quarta-feira, 2 de março de 2011

NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS

BOLA DE SEBO

Laura teria de renovar o aluguel do apartamento por apenas dois meses, o que não foi aceito pelo senhorio. Por isso atendeu à sugestão que em boa hora lhe fiz e veio para meu apartamento, com todos os discos e duas centenas de livros. Discutindo com ela sobre a teoria da relatividade, um assunto que suscitei com frequência, lembrava-me de Einstein e Mileva Maric, ambos estudantes de física na Escola Politécnica de Zurique.

- Ele, um alemão de Ulm, e ela, uma sérvia de Bacska, irmanados no amor pela física.

Mileva Maric Einstein

Bem... Diferentemente de Einstein, não tenho nenhuma propensão, nem capacidade, para ser gênio; e, diferentemente de Mileva, retratada pelos biógrafos como sendo uma mulher sem atrativos, desajeitada e com um defeito nos quadris, Laura era uma encantadora figura de mulher, para além de ser alegre, culta e generosa.

- Mais uma vez eu tinha sido contemplado pela sorte.



Ela às vezes me propunha temas culturais, com muito proveito para mim. Como no dia em que me perguntou se conhecia Guy de Maupassant.

- Guy de Maupassant?

- Autor de histórias abundantes, sobre todos os tipos e situações.

Três centenas de contos, a seu tempo o autor mais lido no mundo. Morreu com quarenta e três anos, apenas.
Laura soube resumir para mim duas de suas histórias. Achei o "Colar de Diamantes" meio ingênuo, sei lá. O conto da mulher bela e admirada, que, numa festa de rara felicidade, perde o colar de diamantes que pedira emprestado à amiga. Isso tem consequências graves: a pobre mulher sacrifica toda a sua vida para repor o colar perdido, sem saber que se tratava de uma joia falsa.

"Bola de Sebo", outro dos contos de Maupassant, pareceu-me, este sim, obra de gente grande. Uma história que se passa na época da guerra franco-prussiana. Na carruagem francesa, uma prostituta, que atende pelo nome pejorativo de Boule de Suif (Bola de Sebo), é hostilizada pelos demais passageiros, que são senhoras e senhores burgueses, de muita hierarquia e nenhum valor. Em certo momento da viagem um oficial do exército invasor detém a carruagem e ameaça retê-la indefinidamente, a não ser que Bola de Sebo concorde em passar uma noite com ele. Isto não está nos planos da prostituta, que, entretanto, é pressionada a ceder àquele desígnio pelos demais passageiros, que nesse mister recorrem a expedientes de persuasão e hipocrisia. Após muito relutar, Bola de Sebo percebe que não tem saída, entrega-se ao comandante, que, uma vez atendido, autoriza o prosseguimento da viagem. Como se nada tivesse ocorrido, no restante do percurso os passageiros retomam a atitude superior e hostil, desprezando, como antes, a pecadora vulgar.

"Bola de Sebo" é o conto do trocadilho “Loiseau vole” e “l’oiseau vole”, que Maupassant construiu porque havia um Loiseau entre os passageiros. Em francês “voler” significa tanto voar como roubar, foi o que Laura me explicou.

- O senhor Loiseau rouba?

- Isso eu não sei, não, senhor. Eu apenas disse que o pássaro voa.

"Bola de Sebo", na verdade uma lenda urbana, inspirou muitas narrativas, entre elas o filme "No Tempo das Diligências" (“Stagecoach”), de John Ford, de 1939.


- Fez sucesso?

- Muito sucesso, como todos os filmes de John Ford. "Stagecoach" foi visto quarenta vezes por Orson Welles, que o considerou a síntese de todos os “westerns”.

- Você sabe das coisas, hein?

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