quarta-feira, 30 de junho de 2010

BOLA NA ARQUIBANCADA

MEU NOME CAFONA

- José Cláudio Antônio Nicola Estradivário Pastasciutta, esse de fato o seu nome, Estevinho?


Nome cafona dá trabalho. Tenho felizmente uma resposta pronta, que costuma funcionar.

Cremona

- Sei que é um nome vasto e complicado, mas tem sua explicação. Meus ancestrais, em Cremona, dedicaram-se desde muitos séculos à fabricação de espaguete, talharim, ravióli e canelone. O nome da família - Ticiani- foi sendo paulatinamente substituído por Pastasciutta. Um nome que me enche de orgulho, pois, longe de ser uma folha ao vento, tem passado e futuro, história e substância. Como todo italiano, meu pai tinha muito orgulho de sua terra, particularmente de Cremona, o mais importante centro mundial de fabricação de instrumentos de corda, segundo uma tradição que começou com Nicola Amati, no século XVII, continuou com Giuseppe Guarnerius e Antonio Stradivarius, no século XVIII, e se estende até os dias de hoje. Cremona é a terra natal de Claudio Monteverdi, violista e criador da ópera italiana.

- Tudo isso tem relação com seu nome?

- Sim. Quando nasci, recebi um nome que homenageava toda essa gente ilustre de Cremona. Carrego um penduricalho, mas um penduricalho histórico!


François Truffaut

Parece que colou
. Devo fingir que sou intelectual e tentar acertar na mosca, antes que se levante da minha cama, decida ir embora e me deixe no ora-veja. O negócio é manter a calma, Estevinho, e falar com naturalidade e sem afetação. Tudo bem, mas sobre o quê? René Clair e Truffaut... não, não, que ela é francesa. Quem sabe aquele assunto dos buracos negros, as três leis de Newton, Demônio de Maxwell?

- Estevinho, você se formou em quê?

Ela foi mais rápida, ou seja, falhei... Não posso confessar que meu pai me abandonou e fugiu para Cremona, depois de dar um desfalque na Central. Com quem fiquei, aos oito anos de idade? Fiquei sozinho, pois minha mãe foi-se com ele, e só não morri de fome porque o acaso, que é cúmplice do tempo, zela pela sobrevivência dos desamparados. Na Febem quiseram me encaçapar, porque eu tinha cara de filhinho de papai. Escapei pela tangente e me tornei vendedor de livros: Jorge Amado, literatura de cordel, receitas de dona Benta, como fazer amigos e influenciar pessoas.

Cabeceando no ângulo...

Pois é, um dia encalhou nas minhas mãos o livro, glorioso, que ensinava a vencer na vida fazendo força na direção certa, que decidi ler por falta de programa melhor. Nele aprendi que as benesses são desigualmente distribuídas, segundo critérios que é inútil discutir. Basta empolgar o seu espaço, cara pálida. Conclua a Inacabada de Schubert, invente o motor de combustão externa, procure libelático no dicionário, plante uma bananeira no alto do Himalaia, compre o bilhete que será contemplado com o grande prêmio, aprenda a cabecear no ângulo, dedique-se à alta costura.
Segui os ensinamentos à risca e achei um caminho. Mas não me formei em nada, eis o problema, e, para não decair perante esta Pascale maravilhosa, só me resta recorrer ao Plano B.

- Pascale, não me formei em nada. E explico por quê: as universidades nada têm para ensinar, neste tempo de internet e globalização. Reconheço que foram instituições importantes em tempos remotos, talvez na época de Galileu e Newton. Veja que...

- Uma afirmativa contrária ao senso comum.

- Marconi nunca frequentou escola nenhuma, foi o inventor do rádio e obteve em 1909 o Prêmio Nobel de Física, ele que se baseou nas teorias de Hertz e Branly, que aprendeu nos livros, e não na universidade.

Marconi

Sem parar de falar, Estevinho pôs-se a fazer o jantar. Mergulhou a lagosta numa panela funda, contendo court bouillon fervente, e deixou cozinhar, esperando que a carapaça ficasse bastante vermelha. Enquanto isso, refogou a cebola, até que se tornasse dourada, e adicionou-lhe caldo de carne e vinho bordeaux. Em seguida, retirou a carne da cauda e da garra da lagosta, manuseando o garfo e a faca com habilidade. Serviu a sopa de cebola em cumbuca refratária, com queijo bruyère ralado, e, após, a lagosta, acompanhada de vinho branco.

- Chablis
?

- Sim, Fourchaume, 2002.
Claro, não sou nenhum Marconi, mas tudo que sei aprendi sozinho, lendo, comparando, experimentando. Quando soube das joint-ventures, comecei a estudar por conta própria, importei livros, frequentei congressos, consultei especialistas. Por quê, se esse negócio de joint-ventures não existia no Brasil? A resposta eu dei quando se fez a opção pela globalização da nossa economia. As companhias internacionais chegaram indagando sobre quem entendia de joint-ventures no Brasil. Só havia uma convergência: José Cláudio Antônio Nicola Estradivário Pastasciutta, o Estevinho.

Pascale deliciou-se com o fígado verde e cremoso da lagosta.

- Você é um excelente cozinheiro, além de bom contador de histórias. Mas não concordo com essa tese sobre as universidades.

Fermat

- Outro exemplo é o de Pierre de Fermat, que, não sei se você sabe, foi o maior matemático do século XVII, pois com ele começou o cálculo diferencial, o cálculo das probabilidades e até a geometria analítica, que desenvolveu ao mesmo tempo que Descartes. Ficou popular por causa do famoso “Último Teorema de Fermat”, cuja demonstração representou um desafio de 300 anos para os matemáticos de todo o mundo.

- Para os matemáticos e não-matemáticos, por causa de um prêmio de um milhão de marcos, oferecido pela Universidade de Göttingen. Fermat era natural de Toulouse, onde já residi, por acaso a cidade do Carlos Gardel. Você ousa dizer que ele nunca frequentou nenhuma faculdade?

- Você sabe essas coisas, hein? Também, francesa... Se Fermat frequentou alguma faculdade? Frequentou, claro que sim, mas uma faculdade de direito, que nada tem a ver com matemática. No caso do Fermat, houve, pois, um apreciável desperdício de tempo na universidade...

- Nada disso. A universidade deu-lhe todas as condições, e, por ser advogado, tornou-se um destacado juiz. Lembre-se que Fermat não era matemático profissional, tanto que, entre os matemáticos, foi considerado "o Príncipe dos Amadores".

- Marconi e Fermat ilustram a minha tese...

- Há centenas de universidades no mundo, milhares de pessoas em múltiplos países pesquisando sobre todos os temas e dando impulso à humanidade, e você as refuta com duas exceções, dois exemplos de algibeira. Você faz estatística com pequenos números, além de ignorar completamente a realidade que se opõe às suas conclusões. Muito bizarro...

Muito bizarro!

O Plano B, execrar a universidade para justificar a mediocridade, meu papo oblíquo que sempre funciona muito bem, foi desta vez uma bola na arquibancada. Isso, exatamente isso, joguei e perdi....

quarta-feira, 23 de junho de 2010

UM TERRÍVEL PARADOXO

ANCHIETA

O padre José de Anchieta (1534 - 1597) é uma das personagens mais interessantes da História do Brasil. Natural da Ilha das Canárias e tendo estudado filosofia em Coimbra, Anchieta chegou ao Brasil em 1553, com menos de 20 anos. Vítima de um problema na espinha dorsal, o jovem sofria de dores agonizantes, caminhava apoiando-se sobre um bastão e envolvia o tronco em faixas que lhe disfarçavam a corcunda.

Obra

Anchieta era fluente em espanhol, português e latim; para além de suas atividades religiosas, destacou-se como gramático, poeta, teatrólogo e historiador. No Brasil, estudou imediatamente a língua indígena e logo escreveu uma gramática e um vocabulário tupi, bem como manuais em tupi, para utilização dos confessores e para assistência aos moribundos. Manejava a língua dos nativos para compor canções, poemas e peças teatrais, de caráter sacro, com o que procurava atrair os índios para o Catolicismo. José de Anchieta foi beatificado, em junho de 1980, pelo Papa João Paulo II.

Seu primeiro livro, "De Gestis Mendi de Saa", em latim e em versos, foi impresso em Coimbra em 1563, narrando a luta entre os portugueses de Mem de Sá e os franceses de Villegaignon, na cidade do Rio de Janeiro.

- Trata-se do primeiro poema épico de toda a América e é anterior à edição de "Os Lusíadas" (1572), de Luís de Camões.

Seu segundo texto impresso foi a "Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil”, com os fundamentos da língua tupi, publicada em Coimbra, em 1595.
Foi também autor de poesias em verso medieval, como o poema "De Beata Virgine Dei Matre Maria", mais conhecido como "Poema à Virgem", com 4.172 versos em latim, e de cantos piedosos, diálogos e autos, segundo o estilo de Gil Vicente, e, por isso, é considerado o iniciador do teatro e da poesia no Brasil. São também importantes as suas cartas para Portugal e Roma, com ricas informações sobre a flora e a fauna, particularmente os peixes encontrados no Brasil.


Como pode?

No livro “O Povo Brasileiro”, Darcy Ribeiro menciona a guerra sem quartel entre os portugueses, com seus canhões e arcabuzes, e os indígenas brasileiros, que dispunham apenas de tacapes, zarabatanas, arcos e flechas. Uma guerra desigual, desumana até. Darcy estranha o gosto dos cronistas da época em exaltar o heroísmo lusitano nessa empreitada de massacrar índios covardemente. Entre esses cronistas, está José de Anchieta. Escreve Darcy Ribeiro:

“Anchieta, descuidado da cordura que corresponderia à sua futura santidade, louva assim o bravo governador (Mem de Sá):


Quem poderá contar os gestos heroicos do Chefe
À frente dos soldados, na imensa mata:
Cento e sessenta as aldeias incendiadas,
Mil casas arruinadas pela chama devoradora,
Assolados os campos, com suas riquezas,
Passado tudo ao fio da espada.

Estes são alguns dos dois mil versos de louvação escritos em latim por José de Anchieta no poema “De Gestis Mendi Saa”.

Mem de Sá, o "Chefe", comandou um programa "civilizador" que destruiu cerca de trezentas aldeias indígenas na costa brasileira do século XVI.





sábado, 19 de junho de 2010

VIDA E MORTE DAS ESTRELAS

GALÁXIAS

Uma galáxia é um ajuntamento de estrelas, gás e poeira, que se unem por ação da gravidade. Sabe-se hoje que a parte visível do Universo comporta cerca de 100 bilhões de galáxias, cada uma contendo em média cerca de 100 bilhões de estrelas. Somando tudo, são 10 bilhões de trilhões de estrelas! Com o impressionante detalhe de que as estrelas guardam entre si distâncias extraordinariamente elevadas: a estrela mais próxima do Sol, a estrela Alfa, da constelação de Centauro, dele dista 4,2 anos-luz (cerca de 40 trilhões de quilômetros!).

Constelação de Centauro

As galáxias têm variados aspectos, mas Edwin Hubble classificou-as segundo três tipos: galáxias elípticas, galáxias espirais e galáxias irregulares. Nossa galáxia, a Via Láctea, é uma galáxia espiral, de diâmetro igual a 100 mil anos-luz (um milhão de trilhões de quilômetros) e espessura de 16 mil anos-luz, contendo entre 200 e 400 bilhões de estrelas. O Sol, uma delas, é a estrela que comanda nosso sistema planetário, o qual, como um todo, desloca-se no espaço a uma velocidade de 16 quilômetros por segundo, em direção a Vega, a estrela mais brilhante da constelação de Lira. O diâmetro do Sol é mais de um milhão de vezes o diâmetro da Terra, sua massa é maior que 330 mil vezes a massa da Terra, e dele distamos cerca de 150 milhões de quilômetros. Sua luz demora mais de oito minutos para chegar até nós e é tão intensa que não nos deixa ver os outros astros durante o dia.

- O telescópio com que os cientistas estudam o Sol tem um filtro especial para proteger sua visão.

Via Láctea, galáxia espiral

Galáxia elíptica

Galáxia irregular

O que ocorre nas estrelas?

Uma estrela se forma quando uma gigantesca nuvem de gás hidrogênio começa a ser comprimida por ação da gravidade. A força da gravidade aquece o gás gradativamente, fazendo com que a energia gravitacional seja convertida em aceleração do movimento dos átomos de hidrogênio, ou seja, em energia cinética. Cada hidrogênio, no seu núcleo, tem apenas um próton, cuja carga positiva repele os prótons dos outros hidrogênios. Desse modo, inicialmente os prótons conseguem ficar separados, numa luta vitoriosa da sua energia eletromagnética contra a energia gravitacional.
Entretanto, quando, por ação da gravidade, a temperatura supera dez milhões de graus absolutos (graus Kelvin), a energia cinética dos prótons passa a sobrepujar sua repulsão eletrostática, tendo como consequência que os prótons começam a se chocar uns com os outros. No choque, os núcleos de hidrogênio fundem-se em hélio, liberando uma enorme quantidade de energia, pois o próton do hidrogênio pesa mais que o próton do hélio, havendo uma sobra de massa (cerca de 0,7% do hidrogênio fundido), que se converte em energia nos termos da fórmula de Einstein (e = mc2). Essa energia preserva a estrela, pois contrabalança a atração gravitacional, que tende a puxar a estrela da sua periferia para o centro, e dela se originam o calor e a luz emitidos pela estrela.

- Uma estrela é uma cozinha nuclear, que queima hidrogênio para sobreviver, resultando dessa queima uma cinza nuclear na forma de hélio refugado.

Com o decorrer de bilhões de anos, os átomos de hidrogênio vão sendo consumidos, sempre acumulando mais hélio, até que a fusão de hidrogênio cessa e a a cozinha nuclear para de funcionar. Não há mais a sobra de massa resultante da fusão nuclear, nem, portanto, energia para contrabalançar a gravidade, e esta tende a esmagar a estrela.

Gigante vermelha


Gigante vermelha

Mas a temperatura da estrela assim comprimida se eleva a tal ponto que a estrela adquire a capacidade de queimar o próprio hélio, convertendo-o em outros elementos, como carbono e lítio. A estrela diminui muito o seu tamanho, mas sua temperatura torna-se muito mais elevada e sua atmosfera se expande de forma extraordinária. Nesse ponto a estrela deixa de ser uma estrela amarela normal e passa a ser uma "gigante vermelha". É o que acontecerá com o Sol, daqui a cinco bilhões de anos, quando nesse processo sua atmosfera ultrapassará a órbita de Marte.

- Gigante vermelha é uma estrela queimando hélio.

Anã branca

Anã branca

Quando o hélio é todo queimado, a cozinha nuclear novamente para de funcionar, a gravidade volta a predominar, obrigando a gigante vermelha a encolher-se numa "anã branca", que pode ter um tamanho menor que um décimo de milésimo de seu tamanho original, embora preserve praticamente toda a massa original da estrela. Uma anã branca é o núcleo que resta da estrela depois que ela ejeta as suas camadas exteriores. Se a estrela original for pequena, sua anã branca será um pequeno astro moribundo cuja gravidade não segura os gases da periferia, que se espalham.

- Anã branca é o produto final de uma estrela que não tem massa suficiente para transformar-se numa supernova.

Supernova

Supernova: uma estrela explodindo

Há, porém, o caso de estrelas muito pesadas (um número de vezes mais pesadas que o Sol), que podem continuar fundindo elementos que resultaram da fusão do hélio, numa luta desesperada contra a gravidade, resultando no processo elementos cada vez mais pesados, até chegar à produção de ferro. Quando se alcança esse estágio, em poucas horas o núcleo é transformado em ferro, a energia da estrela é sugada, a pressão cai e as camadas externas começam a despencar em direção ao centro da estrela. Vão de encontro ao núcleo sólido de ferro, onde quicam e são ejetadas para o espaço sideral a altas velocidades, numa explosão que se chama de "supernova". A explosão pode expulsar para o espaço até 9/10 da matéria de uma estrela, num processo em que os elétrons colapsam com o núcleo, chocando-se com os prótons e originando nêutrons.

- A supernova é, pois, a explosão catastrófica de uma estrela que exauriu seu combustível nuclear.

Estrela de nêutrons (Pulsar)


Pulsar

Durante algum tempo, a supernova se apresentará com um brilho superior ao de uma galáxia de cem bilhões de estrelas. Com a energia da explosão da supernova, e no calor e pressão da mesma, são produzidos todos os elementos mais pesados que o ferro, que são lançados no espaço juntos com os escombros da explosão.

Os gases liberados no espaço dão origem a uma nova nebulosa (na qual poderão surgir novas estrelas).
Ao fim e ao cabo, a supernova se transforma numa estrela de nêutrons, totalmente morta, girando e emitindo radiação, como se fosse um farol dentro do Universo, por isso às vezes chamada de "estrela que pisca" ou "pulsar"(nome que se originou da expressão "pulsating radio sources").

-Uma estrela de nêutrons, que resulta portanto do colapso de uma estrela que passou pelo estágio de supernova, tem uma área equivalente à da cidade de Campinas, mas com uma densidade tão grande que uma colher de chá de sua matéria pode pesar um bilhão de toneladas.

sábado, 12 de junho de 2010

Duas poesias de Dante Milano

Paragem



Com os meus bois,
Os meus bois que mugem e comem o chão,
Os meus bois parados,
De olhos parados,

Chorando,

Olhando...

O boi da minha solidão,

O boi da minha tristeza,

O boi do meu cansaço,
O boi da minha humilhação.

E esta calma, esta canga, esta obediência.


Dante Milano

O amor de agora é o mesmo amor de outrora

O amor de agora é o mesmo amor de outrora

Em que concentro o espírito abstraído,
Um sentimento que não tem sentido,
Uma parte de mim que se evapora.


Amor que me alimenta e me devora,
E este pressentimento indefinido

Que me causa a impressão de andar perdido

Em busca de outrem pela vida afora.

Assim percorro uma existência incerta
Como quem sonha, noutro mundo acorda,

E em sua treva um ser de luz desperta.


E sinto, como o céu visto do inferno,
Na vida que contenho mas transborda,

Qualquer coisa de agora mas de eterno.

Dante Milano (1899-1991), em "Poesias"

quarta-feira, 9 de junho de 2010

A MULHER NA MINHA CAMA

ADORÁVEL PASCALE

Estevinho estava sozinho, no lugar mais discreto do bar. A partir da palavra “SALMO”, queria chegar à palavra “LINHA”, transitando por palavras intermediárias, cada uma diferindo da anterior por uma letra, e somente uma. Verbos, melhor não... Pensou depois nas questões indecidíveis, que não admitem solução. Jamais me associaria a um clube que tivesse a insensatez de me aceitar como sócio, e o cretense Epimênides afirmou que todos os cretenses são mentirosos. Está na Bíblia...


- Garçom, mais um black and white. Oito anos, por favor.

Sentiu a mão no ombro. Era a moça de preto.

- Posso sentar?


- Por favor.


- Peço que não estranhe a ousadia. Estava a observá-lo e senti uma vontade irresistível de conversar com você.


- Não seja por isso. Muito prazer em conhecê-la.


- Não sei, não, mas você me parece muito angustiado.


- Estou pensando no paradoxo do mentiroso e curtindo um pouco a solidão.

- Solidão cheia de manias: “garçom, mais um black and white. Oito anos.” Nunca vi black and white que não fosse oito anos...


- Nem eu. Mas não gosto de correr nenhum risco...


- Muito engraçado!


Pascale. Olhou-a atentamente. Era olhos e boca, como uma mulher de Manuel Bandeira. Quem sabe francesa? Há francesas que abordam homens nos bares, falam Português e tomam banho. Aos 34 anos, Estevinho vivera todas as situações: casara-se, desquitara-se, casara-se novamente, divorciara-se, juntara-se algumas vezes. Mulheres que partiam, mulheres que chegavam. Algumas, de férias, por prazo definido, ou, como dizia, mulheres dia três, que vão embora no dia quatro, para Porto Alegre, Munique, Florença, Houston ou Além Paraíba. Para retornar ao trabalho ou correr aos braços de um noivo saudoso e impaciente.

- Aceita um uísque, Pascale?


- Só se for oito anos...

Na minha cama

Um homem e uma mulher que tomam uísque juntos, no Leblon, são cúmplices de um ideal inexorável: a cama. Quanta obra-prima existe, livros, filmes, peças e canções, sobre mesas, pianos, luvas, colares, retratos e outros variados objetos, usados como metáfora do amor ou, até, de sua ausência. Há um texto de Rubem Braga exaltando o guarda-chuva. Sobre cama, todavia, tudo que Estevinho conhecia era a história do homem traído, que, ao separar-se da mulher, doou-lhe tudo, absolutamente tudo, menos a cama. Pois se a cama se fosse com ela, além da mulher, teria perdido a própria alma.


Pois é, minha pátria é minha cama, pensou Estevinho, quando viu Pascale, deitada a seu lado. Nua assim, deitada assim, magnífica assim. Simplesmente deslumbrante! Uma mulher bonita começa pelos olhos, continua nos lábios, alteia-se em montes soberbos, estende-se por vales insondáveis e acaba... não acaba não, isso mesmo, uma mulher bonita não acaba nunca. A mulher é a perfeição. Se Aristóteles não disse isso, eis uma imperdoável omissão de Aristóteles.
Volúpia, entrega, prazer, apoteoses à primeira potência, apoteoses ao quadrado, apoteoses ao infinito, eis o enredo do amor, que é a melhor das capacidades humanas.

- Um instante de amor, Pascale, corresponde a uma boa eternidade.