- Não confio nas biografias.
- Nem nas idôneas?
- Refiro-me somente às idôneas.
- Por quê?
- Porque o biógrafo tem de suprir as eventuais lacunas com suposições.
- Como assim?
- É necessário inventar de forma verossímil as realidades desconhecidas.
- Verdadeiras mentiras, é isso?
- Mentiras verdadeiras. Há de ser assim, ou não haverá uma biografia fechada, quer dizer, completa. Dificilmente alguém dirá "vamos saltar o ano de 1997 por insuficiência de informações." Daí as ilações. Narradores diferentes, ilações diferentes, biografias diferentes.
- Mas isso vale para tudo: reportagens, pesquisas científicas, previsões do tempo, jogos de futebol, crônicas sociais etc.
- Um evento tem muitas versões, dependendo do narrador e das informações que ele possui.
- Meio complicado, pois distorcê-lo me parece a consequência....
- Lembre-se de que a minha hipótese só contempla o autor idôneo.
O caso do senador Leviatã
- Por que você levantou esse assunto?
- Li outro dia uma biografia do falecido Arnaldo Leviatã.
- O senador?
- Sim, escrita pela Aurora Leviatã, sua filha. Ela vê o pai como um perfeito chefe de família, excelente orador e homem público identificado com o melhor interesse nacional.
- Uma versão filial.
- Ela não sabia que o Leviatã tinha uma amante. Possuindo essa informação, provavelmente teria escrito uma biografia diferente.
- Se quisesse.
- Além disso, o senador era pouco inteligente, mas muito esforçado. Seus discursos eram escritos por assessores, e ele os decorava, treinando horas a fio diante do espelho. Por que nunca concedia nenhum aparte? Porque não saberia replicar o que não havia decorado. Todos o tinham como um Demóstenes e, no entanto, não passava de um ator de segunda categoria, a despejar textos alheios. Isso não daria uma terceira biografia?
- Com certeza.
- E se eu lhe disser que Aurora Leviatã não é filha dele, mas do amante de sua mãe, de cuja existência nem pai nem filha jamais chegaram a saber?
- Isso complica a coisa toda.
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- É praticamente impossível saber sobre a vida de alguém de maneira integral, nem o saberia a própria pessoa a ser biografada. É uma característica absolutamente geral, extensível a todos, sem exceção, pois nem biógrafos nem biografados conhecem a totalidade dos fatos da pessoa a ser biografada. Eu tenho uma versão de mim, talvez a mais próxima da verdade, mas uma versão. Como há lacunas, é necessário supri-las...
- É, versões, Boca de Ouro...
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- Entendi perfeitamente. Até a verdade é uma versão.
- Por isso eu jamais quereria ser jurada, e ter de decidir entre a verdade da acusação e a verdade da defesa, que costumam ser opostas.
- Necessariamente. Com você, no meio, condenando ou absolvendo.
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