito ruim no quesito adivinhação, respondi.

Podemos duas coisas


Terminava desse modo o breve passeio com que nos despedimos dos Estados Unidos. Nosso destino era agora o Rio de Janeiro.

- Se você quiser, Cecília, podemos duas coisas, disse-lhe, quando nos acomodamos no avião que nos trouxe de volta..

- Acho que podemos mais do que duas coisas, Carlinhos.

- Sem dúvida, mas quero me referir a duas delas, específicas e fundamentais. A primeira é estabelecer um binômio para nós: lealdade e generosidade.

- Muito justo e pertinente. E a outra?

- A gente se casar, assim que estivermos no Brasil.

- Esse é também o meu desejo. Vamos em frente.

- Que a fé vira depois, dizia
D'Alembert...

sábado, 11 de setembro de 2010

A ORIGEM DO UNIVERSO (V)

BIG BANG E SUAS PROVAS

(1) O primeiro êxito da teoria do Big Bang veio em 1948, com a chamada nucleossíntese do Big Bang, uma teoria de George Gamow e Robert Alpher, que mostrou como se formaram os elementos naturais leves (principalmente hidrogênio, hélio, lítio e berílio)
, momentos após o Big Bang, em apenas cinco minutos. Pela teoria, o hidrogênio deveria responder por 75 % da massa do Universo e o hélio, 25%, sendo marginais as contribuições dos outros elementos naturais. Essas percentagens correspondem exatamente à participação dos dois elementos no Universo. Em 14 de abril de 1948, o Washington Post publicou matéria alusiva à coincidência dos cálculos da nucleossíntese do Big Bang com os números do Universo real, estampando a seguinte manchete:

"O MUNDO COMEÇOU EM CINCO MINUTOS"

(A nucleossíntese dos elementos pesados foi explicada posteriormente por Fred Hoyle: os elementos mais pesados, até o ferro, são cozidos nas estrelas.; os elementos mais pesados que o ferro são cozidos nas explosões de supernovas.)

(2) Em 1965 houve a constatação, por Penzias e Wilson, da existência da radiação cósmica de fundo, uma radiação resultante do Big Bang , hoje na temperatura de 2,7 graus absolutos, que continua circulando por todo o Universo, prevista por George Gamow, Ralph Alpher e Robert Herman em 1948.

Mapa do céu obtido pelo WMAP

(3) Em 2003 o satélite WMAP fotografou o Universo quando ainda um bebê de 380 mil anos de idade, há cerca de 13,5 bilhões de anos. O Universo, desde o Big Bang, tem 13,73 (mais ou menos 0,12) bilhões de anos.

- Mas o que havia antes do Big Bang?

-
Antes do Big Bang, não havia nada.

- Como, nada?

- Nada é nada mesmo, pois foi com o Big Bang que surgiram a matéria, o espaço e o tempo.

Mudança de Paradigma

Até o início do século XVII, ou seja, antes de Galileu, a ciência fazia-se quase sempre com submissão ao misticismo e aos textos sagrados. As respostas às questões deviam ser procuradas na Bíblia, nos documentos da Igreja ou nos textos ungidos de Aristóteles e São Tomás de Aquino. Caso neles não se achasse a resposta, a pergunta certamente não deveria ter sido formulada.
Com o telescópio, que soube aperfeiçoar e logo apontou para o firmamento, Galileu descobriu as luas de Júpiter, observou as fases de Vênus, as crateras da Lua e as manchas solares, tudo em desacordo com a visão aristotélica de que a Terra era imóvel e plantada no centro de um Universo perfeito. O filósofo Giulio Libri recusou-se a olhar pelo telescópio de Galileu, sob a alegação de que “isso é um instrumento da falsidade, que faz as coisas parecerem como não são.” As questões de Galileu com o Santo Ofício podem ter ido além da sua insistência na concepção heliocêntrica, haja vista que esta foi estabelecida por Copérnico, um clérigo, e que vários cardeais já a aceitavam naquele tempo. O problema real era deixar que a verdade fosse descoberta por um pensador e observador individual, e profano, que, para complicar, insistia em escrever em italiano, não em latim.

Luneta de Galileu

Pois a vulgarização dessas coisas só servia para abalar a fé das pessoas comuns. Acusado em 1633 de duvidar de que “Deus fixou a Terra sobre suas fundações, para que não se movesse nunca mais”, conforme está registrado na Bíblia, Galileu foi submetido a um longo julgamento pelo Santo Ofício, que o condenou ao silêncio e ao isolamento. Uma página negra, sem dúvida, mas com consequências importantes: o processo contra Galileu acabou ensejando um duro golpe no prestígio da Igreja.
Pois a ciência tornou-se independente e foi se afastando cada vez mais da religião, chegando a recusar a adesão desta ao Big Bang. Em 22 de novembro de 1951 o Papa Pio XII fez um discurso na Academia Pontífice de Ciência, no qual endossou o modelo cosmológico do Big Bang, comparando-o ao Fiat Lux do Gênese. Pelos seus líderes mais importantes, a comunidade científica simplesmente repudiou o apoio papal, enfatizando com determinação que modelos científicos nada têm a ver com concepções religiosas.

Ou seja, Galileu venceu a parada, ainda uma vez. Ele, que se tornou o mais conhecido dos cientistas, além de símbolo da luta contra o obscurantismo.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

COMO FUI ESCOLHIDO

MUITA COISA ENTRE O CÉU E A TERRA


Vários engenheiros responderam ao anúncio da WED, quase todos mais bem preparados do que eu, com o importante pormenor de que apenas um seria contratado. Um teste de conhecimentos gerais, com questões genéricas sobre engenharia, todas discursivas, e uma entrevista com o diretor de investimentos, na qual afirmei casualmente que há uma relação estreita entre logaritmos neperianos e computação contínua de juros.

- Computação de juros e logaritmos? Não parece fazer sentido.


Num pedaço de papel escrevi a fórmula de juros a uma taxa nominal. Quando o número de incidências da taxa aumenta ao infinito, na direção da computação contínua de juros, a fórmula passa a embutir o número “e”, que é base dos logaritmos neperianos.


- Como assim?


- Basta somar o inverso de um número com a unidade e elevar o resultado à potência do número dado. Se este for suficientemente grande, o resultado converge para o número “e” =
2,718 281... Tudo isso está embutido na computação dos juros, veja aqui.


O que demonstrei era tão evidente que não parece ser motivo para garantir emprego para nenhum engenheiro recém-formado. Lembro-me também de haver citado, de Abraham Lincoln, que no topo há sempre um lugar disponível, uma surrada frase muitas vezes repetida pelo professor de cálculo vetorial, o Sidiney Deschamps, que nós só chamávamos de Vetor Ambulante.

Vetor Ambulante

Quando o assunto foi conhecimento da língua portuguesa, mencionei uma antiga ideia de que se erra menos na redação quando se parte da premissa de que orações e períodos são recursos de improvisação usados para construir uma “palavra inexistente”. Mostrei então como se pode integrar verbos, sujeitos, objetos e orações subordinadas numa palavra-unidade, que atua como a “palavra inexistente”, que por sua vez expressa o pensamento que se quer enunciar. Nada pode sobrar nem faltar na palavra-unidade, sob pena de se estar laborando em erro de redação. Lembro-me de ter usado como exemplo o período: “O Brasil espera que cada um cumpra o seu dever.”


- Muito curioso. Onde o senhor aprendeu isso?

- Em lugar nenhum. São elucubrações que fiz quando estudei análise lógica, pois achava as gramáticas muito analíticas e confusas, para não dizer que eram tediosas e aborrecidas.


Saí da conversa cheio de frustração, já que falara sobre coisas que passavam ao largo da engenharia. A entrevista tinha sido a maneira elegante de a companhia demonstrar consideração pelo candidato, antes de dispensá-lo. Duas semanas depois, a surpresa, que até hoje não sei explicar: recebi da WED a comunicação de que deveria apresentar-me para ser contratado.

- Nem tudo que reluz é ouro, disse Shakespeare.

- Foi Shakespeare quem disse isso?

- Sim. Foi ele também quem, pela primeira vez, disse "estamos no mesmo barco", "para mim você está falando grego", "o amor é cego" e "ele tem pavio curto".

- De fato? Mas por que você está trazendo Shakespeare para a conversa?

- Para tentar explicar por que fui escolhido.

- Por que você foi escolhido?

- Porque há mais coisas entre o Céu e a Terra do que supõe a nossa filosofia.

- Estamos no mesmo barco.

sábado, 4 de setembro de 2010

ORIGEM DO UNIVERSO (III)

BIG BANG OU UNIVERSO ESTACIONÁRIO?

George Lemaître

Constatada a expansão do Universo, pela verificação do contínuo afastamento das galáxias, duas teorias dividiam os cosmólogos na segunda metade do século XX:

(a) Teoria do Big Bang,
concebida pelo belga George Lemaître. Defende que o Universo teve um momento de criação e tem portanto uma idade finita. Uma explosão inicial determinou a expansão.

e

(b) Teoria do Universo Estacionário,
proposta por Fred Hoyle, Hermann Bondi e Thomas Gold, o "Trio de Cambridge". Considera o Universo eterno, embora evolutivo, criando matéria para preencher os espaços entre as galáxias, que por isso se afastam. A expansão decorre de um crescimento espontâneo e contínuo, como o de uma bola de soprar cheia que recebe mais pressão.

Fred Hoyle

Quando perguntavam a Fred Hoyle, como se podia explicar essa criação de matéria, ele respondia:

- O Universo, que pode muito, tem a propriedade de criar um átomo em cada século, no volume correspondente ao do edifício Empire State. Se isso de alguma forma incomodar os defensores do Big Bang, peço-lhes que expliquem o que determinou a explosão primordial e o que havia antes dela.

Foi Fred Hoyle quem cunhou a expressão "Big Bang". Em 1949 houve um debate na BBC entre Gamow, defendendo o átomo primordial de Lemaître, e Fred Hoyle, defendendo o Universo Estacionário. Foi quando Hoyle disse debochadamente:

- Meu adversário defende que o Universo foi criado num Big Bang (Grande Estouro).

O nome pegou, criado
, ironicamente, pelo principal adversário da teoria.

Mais detalhes do Big Bang


George Gamow, infância na Rússia

Pela teoria do Big Bang, tudo começou pela explosão de um ponto extremamente denso e quente, o que fez surgir um Universo em expansão. O físico russo George Gamow e seus assistentes Ralph Alpher e Robert Herman defenderam que a explosão primordial encheu o Universo com uma radiação muito quente (milhões de graus Celsius, no iniciozinho da expansão do Universo), que acompanha o Universo eternidade adentro. Se fosse possível detectar de algum modo a radiação cósmica de fundo, prevista por Gamow, o Big Bang sairia vitorioso no embate com a Teoria do Universo Estacionário.

- Não se vislumbrava, porém, uma maneira de constatar a existência da radiação.


Robert Alpher

Outra contribuição importante à teoria do Big Bang ocorreu na década de 1940, quando Gamow, Alpher e Hermann conseguiram explicar, no âmbito de uma teoria chamada de nucleossíntese do Big Bang, por que o Universo é composto de 91 % de átomos de hidrogênio e 9 % de átomos de hélio (em massa, 75% de hidrogênio e 25% de hélio), sendo os outro elementos residuais.
Também em apoio do Big Bang, veio depois a Teoria do Universo Inflacionário, de Alan Guth, postulando que, no instante mais inicial do Universo, logo na explosão, uma misteriosa força de antigravidade fez o Universo se expandir de maneira inimaginável, numa velocidade muitas vezes maior do que a velocidade da luz.

- Se o Universo visível fosse do tamanho de um átomo, o Universo total seria maior do que o Universo visível.


- Caramba!

Ponto fraco da teoria do Big Bang

A Teoria do Big Ban baqueava, porém, perante seu ponto fraco: a idade do Universo. A velocidade de afastamento das galáxias fora estabelecida por Hubble em cerca de 171 quilômetros por segundo para cada milhão de anos-luz (558 quilômetros por segundo para cada megaparsec). Aplicando esse valor em direção ao passado, chegava-se, pelos cálculos, à conclusão de que o Universo teria começado sua existência e expansão há cerca de 1,8 bilhão de anos. Uma contradição com a afirmação dos geólogos de que a Terra tem 4,5 bilhões anos e, sobretudo, um argumento decisivo para os que defendiam um Universo estacionário, que sempre existiu e só se expande porque nela há criação de matéria.

- Como pode a Terra ser mais velha que o Universo?

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

MELISANDE

MUITA AREIA PARA O MEU CAMINHÃO

Melisande frequentava a praia na altura da Venâncio Flores, onde, de longe, muitas vezes contemplei suas formas harmoniosas, que a mim sempre me pareceram ser um dos motivos da grande afluência masculina naquele ponto da areia.

Embora estudante de poucos recursos, aos poucos fui reunindo informações sobre ela, colhidas discretamente em diligências laboriosas e eficientes, cujo planejamento e execução ocupavam boa parte do meu lazer. Tinha a ambição de que o acaso nos aproximasse um dia. Quem sabe a encontrasse na sala de espera de algum consultório dentário?
Sabia que era universitária e tinha grande interesse pelo darwinismo. Tive a ideia de fazer o que chamo de emparelhamento, estudando seus assuntos preferidos. Precisava ter o que conversar quando a fortuna nos reunisse na mesma antessala. Comprei "O Gene Egoísta", de Richard Dawkins, e fiquei sabendo sobre replicadores e sobre a importância de sua longevidade, fecundidade e fidelidade de cópia.


Podia imaginá-la a conversar comigo, ela comentando que, desde cerca de quatro bilhões de anos, surgiram no mar moléculas que tinham capacidade de se autorreproduzirem. Elas se organizaram, no decorrer do tempo, em máquinas de sobrevivência, que somos nós, animais e vegetais. Uma sobrevivência sustentada num regime de feroz competição, pois até o altruísmo é um ato egoísta dos genes. Nesse ponto da conversa, poderia emparelhar, discorrendo sobre a importância da longevidade, fecundidade e fidelidade de cópia dos replicadores nos rumos da seleção natural. É certo que iria me perguntar:

- Bem observado. Você também estuda Biologia?

- Uma questão de cultura geral, pois sou estudante de engenharia.

Certa vez Melisande esteve na Sale's e importou uma ópera de Tchaikovsky. Confesso que não sabia da existência de nenhuma ópera de Tchaikovsky, muito menos com esse nome, “Eugene Onegin”. Nascia assim mais uma oportunidade de emparelhamento, e foi por isso que encomendei o mesmo filme, que veio de Londres, despendendo na empreitada sessenta e três reais.

Uma ópera lírica, baseada numa novela de Alexander Pushkin. Eugene Onegin é um galã entediado e irresponsável, que conquista o coração da bela camponesa Tatiana, cuja irmã, Olga, é noiva do poeta Vladimir Lensky, grande amigo de Onegin. Num exercício de afetação e galantaria, Onegin esnoba Tatiana e decide conquistar Olga durante um baile em que se comemora o aniversário de Tatiana. Lensky, enciumado e revoltado com o cinismo do amigo, desafia-o para um duelo, e neste é mortalmente ferido por Onegin. O qual viaja depois para outras terras, com o remorso de ter provocado a morte do amigo, e se dá conta de que está perdidamente apaixonado por Tatiana. Neste ponto, eu faria o emparelhamento competente.

- Sei o resto da história, Melisande. Anos mais tarde, Onegin vai a uma festa de nobres em San Petersburg e nela reencontra Tatiana, agora casada com o príncipe Gremin. Confessa-lhe seu amor, mas é recusado por Tatiana, que ainda o ama, mas declara-lhe que em nenhuma hipótese será infiel ao seu marido.

- Você conhece a obra, hein?

- Curto muito o Tchaikovsky. Essa ópera é baseada num conto de Pushkin, que o construiu com base na história de seu vizinho Pyotr Chaadae.

Foi por causa de Melisande que comecei a ler poesia, minha primeira incursão, e até então única, no terreno da cultura. Uma espécie de emparelhamento no escuro, que se baseou apenas na pressuposição de que uma moça daquela classe devia gostar de poesia e conhecer tudo dos melhores poetas. Drummond, Bandeira, João Cabral, Vinícius... Sim, Vinícius:

- Eu te amo, Melisande, eu te amo tanto que o meu peito me dói como em doença; e, quanto mais me seja a dor intensa, mais cresce na minha alma teu encanto.


Um dia, porém, soube que a moça tinha o hábito de viajar todo ano para Paris, onde participava de torneios de hipismo, competindo com nobres de toda a Europa, o que se tornava possível porque seu pai era um industrial muito poderoso. Melisande não era apenas rica, mas extraordinariamente rica. Foi então que me caiu a ficha, e pesadamente, pois essa informação mostrou o abismo que havia entre nós, cerceativo e quase intransponível.

Emparelhamento econômico e financeiro não se faz com livros e óperas, muito menos com poesias. Confesso que por um tempo estive a jogar na sena acumulada, na esperança de ser contemplado com a fortuna providencial, acreditando numa generosa subversão, a meu favor, de todas as probabilidades, as quais, aliás, sempre conspiraram contra mim.
Depois que me formei, os acontecimentos da vida, as vicissitudes, fizeram-me esquecer da moça. Ela foi o primeiro amor da minha vida, mas nenhuma palavra trocada, nem para o bem, nem para o mal. Dela me restaram, tão-somente, a informação sobre o darwinismo e o hábito de ler poesia, que venho cultivando vida afora. Também não podia imaginar que “Eugene Onegin” seria apenas o início da minha adesão às óperas, pois outras mulheres me conduziriam mais tarde pelos caminhos de obras importantes, de Verdi a Mascagni e de Borodin a Mozart.


- Mas foi com ela que se manifestou pela primeira vez a propensão que tenho de me apaixonar pelas mulheres.