quarta-feira, 27 de abril de 2011

SALVO PELO MANUEL BANDEIRA

MARISA

A festa ia ganhando em febrilidade. Valentina Ruas
imitou Elisete Cardoso, e um rapaz de nome Paquito cantou “Toreador, en garde”, da Carmem, de Bizet.

Até que houve o sorteio de Marisa, chamada a explicar a diferença entre “contradição” e "paradoxo". Parecia preparada, restando-me a impressão de que a brincadeira não era tão improvisada como anunciado. "Contradição", disse com desembaraço, é um conflito entre duas ou mais informações, não interessa de onde partam. O conceito é óbvio, e não me cabe constrangê-los com exemplos do tipo: "se alguém disse que viu Jonas ontem em Copacabana, entra em contradição com a informação de que o referido só regressará da Etiópia na semana que vem."

- No paradoxo, prosseguiu, o que há é a concorrência, num dado evento, de duas condições incompatíveis do ponto de vista lógico: é um paradoxo fabricar veículos cada vez mais rápidos para utilizar no trânsito cada vez mais congestionado, como também é um paradoxo querer morar no Complexo do Alemão para fugir dos traficantes de drogas.

- Ou escolher a profissão de professor para enriquecer, observou Karl P., fazendo uma divertida mesura na minha direção.

Marisa recebeu muitos aplausos e manifestações que aprovavam seu desempenho. Era muito bonita, e isso também ajudava.

Eu também?

Por não conhecer ninguém, salvo meu influente parceiro da praia, não me supunha registrado na burocracia da festa. Daí minha surpresa quando também fui sorteado.

- Sua tarefa é ocupar o microfone por cinco minutos, disse-me Karl P.

Não tive como me esquivar da incumbência, assim inesperada, e quase fui vencido pela perplexidade. Estava nervoso e hesitante, principalmente porque a festa era de elevado nível intelectual, e os sorteados que me precederam haviam se saído muito bem. Salvou-me naquele momento a ideia, que felizmente me ocorreu, de recitar "Desencanto", de Manuel Bandeira:


"Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

- Eu faço versos como quem morre."

Fui aplaudido mais do que merecia, por mera gentileza, embora seja justo observar que me safara com aceitável dignidade. Não poderia mais dizer que a poesia nunca me servira ou que tenha me faltado, quando dela necessitei.

Contradição e paradoxo

No encerramento da festa, houve distribuição de prêmios, e os que haviam sido sorteados recebemos das mãos de Karl P. um litro de uísque da sua coleção de doze anos. Foi naquele momento que conversei com Marisa pela primeira vez .

Um comentário:

Unknown disse...

Caro Remo, muito prazer ter conhecido seus escritos. E tal qual suas palavras aconteceu uma trama quântica, que a cada vez vamos mais nos acostumando e menos nos surpreendendo. Domingo falava com meu filho Eduardo em Madrid, pelo skype, e conversamos sobre um conto de Maupassant, Carta de um louco, que tem td a ver com o que acabo de reler, como um bom livro que vc não consegue parar de ler. Parabéns , abç