sábado, 30 de abril de 2011

MARISA E OS POETAS

A grande dor das coisas que passaram


Marisa era realmente bonita.


- Você é especialista em paradoxos, hein?

- Eu poderia ter comentado alguma coisa sobre Zenão de Eleia, o paradoxo das noites escuras, o paradoxo hidrostático e o paradoxo de Fermi.

- De fato?


- Na hora nada disso me ocorreu, esse o preço do improviso.


Também gostava de Bandeira, Fernando Pessoa, Adélia Prado e Cecília Meireles. Fora certa vez a Itabira, só para pisar na terra de Drummond, e pretendia viajar a Divinópolis, para conhecer Adélia Prado.

-Então você gosta de poesia muito mais do que eu. Você é ligada à literatura?

-Profissionalmente, não. Sou formada em contabilidade.


Adélia Prado

Na continuação do diálogo, fiquei sabendo que precisava estudar sobre matemática financeira, pois os alemães a queriam no departamento de projetos. Respondi que podia ajudar. Impossível não se encantar com uma mulher assim bonita, alegre, cativante. Foi desse modo que tudo começou entre nós.

- Por sorteio, disse-me algumas vezes.

Ligou-me logo na manhã seguinte, e passamos a estudar no seu apartamento de Ipanema, duas horas em três dias da semana. May era uma intelectual fulgurante, e Laura, não menos intelectual, era contida e recatada. Tinham, em comum, o bom hábito de frequentar teatros e de ler livros complicados. Diferentemente delas, Marisa não era intelectual na acepção do termo, embora gostasse exageradamente de poesia.
Foi um namoro divertido, que misturava cálculos financeiros e leitura de versos da Divina Comédia, Pessoa, João Cabral, Lorca, Rimbaud, Paul Valéry. Isto, sim, é que era um paradoxo, dois profissionais da área técnica a invocarem versos dos poetas nos melhores momentos de seu quotidiano.

Manoel de Barros

Reciprocávamos nossos conhecimentos sobre poesia. Certa vez, molhados da garoa que nos surpreendeu numa caminhada pelo Jardim de Alá, lembro-me de ter-lhe dito um verso de Manoel de Barros:

- Você é uma dona que me orvalha sanguemente.


Respondeu-me, para meu espanto, com outro verso de Manoel de Barros:


- Você enverda jia nas auroras e magnifica moscas!

Não conhecia Dante Milano, o poeta escondido, nem Carlos Pena Júnior, o jovem dos bares de Recife. Mas foi ela quem me mostrou a poesia “Serenata”, do peruano Manuel Scorza:


Scorza

Ibamos a vivir toda la vida juntos.
Ibamos a morir toda la muerte juntos.

Adiós.

No sé si sabes lo que quiere decir adiós.
Adiós quiere decir ya no mirarse nunca,
vivir entre otras gentes, reírse de otras cosas, morirse de otras penas.
Adiós es separarse, entendes?, separarse,
olvidando, como traje inútil, la juventud.
Ibamos a hacer tantas cosas juntos!

Ahora tenemos otras citas.

Estrellas diferentes nos alumbran en noches diferentes.

La lluvia que te moja me deja seco a mí.

Está bien: adiós.

Contra el viento el poeta nada puede.
A la hora en que parten los adioses,
el poeta sólo puede pedirle a las golondrinas que vuelen sin cesar sobre tu sueño.

Scorza, que morreu em 1983 em um acidente aéreo, em Madri, eu o sabia como autor de romances, como “Bom Dia para os Defuntos”, e me surpreendi ao conhecer esse seu admirável lado poético. Vi-me representado na poesia, pois sempre supus, em relação às mulheres que conheci, que “íbamos a vivir toda la vida juntos, íbamos a morir toda la muerte juntos”, mas tudo acabou no “adiós”, e não pude mirá-las nunca mais.
Um dia Marisa encantou-se com "Calligrammes", de Apollinaire, um livro raro que eu havia comprado em Paris, numa das minhas viagens com Cecília.

- Para você, disse eu, estendendo-lhe o livro.

- Carlinhos, eu te amo.

Marisa também gostava de ressaltar que Rubem Braga era da opinião de que um dos mais belos versos da língua portuguesa fora escrito por Camões com usar apenas sete palavras corriqueiras do idioma, “a grande dor das coisas que passaram”.

Cora Coralina

Lembro-me de ter dito que gostava muito de um verso de Drummond, “o hábito de sofrer, que tanto me diverte, é doce herança itabirana”, que diz tudo com palavras igualmente banais.

- Temos agora a opinião do Rubem Braga e a minha. Falta a sua, Marisa.

- Fico com o verso de Cora Coralina em que o milho se autodefine: “sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece”.


(1) A grande dor das coisas que passaram.

(2)
O hábito de sofrer, que tanto me diverte, é doce herança itabirana.

(3)
Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece.

Rubem Braga tem toda a prioridade, claro.

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