quarta-feira, 11 de maio de 2011

AS DUAS FACES DE JANO

O BEM E O MAL

Fui designado assistente de Maria Hoyle, titular da cadeira de mecânica quântica, e me tornei seu sucessor quando se aposentou, vinte meses depois. Uma perda muito grande para o nosso departamento, ela que no século passado havia conquistado um PhD de física pela Colgate University, de Hamilton, e se tornou assistente de Shimon Malin, autor de a “A Natureza Ama Esconder-se”, livro que associa os pensamentos de Platão aos fundamentos da mecânica quântica.


A esse respeito, Maria Hoyle costumava me dizer:

- Está tudo no Timeu, que é o relato de Platão sobre a criação e estrutura do Universo.

Mantinha, atrás de si, um quadro com um texto do “Discurso Sobre o Método’, tão grande era sua admiração por René Descartes:


“Não me cabe, de fato, aceitar como verdadeira nenhuma coisa que eu não conheça evidentemente como tal; devo dividir cada uma das dificuldades em tantas partes quanto possível e necessário para resolvê-las; hei de conduzir os meus pensamentos de forma organizada, começando pelos objetos mais simples, segundo uma ordem de precedência de uns em relação aos outros; ao final, encerrarei cada estudo ou pesquisa com enumerações completas e revisões gerais, para ter certeza de que nada foi omitido. Enfim, como máxima fundamental, hei de procurar sempre vencer antes a mim do que à fortuna, modificar antes os meus desejos do que a ordem do mundo.”


Entre 1629 e 1649 Descartes viveu na Holanda, ao abrigo das perseguições religiosas, pautando-se pelo lema de Ovídio: “vive bem quem vive escondido”. Temia demonstrar que apoiava o sistema heliocêntrico, temeroso de um castigo semelhante ao que foi aplicado a Galileu. Quando lhe perguntavam sobre sua opinião, Descartes respondia de maneira ambígua:

- A Terra decerto não se move, mas é movida.

Não foi molestado e morreu de pneumonia, quando tinha cinquenta e quatro anos. Fora contratado para dar aulas para a rainha Cristina, da Suécia, que tinha o hábito de ouvir suas lições às cinco horas da manhã. Acabou sucumbindo às baixas temperaturas das madrugadas de Estocolmo.
À parte sua importância na minha formação, primeiro na condição de aluno, depois como seu assistente, Hoyle foi para mim um paradigma de cientista responsável, preocupada com a formação dos seus alunos e com evitar o uso inadequado da ciência.

- Pois, queira ou não, nós, profissionais de física, somos todos cientistas.

Dizia que o deus Jano, com suas duas faces voltadas para lados opostos, o passado e o futuro, pode ser invocado para simbolizar que a ciência tem sido utilizada tanto para o bem quanto para o mal. Uma das faces de Jano terá visto, antes, o químico alemão Fritz Haber, um expoente do século XX, como um paladino da humanidade, por ter criado em 1909 um processo de produção de amônia para fertilizantes, sem o qual não haveria alimentos suficientes para as necessidades do mundo. Não fosse pelos fertilizantes nitrogenados, a população mundial não teria alcançado senão cinquenta por cento dos seus níveis atuais, por falta de alimentos.

- Por esta razão, Haber ganhou merecidamente o Prêmio Nobel de Química, em 1918.

Fritz Haber

A outra face de Jano pôde contemplar depois, do lado oposto, que o mesmo Fritz Haber inaugurou a guerra química, usando gás cloro contra os inimigos, o que foi feito pela primeira vez na Batalha de Ypres, na Bélgica, em 22 de abril de 1915, ele próprio a conduzir as operações, a serviço dos alemães.

- Era o início de uma crônica de extermínio que, só na Primeira Guerra Mundial, registra a morte de mais de cem mil soldados, explicava Maria Doyle. Sua mulher, Clara Haber, que também era cientista, suicidou-se com um tiro no peito, em protesto contra a atuação do marido no front da guerra química.

Clara Haber

Os fertilizantes, que ajudam a vida, e a guerra química, que serve à morte, nasceram, pois, pelas mãos do mesmo cientista. Antes, o Prêmio Nobel e depois, o remorso de ter provocado tanta dor e o suicídio da mulher querida. As duas faces de Jano. Em 1927, em carta a um amigo, Fritz Haber fez a seguinte confissão:

- Estou lutando, cada vez mais depauperado, contra meus quatro inimigos: a insônia, as reivindicações financeiras da minha segunda esposa, Charlotte Nathan, minha preocupação com o futuro e a sensação de haver cometido graves erros em minha vida.

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