sábado, 26 de fevereiro de 2011

PAGANDO PEDÁGIO

UMA AULA DE PORTUGUÊS

Eu teria de dar uma aula para todo o Departamento de Física, no último dia do mês, conforme uma tradição que vinha sendo implantada por De Sitter.

- É o seu “pedágio”.

- Mas, aula sobre o quê?

- Qualquer assunto que não seja da física.

- É...

De Sitter e suas idiossincrasias. Logo pensei em falar sobre análises de risco, a técnica que aprendi e desenvolvi
, lá na WED. O problema era, numa única aula, ensinar cálculo das probabilidades e matemática financeira, antes de chegar à teoria dos jogos e ao cálculo dos valores monetários esperados, para orientar a decisão. Não, não, não seria possível.

-
Teria de fazer um prodígio de síntese.

Pois é, na emergência, lembrei-me da “minha aula de Português”, um texto que um dia construí, só por ter me aborrecido com as gramáticas e sua falta de objetividade. Aquele assunto que cheguei a mencionar como candidato na entrevista da WED.

- Isso mesmo, em vez de análises de risco, eu tinha uma chance de mostrar a minha aula de Português!

- O que é uma "palavra inexistente"?

Quando chegou a hora, distribuí cópias do texto para as 76 pessoas presentes e discorri durante cento e vinte minutos sobre a “palavra inexistente”, que este era um assunto meu, exclusivamente meu.


- No mundo animal, certas presas emitem um som, “uma palavra existente”, para avisar aos seus semelhantes que o predador está vindo por terra, e um som diferente, “a outra palavra existente”, comunicando que a investida do predador se dará pelo ar. Essa comunicação, rudimentar e apenas dual, funciona porque as duas "palavras existentes" informam tudo que as presas podem transmitir: uma de duas “palavras existentes” será sempre escolhida para comunicar qual das duas ações está na iminência de ocorrer.

- No caso do ser humano, entretanto, as informações transmitidas são infinitas, improvisadas em cada caso, inviabilizando a comunicação por intermédio de “palavras existentes”. A ação a ser informada corresponde sempre, eu disse sempre, a uma “palavra inexistente”, implicando a necessidade de construir um período que lhe seja equivalente, o que se deve fazer acrescentando a um verbo, com maior ou menor incompletude, um ou mais componentes sintáticos, simples ou oracionais. A cada momento improvisamos um período equivalente a uma “palavra inexistente” tomando por base um verbo.

- O verbo cuja completude se busca configura e preside a oração principal, e sua completude se faz com substantivos, nas funções de sujeitos e objetos, adjetivos e advérbios ou com as as orações subordinadas que lhes são equivalentes. Veja, por exemplo, o seguinte enunciado:

“ Viver na Terra, que é muito dispendioso, inclui, não obstante, uma viagem anual gratuita em torno do Sol”.

- Nenhuma palavra existente seria capaz da façanha de explicar detalhadamente a ação que se expressa nesse enunciado. Há, porém, o verbo “incluir”, incompleto por subjetivação e objetivação, e, com adicionar-lhe os componentes sintáticos adequados, construímos um período que permite expressar a informação que se deseja transmitir.

Depois de advertir que minha terminologia não coincidia necessariamente com a das gramáticas, adicionei, no quadro-negro, vários exemplos, além daqueles apresentados no texto distribuído. Mostrei então os componentes sintáticos que se acoplam ao verbo, na função substantiva de sujeitos ou de objetos, e na função adjetiva ou adverbial, que às vezes são substituídos por orações equivalentes, que as gramáticas chamam de subordinadas.


Os presentes fizeram várias perguntas, que denotavam aceitação e cumplicidade, e me pediram para indicar uma gramática expositiva para fazer um cotejo da teoria apresentada com o tratamento usual do assunto nos textos didáticos.

- Minha aula é a síntese. As gramáticas fazem a análise.

Lembro-me de ter sido aplaudido. O mais importante, para mim, foi a presença de Laura, que depois chegou a discutir alguns exemplos comigo.

- Você pagou um bom pedágio, Carlinhos. Você podia colocar esse texto da "palavra inexistente" na Internet.

- Farei isso depois do carnaval, ou melhor, no dia 16 de março.

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