sábado, 19 de março de 2011

RICARDO III

Matar o rival e cantar a viúva

Os comentários de Joyce sobre Anne Hathaway deixaram-me intrigado, principalmente porque certa vez Laura me disse que não se conhece nenhum detalhe da vida pessoal de Shakespeare. Isso mesmo, o maior autor de todos os tempos protagonizou pelas ruas de Londres uma existência invisível.

- Laura, como foi mesmo essa história da mulher de Shakespeare, no "Ulisses"?

Al Pacino, como Ricardo III

- Joyce enxergava Anne Hathaway por toda parte na obra shakespeariana, até como "megera domada". As ilações parecem decorrer somente da sua leitura de Shakespeare, sem base em fatos reais conhecidos, pois de William Shakespeare se conhece pouquíssima coisa, conforme já comentei com você. A afirmação mais audaciosa de Joyce é a de que Anne, que era oito anos mais velha que Shakespeare, cometeu adultério com o irmão deste, Richard Shakespeare, o que teria a ver com a Cena II, do Ato I, de “Ricardo III”.

- Explica isso...

- Na peça, o "Duque de Gloucester", antes de se tornar "Ricardo III", vai ao velório do rei "Henry VI", que ele próprio assassinara, e se põe a conquistar o coração da lacrimosa "Lady Anne", enteada do morto e viúva do príncipe "Edward IV", que antes "Gloucester" também assassinara. Nessa conquista, "Gloucester" admite os dois assassinatos, alegando que a beleza de "Lady Anne" é o que o levara a cometê-los. "Lady Anne" deixa-se seduzir e dá-lhe sua mão em casamento, iniciando uma conflituosa relação de amor, ódio e sadismo.

- Sua beleza celestial me levou a matar
antes o seu marido e agora o aqui presente seu padrasto.

- E no "Ulisses?"

- O personagem “Stephan Dedalus” afirma que a viúva “Lady Anne” é Anne Hathaway, esposa do autor, e que “Richard III” (“Gloucester”) é Richard Shakespeare, seu irmão.

- Um triângulo familiar...

-Diz “Stephan Dedalus”, na Biblioteca Nacional:


"(...) Richard, um corcunda filho-da-puta, bastardo, faz corte à viúva Anne (o que não se esconde atrás de um nome?), a seduz e a conquista, uma viúva assanhada filha-da-puta). (...) Richard é o único rei destituído do respeito de Shakespeare (...)."


Para “Stephan Dedalus”, esse adultério é um problema que Shakespeare sempre carregou, até para o túmulo, cujos versos, amaldiçoando quem removesse suas pedras, seriam uma tentativa de evitar que Anne Hathaway fosse enterrada a seu lado.


- Muito estranho... Quantos filhos Shakespeare teve com ela?

- Susanna, Judith e Hamnet. Hamnet, o menino, morreu com apenas onze anos, não se sabe como. Para Joyce, Hamnet pode ser a gênese do nome "Hamlet", a quem o espectro (
o próprio autor, para Joyce) diz na peça:

- Hamlet, eu sou o espírito do teu pai.

- Eu sou o espírito do teu pai.

- Se non è vero, è bene trovato...

- Você sabia, Carlinhos, que Kilkenny, tantas vezes citada no "Ulisses", é a menor cidade da Irlanda, seja em área, seja em população?


- Confesso humildemente, neste momento para mim solene, que nunca tinha ouvido falar em Kilkenny. Nem cidade, nem coisa alguma com esse nome. Kilkerry, sim, já ouvi, mas Kilkenny, não. Tenho um amigo, muito legal, chamado Kilkerry.

Pedro Kilkerry

- Parente de Pedro Kilkerry, o poeta simbolista?

- Um sobrinho distante.

- Kilkenny é uma cidade medieval, às margens do rio Nore. Aliás, cidade de gente famosa: Oliver Cromwell, Jonathan Swift e George Berkeley. Pequena no tamanho, mas grande no conteúdo.

- Tudo isso é muito erudito para mim.


Kilkenny

- Basta você se interessar e dedicar ao assunto uma parte do seu tempo.

- O tempo é a minha matéria...

- Pois é, matéria atrai matéria na razão direta das massas.

- E na razão inversa do quadrado das distâncias, não se esqueça.

- Não esquecerei...

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