UMA AULA DE PORTUGUÊS
Eu teria de dar uma aula para todo o Departamento de Física, no último dia do mês, conforme uma tradição que vinha sendo implantada por De Sitter.
- É o seu “pedágio”.
- Mas, aula sobre o quê?
- Qualquer assunto que não seja da física.
- É...
De Sitter e suas idiossincrasias. Logo pensei em falar sobre análises de risco, a técnica que aprendi e desenvolvi, lá na WED. O problema era, numa única aula, ensinar cálculo das probabilidades e matemática financeira, antes de chegar à teoria dos jogos e ao cálculo dos valores monetários esperados, para orientar a decisão. Não, não, não seria possível.
- Teria de fazer um prodígio de síntese.
Pois é, na emergência, lembrei-me da “minha aula de Português”, um texto que um dia construí, só por ter me aborrecido com as gramáticas e sua falta de objetividade. Aquele assunto que cheguei a mencionar como candidato na entrevista da WED.
- Isso mesmo, em vez de análises de risco, eu tinha uma chance de mostrar a minha aula de Português!
Quando chegou a hora, distribuí cópias do texto para as 76 pessoas presentes e discorri durante cento e vinte minutos sobre a “palavra inexistente”, que este era um assunto meu, exclusivamente meu.
- No mundo animal, certas presas emitem um som, “uma palavra existente”, para avisar aos seus semelhantes que o predador está vindo por terra, e um som diferente, “a outra palavra existente”, comunicando que a investida do predador se dará pelo ar. Essa comunicação, rudimentar e apenas dual, funciona porque as duas "palavras existentes" informam tudo que as presas podem transmitir: uma de duas “palavras existentes” será sempre escolhida para comunicar qual das duas ações está na iminência de ocorrer.
- No caso do ser humano, entretanto, as informações transmitidas são infinitas, improvisadas em cada caso, inviabilizando a comunicação por intermédio de “palavras existentes”. A ação a ser informada corresponde sempre, eu disse sempre, a uma “palavra inexistente”, implicando a necessidade de construir um período que lhe seja equivalente, o que se deve fazer acrescentando a um verbo, com maior ou menor incompletude, um ou mais componentes sintáticos, simples ou oracionais. A cada momento improvisamos um período equivalente a uma “palavra inexistente” tomando por base um verbo.
- O verbo cuja completude se busca configura e preside a oração principal, e sua completude se faz com substantivos, nas funções de sujeitos e objetos, adjetivos e advérbios ou com as as orações subordinadas que lhes são equivalentes. Veja, por exemplo, o seguinte enunciado:
“ Viver na Terra, que é muito dispendioso, inclui, não obstante, uma viagem anual gratuita em torno do Sol”.
- Nenhuma palavra existente seria capaz da façanha de explicar detalhadamente a ação que se expressa nesse enunciado. Há, porém, o verbo “incluir”, incompleto por subjetivação e objetivação, e, com adicionar-lhe os componentes sintáticos adequados, construímos um período que permite expressar a informação que se deseja transmitir.
Depois de advertir que minha terminologia não coincidia necessariamente com a das gramáticas, adicionei, no quadro-negro, vários exemplos, além daqueles apresentados no texto distribuído. Mostrei então os componentes sintáticos que se acoplam ao verbo, na função substantiva de sujeitos ou de objetos, e na função adjetiva ou adverbial, que às vezes são substituídos por orações equivalentes, que as gramáticas chamam de subordinadas.
Os presentes fizeram várias perguntas, que denotavam aceitação e cumplicidade, e me pediram para indicar uma gramática expositiva para fazer um cotejo da teoria apresentada com o tratamento usual do assunto nos textos didáticos.
- Minha aula é a síntese. As gramáticas fazem a análise.
Lembro-me de ter sido aplaudido. O mais importante, para mim, foi a presença de Laura, que depois chegou a discutir alguns exemplos comigo.
- Você pagou um bom pedágio, Carlinhos. Você podia colocar esse texto da "palavra inexistente" na Internet.
- Farei isso depois do carnaval, ou melhor, no dia 16 de março.
sábado, 26 de fevereiro de 2011
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011
CAVALLERIA RUSTICANA
LAURA
Laura vivia suas últimas semanas como estudante, pois já obtivera todos os créditos das matérias teóricas e apenas aguardava o momento de defender sua tese.
De Sitter pediu-lhe que me recebesse no Departamento de Física, e com ela visitei os laboratórios, a biblioteca, a sala dos computadores, o auditório, o salão nobre e o restaurante. Sempre deveria haver alguém assim, gentil assim, no nosso dia inaugural.
- Sua tese é sobre o quê?, foi tudo que me ocorreu perguntar-lhe.
- Relatividade especial.
- Um assunto fascinante, Laura.
- Sem dúvida, uma inflexão na história do pensamento científico.
- Gosto muito daquela experiência do Einstein, supondo-se à velocidade da luz, com um espelho na mão...
- Uma experiência mental, um teste lógico conduzido pela mente. Gedanken...
- Gedanken, sim, gedanken.
- Se ele visse sua imagem no espelho, teríamos de reformular as leis da mecânica clássica, de Newton. Se não visse, é porque a luz não conseguiria deixar seu rosto e alcançar o espelho, disso decorrendo que seria necessário abandonar o princípio da relatividade, de Galileu.
- Uma escolha crucial, entre a imagem, de Galileu, e a não-imagem, de Newton...
- Ganhou a imagem, pois a luz se desloca à velocidade de 300 mil quilômetros por segundo em relação a todos os observadores, estejam estes parados ou em movimento. Nenhuma velocidade se soma ou se subtrai à velocidade da luz no vácuo, que é absoluta, independentemente de todos os referenciais.
- Maravilhoso, isso. A luz não discrimina os que estão parados dos que se movem, não importa a que velocidade estejam. Trata-os igualmente. A imagem estará lá, no espelho do Einstein, mostrando-lhe a cabeleira desgrenhada.
- Venceu Galileu, pelo menos dessa vez.
- Mais uma vez, a bem da verdade.
- Em compensação, espaço e tempo deixaram de ser absolutos e independentes, como supôs Newton.
Bem, no quesito da física, tínhamos um diálogo mais ou menos equilibrado. Aos poucos eu iria perceber que, além de quase doutora em física, Laura era uma intelectual, realmente. Ela não se enquadrava no figurino geral do cientista que pouco se importa com a cultura. Pois sabia muito de literatura e de artes e conhecia muito bem os assuntos da física.
Seja como for, fomos ficando muito próximos. Tanto que, uma semana depois, convidou-me para ver uma ópera, Cavalleria Rusticana, no Teatro Municipal.
- Como?
- Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni. Recomendo aproveitar esse início de curso mais folgado para ver todos os espetáculos a seu alcance, pois a coisa por aqui deve apertar muito.
Dou muita sorte com mulheres inteligentes, que conhecem os caminhos e gostam de apontá-los aos principiantes e recém-chegados. Aos neófitos, como eu. Lembrei-me de Eugene Onegin, a ópera que vi para me enturmar com Melisande, cuja já não representava nada para mim, tantos anos haviam decorrido; é que da primeira ópera a gente nunca esquece... Lembrei-me também da May, que me levou aos Pequenos Burgueses, de Gorki, e ao Estrangeiro, de Camus.
Valeu a pena. Pois foi acompanhando o drama de Turiddu, Santuzza, Alfio e Lola que começou nosso namoro. Tudo muito triste, lá no palco, e eu, ali, quase alegre, segurando a mão da Laura.
- A mão generosa da Laura...
Laura vivia suas últimas semanas como estudante, pois já obtivera todos os créditos das matérias teóricas e apenas aguardava o momento de defender sua tese.
De Sitter pediu-lhe que me recebesse no Departamento de Física, e com ela visitei os laboratórios, a biblioteca, a sala dos computadores, o auditório, o salão nobre e o restaurante. Sempre deveria haver alguém assim, gentil assim, no nosso dia inaugural.
- Sua tese é sobre o quê?, foi tudo que me ocorreu perguntar-lhe.
- Relatividade especial.
- Um assunto fascinante, Laura.
- Sem dúvida, uma inflexão na história do pensamento científico.
- Gosto muito daquela experiência do Einstein, supondo-se à velocidade da luz, com um espelho na mão...
- Uma experiência mental, um teste lógico conduzido pela mente. Gedanken...
- Gedanken, sim, gedanken.
- Se ele visse sua imagem no espelho, teríamos de reformular as leis da mecânica clássica, de Newton. Se não visse, é porque a luz não conseguiria deixar seu rosto e alcançar o espelho, disso decorrendo que seria necessário abandonar o princípio da relatividade, de Galileu.
- Uma escolha crucial, entre a imagem, de Galileu, e a não-imagem, de Newton...
- Ganhou a imagem, pois a luz se desloca à velocidade de 300 mil quilômetros por segundo em relação a todos os observadores, estejam estes parados ou em movimento. Nenhuma velocidade se soma ou se subtrai à velocidade da luz no vácuo, que é absoluta, independentemente de todos os referenciais.
- Maravilhoso, isso. A luz não discrimina os que estão parados dos que se movem, não importa a que velocidade estejam. Trata-os igualmente. A imagem estará lá, no espelho do Einstein, mostrando-lhe a cabeleira desgrenhada.
- Venceu Galileu, pelo menos dessa vez.
- Mais uma vez, a bem da verdade.
- Em compensação, espaço e tempo deixaram de ser absolutos e independentes, como supôs Newton.
Bem, no quesito da física, tínhamos um diálogo mais ou menos equilibrado. Aos poucos eu iria perceber que, além de quase doutora em física, Laura era uma intelectual, realmente. Ela não se enquadrava no figurino geral do cientista que pouco se importa com a cultura. Pois sabia muito de literatura e de artes e conhecia muito bem os assuntos da física.
Seja como for, fomos ficando muito próximos. Tanto que, uma semana depois, convidou-me para ver uma ópera, Cavalleria Rusticana, no Teatro Municipal.
- Como?
- Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni. Recomendo aproveitar esse início de curso mais folgado para ver todos os espetáculos a seu alcance, pois a coisa por aqui deve apertar muito.
Dou muita sorte com mulheres inteligentes, que conhecem os caminhos e gostam de apontá-los aos principiantes e recém-chegados. Aos neófitos, como eu. Lembrei-me de Eugene Onegin, a ópera que vi para me enturmar com Melisande, cuja já não representava nada para mim, tantos anos haviam decorrido; é que da primeira ópera a gente nunca esquece... Lembrei-me também da May, que me levou aos Pequenos Burgueses, de Gorki, e ao Estrangeiro, de Camus.
Valeu a pena. Pois foi acompanhando o drama de Turiddu, Santuzza, Alfio e Lola que começou nosso namoro. Tudo muito triste, lá no palco, e eu, ali, quase alegre, segurando a mão da Laura.
- A mão generosa da Laura...
sábado, 19 de fevereiro de 2011
LADO BOM É O LADO DE DENTRO
UM ORGULHOSO ESTUDANTE DE FÍSICA
Ignácio De Sitter, Rafael Lemaitre e Maria Hoyle, os professores da banca, reuniram-se na sala do reitor durante trinta minutos. Que mais pareceram uma boa eternidade, que encurtou e até desapareceu quando, retornando do recesso, De Sitter comunicou, de maneira solene, que a aula tinha sido aprovada. Uma pequena grande vitória. Eu passava ao lado bom, que é o lado de dentro, com o estipêndio de cinco salários mínimos por mês.
- Além disso, Carlos Auvergne, queremos convidá-lo para jantar conosco, seguindo a tradição de trazer para nossa intimidade os candidatos que são aprovados para fazer o doutorado.
Não conhecia o Perfect Food, com seu serviço competente e elegante. Cabia-me desfrutar, sem trauma nem constrangimento.
Durante todo o jantar, De Sitter elogiou a minha aula, que classificou como de "boa física, enriquecida com História e um pouco de terrorismo."
- A propósito, perguntou, mantendo o tom de brincadeira, por que a homogeneidade térmica do Universo é tão assustadora?
- Porque tudo se transformará numa formidável sopa de fótons e neutrinos, desorientados e sem nenhuma motivação, retrucou Maria Hoyle, salvando-me de oferecer uma resposta.
- Só a entropia pode desorientar os neutrinos, rebateu De Sitter, as partículas que nenhum ser humano viu, mas são garantidas pela matemática...
- O triunfo do sutil...
- Mas ninguém aqui precisa dispensar a sobremesa para pegar rapidamente o avião e fugir do Universo morituro, porque esse estado final só chegará daqui a alguns bilhões de anos, acrescentou Lemaitre.
Maria Hoyle gostou também daquela tirada do atestado de óbito:
- A termodinâmica criou o Universo e depois o matará. Por isso carrega esse atestado de óbito no bolso do colete, o Segundo Princípio da Termodinâmica.
- E, caso queira, poderá usar o mesmo atestado para o Universo subsequente, arrematou De Sitter.
- Certamente o fará, emendei, já integrado à nova família, pois as mesmas leis físicas provavelmente prevalecem em todos os Universos.
- Viva!, concluiu Lemaitre. Isto é o que se pode chamar de generalização multiuniversal das ideias de Galileu Galilei, que afirmou que as mesmas leis físicas prevalecem em todas as partes do Universo. O Carlos Auvergne vai mais longe, garantindo que essas leis valem também para todas as partes de todos os eventuais Universos.
- Como a geometria...
Este é o meu ambiente, pensei. Quando retornei a casa, estava cansado, mas exultante de felicidade. Não pude conter a emoção e redigi um texto, que ainda guardo comigo:
(Um) "Sou eternamente grato à moça da San Martin, pela sua inspiração alavancadora".
(Dois) “Sou agora um orgulhoso estudante de física. Não pretendo ser nenhum Faraday ou Heisenberg, mas hei de honrar o padrão que tenho perseguido durante toda a vida. Quando estudante, quis ser um bom estudante; quando namorado, bom namorado; como marido, bom marido; como engenheiro, bom engenheiro; com os amigos, bom amigo; e assim por diante, bom vizinho, bom cidadão, bom eleitor. Não será diferente como físico, ou melhor, como professor de física. Tenho para mim que a comunhão do professor com os alunos só se completa quando sua aula desmoraliza todas as dúvidas. Não serei um despejador de fórmulas, pois, ao ensinar, é preciso saber a história, a geografia e, se for o caso, até a mitologia de cada assunto, sobrepujando-o e prevalecendo sobre ele.”
Muito pretensioso, claro. Mas a ideia me levaria, no futuro, a buscar sempre a melhor maneira de ensinar um assunto, visando ao entendimento dos alunos. A preparação de minhas aulas em grande parte tem sido dedicada ao quesito “qual a melhor maneira de explicar isso."
Ignácio De Sitter, Rafael Lemaitre e Maria Hoyle, os professores da banca, reuniram-se na sala do reitor durante trinta minutos. Que mais pareceram uma boa eternidade, que encurtou e até desapareceu quando, retornando do recesso, De Sitter comunicou, de maneira solene, que a aula tinha sido aprovada. Uma pequena grande vitória. Eu passava ao lado bom, que é o lado de dentro, com o estipêndio de cinco salários mínimos por mês.
- Além disso, Carlos Auvergne, queremos convidá-lo para jantar conosco, seguindo a tradição de trazer para nossa intimidade os candidatos que são aprovados para fazer o doutorado.
Não conhecia o Perfect Food, com seu serviço competente e elegante. Cabia-me desfrutar, sem trauma nem constrangimento.
Durante todo o jantar, De Sitter elogiou a minha aula, que classificou como de "boa física, enriquecida com História e um pouco de terrorismo."
- A propósito, perguntou, mantendo o tom de brincadeira, por que a homogeneidade térmica do Universo é tão assustadora?
- Porque tudo se transformará numa formidável sopa de fótons e neutrinos, desorientados e sem nenhuma motivação, retrucou Maria Hoyle, salvando-me de oferecer uma resposta.
- Só a entropia pode desorientar os neutrinos, rebateu De Sitter, as partículas que nenhum ser humano viu, mas são garantidas pela matemática...
- O triunfo do sutil...
- Mas ninguém aqui precisa dispensar a sobremesa para pegar rapidamente o avião e fugir do Universo morituro, porque esse estado final só chegará daqui a alguns bilhões de anos, acrescentou Lemaitre.
Maria Hoyle gostou também daquela tirada do atestado de óbito:
- A termodinâmica criou o Universo e depois o matará. Por isso carrega esse atestado de óbito no bolso do colete, o Segundo Princípio da Termodinâmica.
- E, caso queira, poderá usar o mesmo atestado para o Universo subsequente, arrematou De Sitter.
- Certamente o fará, emendei, já integrado à nova família, pois as mesmas leis físicas provavelmente prevalecem em todos os Universos.
- Viva!, concluiu Lemaitre. Isto é o que se pode chamar de generalização multiuniversal das ideias de Galileu Galilei, que afirmou que as mesmas leis físicas prevalecem em todas as partes do Universo. O Carlos Auvergne vai mais longe, garantindo que essas leis valem também para todas as partes de todos os eventuais Universos.
- Como a geometria...
Este é o meu ambiente, pensei. Quando retornei a casa, estava cansado, mas exultante de felicidade. Não pude conter a emoção e redigi um texto, que ainda guardo comigo:
(Um) "Sou eternamente grato à moça da San Martin, pela sua inspiração alavancadora".
(Dois) “Sou agora um orgulhoso estudante de física. Não pretendo ser nenhum Faraday ou Heisenberg, mas hei de honrar o padrão que tenho perseguido durante toda a vida. Quando estudante, quis ser um bom estudante; quando namorado, bom namorado; como marido, bom marido; como engenheiro, bom engenheiro; com os amigos, bom amigo; e assim por diante, bom vizinho, bom cidadão, bom eleitor. Não será diferente como físico, ou melhor, como professor de física. Tenho para mim que a comunhão do professor com os alunos só se completa quando sua aula desmoraliza todas as dúvidas. Não serei um despejador de fórmulas, pois, ao ensinar, é preciso saber a história, a geografia e, se for o caso, até a mitologia de cada assunto, sobrepujando-o e prevalecendo sobre ele.”
Muito pretensioso, claro. Mas a ideia me levaria, no futuro, a buscar sempre a melhor maneira de ensinar um assunto, visando ao entendimento dos alunos. A preparação de minhas aulas em grande parte tem sido dedicada ao quesito “qual a melhor maneira de explicar isso."
quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011
O ATESTADO DE ÓBITO DO UNIVERSO
UM SEGUNDO PRINCÍPIO CHEIO DE CONSEQUÊNCIAS
Explicar o Segundo Princípio da Termodinâmica é um um exercício arriscado. Não há de ser para mim, pensei, quando me aprumei para retomar a aula. Era manter a pegada e a determinação, sem nenhum receio ou constrangimento.
- Também por métodos holísticos, o francês Sadi Carnot descobriu que não é possível a passagem espontânea de calor de um corpo frio para um corpo quente, tanto quanto não é possível a transformação completa de calor em trabalho. Descobriu, quem diria, o Segundo Princípio da Termodinâmica. O ciclo de Carnot é teórico, reversível, sem atrito.
- Sadi Carnot era militar, mas também se dedicava à literatura, à música, à dança, à equitação, à matemática e à física. Como físico, seu objetivo era construir a máquina a vapor de máxima eficiência. O pai, Lazare Carnot, economista, militar, filósofo e matemático, chamado durante a Revolução Francesa de “Grande Carnot”, foi autor de importantes trabalhos de geometria, estática e dinâmica.
Fui me animando, disposto a insistir no lado humano dos cientistas, pois cada vez mais a novidade parecia contar com a aprovação da banca.
- Pois é, senhores, Sadi passou a ser hostilizado depois que seu pai foi exilado pela Restauração. E morreu aos trinta e seis anos, vítima de escarlatina e cólera. O homem que formulou o Segundo Princípio morreu com apenas trinta e seis anos!
Foi nesse ponto que De Sitter, o presidente da banca, me interrompeu, o que eu já esperava, e me pediu que explicasse o conceito de entropia.
Era hora de mostrar por que me considerava apto a cursar o doutorado.
- É fundamental ter em mente que os corpos quentes cedem calor espontaneamente para os corpos frios; o calor cedido, antes armazenado num corpo quente, passa desse modo a ser armazenado num corpo mais frio. O valor quantitativo da entropia é calculado dividindo a quantidade de calor pela temperatura e será maior se essa quantidade de calor passar a uma temperatura mais baixa. O corpo que cede calor perde entropia e o corpo que o recebe ganha entropia maior que aquela perdida pelo corpo quente, pois está a uma temperatura menor. A consequência é que a entropia do conjunto sempre aumenta, porque pelo Segundo Princípio o calor é sempre transferido para o corpo mais frio.
Em dado momento, se reconhecermos que a entropia de um sistema isolado não é máxima, podemos afirmar que a entropia era inferior antes desse momento e que será superior em cada momento posterior. De fato, para além da memória humana, só a entropia permite distinguir entre passado e futuro. Seu crescimento é incessante e correlaciona-se com o crescimento do tempo, sendo certo que, ao fim de bilhões de anos, o Universo assumirá um assustador estado de homogeneidade térmica. Todo o Universo na mesma temperatura configura o fim da história, não havendo possibilidade, nem motivo, para nenhuma ordem ou informação ulteriores.
- Por isso é que se diz que a entropia é a morte térmica do Universo.
- Por favor, interrompeu-me novamente o presidente da banca. Estenda essa questão de informação inexistente num ambiente de entropia máxima.
- O crescimento da entropia cessa quando tudo estiver na mesma temperatura, levando à homogeneidade, e a homogeneidade faz desaparecer a informação. De fato, a característica da informação é a ausência de homogeneidade. Tomemos, por exemplo, a palavra VIRTUDE, de sete letras diferentes. Sabemos perfeitamente a informação que esta palavra transmite. Se, num exercício, formos sucessivamente substituindo todas as letras pela letra V, teremos, em sequência, VVRTUDE, VVVTUDE, VVVVUDE, VVVVVDE, VVVVVVE e VVVVVVV. Nesse processo, caminhamos da ausência de homogeneidade (VIRTUDE, informação total) para a máxima homogeneidade (VVVVVVV, completa ausência de informação). O estado não homogêneo é um estado ordenado, com informação, e o estado homogêneo, um estado desordenado, sem nenhuma informação. Os corpos que compõem o Universo estão em temperaturas diferentes, permitindo a informação e a vida, mas o tempo da termodinâmica conduz finalmente a um estado universal de homogeneidade, propondo uma imagem de destruição e degenerescência, que exclui qualquer possibilidade de história posterior. O Segundo Princípio da Termodinâmica é o atestado do futuro óbito do Universo, nada havendo mais triste, nem mais definitivo.
- Terminou seu tempo, arrematou De Sitter, encerrando a minha aula. O seu tempo, bem entendido, não o da termodinâmica.
Voltei ao meu estado normal, de ex-Al Pacino, certo de que me saíra bem. So far, so good, pensei repetidamente.
Só me restava esperar pelo veredicto da banca.
Explicar o Segundo Princípio da Termodinâmica é um um exercício arriscado. Não há de ser para mim, pensei, quando me aprumei para retomar a aula. Era manter a pegada e a determinação, sem nenhum receio ou constrangimento.
- Também por métodos holísticos, o francês Sadi Carnot descobriu que não é possível a passagem espontânea de calor de um corpo frio para um corpo quente, tanto quanto não é possível a transformação completa de calor em trabalho. Descobriu, quem diria, o Segundo Princípio da Termodinâmica. O ciclo de Carnot é teórico, reversível, sem atrito.
- Sadi Carnot era militar, mas também se dedicava à literatura, à música, à dança, à equitação, à matemática e à física. Como físico, seu objetivo era construir a máquina a vapor de máxima eficiência. O pai, Lazare Carnot, economista, militar, filósofo e matemático, chamado durante a Revolução Francesa de “Grande Carnot”, foi autor de importantes trabalhos de geometria, estática e dinâmica.
Fui me animando, disposto a insistir no lado humano dos cientistas, pois cada vez mais a novidade parecia contar com a aprovação da banca.
- Pois é, senhores, Sadi passou a ser hostilizado depois que seu pai foi exilado pela Restauração. E morreu aos trinta e seis anos, vítima de escarlatina e cólera. O homem que formulou o Segundo Princípio morreu com apenas trinta e seis anos!
Foi nesse ponto que De Sitter, o presidente da banca, me interrompeu, o que eu já esperava, e me pediu que explicasse o conceito de entropia.
Era hora de mostrar por que me considerava apto a cursar o doutorado.
- É fundamental ter em mente que os corpos quentes cedem calor espontaneamente para os corpos frios; o calor cedido, antes armazenado num corpo quente, passa desse modo a ser armazenado num corpo mais frio. O valor quantitativo da entropia é calculado dividindo a quantidade de calor pela temperatura e será maior se essa quantidade de calor passar a uma temperatura mais baixa. O corpo que cede calor perde entropia e o corpo que o recebe ganha entropia maior que aquela perdida pelo corpo quente, pois está a uma temperatura menor. A consequência é que a entropia do conjunto sempre aumenta, porque pelo Segundo Princípio o calor é sempre transferido para o corpo mais frio.
Em dado momento, se reconhecermos que a entropia de um sistema isolado não é máxima, podemos afirmar que a entropia era inferior antes desse momento e que será superior em cada momento posterior. De fato, para além da memória humana, só a entropia permite distinguir entre passado e futuro. Seu crescimento é incessante e correlaciona-se com o crescimento do tempo, sendo certo que, ao fim de bilhões de anos, o Universo assumirá um assustador estado de homogeneidade térmica. Todo o Universo na mesma temperatura configura o fim da história, não havendo possibilidade, nem motivo, para nenhuma ordem ou informação ulteriores.
- Por isso é que se diz que a entropia é a morte térmica do Universo.
- Por favor, interrompeu-me novamente o presidente da banca. Estenda essa questão de informação inexistente num ambiente de entropia máxima.
- O crescimento da entropia cessa quando tudo estiver na mesma temperatura, levando à homogeneidade, e a homogeneidade faz desaparecer a informação. De fato, a característica da informação é a ausência de homogeneidade. Tomemos, por exemplo, a palavra VIRTUDE, de sete letras diferentes. Sabemos perfeitamente a informação que esta palavra transmite. Se, num exercício, formos sucessivamente substituindo todas as letras pela letra V, teremos, em sequência, VVRTUDE, VVVTUDE, VVVVUDE, VVVVVDE, VVVVVVE e VVVVVVV. Nesse processo, caminhamos da ausência de homogeneidade (VIRTUDE, informação total) para a máxima homogeneidade (VVVVVVV, completa ausência de informação). O estado não homogêneo é um estado ordenado, com informação, e o estado homogêneo, um estado desordenado, sem nenhuma informação. Os corpos que compõem o Universo estão em temperaturas diferentes, permitindo a informação e a vida, mas o tempo da termodinâmica conduz finalmente a um estado universal de homogeneidade, propondo uma imagem de destruição e degenerescência, que exclui qualquer possibilidade de história posterior. O Segundo Princípio da Termodinâmica é o atestado do futuro óbito do Universo, nada havendo mais triste, nem mais definitivo.
- Terminou seu tempo, arrematou De Sitter, encerrando a minha aula. O seu tempo, bem entendido, não o da termodinâmica.
Voltei ao meu estado normal, de ex-Al Pacino, certo de que me saíra bem. So far, so good, pensei repetidamente.
Só me restava esperar pelo veredicto da banca.
sábado, 12 de fevereiro de 2011
UM RICARDO III DE SEGUNDA MÃO
Termodinâmica, com plateia
O presidente da banca era Ignácio De Sitter, um consagrado professor e cientista, que eu conhecia de nome. Havia uma inesperada plateia, quase todos estudantes do curso básico, talvez uns trinta, recolhendo experiências, quem sabe, para quando chegasse a sua vez.
De Sitter passou-me a palavra, sem maiores considerações:
- Primeiro e Segundo Princípios da Termodinâmica, eis o assunto escolhido para você, Carlos Auvergne de Carvalho.
Termodinâmica, eis pois! Um assunto que eu estudara muito bem, embora achasse que sua escolha fosse muito improvável. Assumi, naquele momento crucial, que era um cidadão do mundo chamado Al Pacino, disposto a dar a aula da minha vida. Veio-me à mente, nem sei por quê, a fala da cena 5 do quinto ato de Macbeth: "a vida é uma peça de teatro, cheia de som e fúria, significando nada."
- Não sou nenhum Macbeth, pensei, e para mim a vida significa tudo.
Estava num dia de rara inspiração, de modo que fui desenvolvendo o tema proposto de maneira organizada e fluente.
- Numa formulação holística, e portanto não-cartesiana, Julius-Robert von Mayer percebeu que a energia nunca é criada nem destruída, mas transformada de uma forma para outra. Ou seja, percebeu o Primeiro Princípio da Termodinâmica, o qual garante a conservação da energia. O Universo é um sistema fechado e portanto de energia constante, distribuída na luz do sol, no petróleo, nas plantas, nas barragens - energia nuclear, energia mecânica, energia química, energia elétrica... Energia por toda parte, mudando de uma forma para outra, mas conservando-se sempre durante o processo, do ponto de vista quantitativo. Assim também, a energia de um sistema isolado, que não troca energia com o exterior e por isso é igualmente fechado, permanece constante, o que explica o fracasso dos que tentam construir máquinas de movimento perpétuo, ou seja, sistemas que seriam capazes de fornecer trabalho sem receber energia.
Eu tinha ensaiado todos os assuntos, e tantas vezes, que mais parecia uma autoridade na matéria do que um Ricardo III de segunda mão.
- Robert Mayer nasceu no distrito de Heilbronn, no estado de Wurttemberg, na Alemanha. Foi o autor dos estudos que permitiram estabelecer uma equivalência entre trabalho mecânico e calor e quase se matou quando soube que o crédito pelas suas descobertas fora conferido ao físico britânico e fabricante de cerveja James Prescott Joule. Mayer foi realmente boicotado, e isto se deveu ao preconceito contra a Naturphilosophie, pois se dizia então, mais do que agora, que os alemães só pensavam na unidade fundamental da natureza, “esse romantismo metafísico de Goethe”.
O presidente da banca era Ignácio De Sitter, um consagrado professor e cientista, que eu conhecia de nome. Havia uma inesperada plateia, quase todos estudantes do curso básico, talvez uns trinta, recolhendo experiências, quem sabe, para quando chegasse a sua vez.
De Sitter passou-me a palavra, sem maiores considerações:
- Primeiro e Segundo Princípios da Termodinâmica, eis o assunto escolhido para você, Carlos Auvergne de Carvalho.
Termodinâmica, eis pois! Um assunto que eu estudara muito bem, embora achasse que sua escolha fosse muito improvável. Assumi, naquele momento crucial, que era um cidadão do mundo chamado Al Pacino, disposto a dar a aula da minha vida. Veio-me à mente, nem sei por quê, a fala da cena 5 do quinto ato de Macbeth: "a vida é uma peça de teatro, cheia de som e fúria, significando nada."
- Não sou nenhum Macbeth, pensei, e para mim a vida significa tudo.
Estava num dia de rara inspiração, de modo que fui desenvolvendo o tema proposto de maneira organizada e fluente.
- Numa formulação holística, e portanto não-cartesiana, Julius-Robert von Mayer percebeu que a energia nunca é criada nem destruída, mas transformada de uma forma para outra. Ou seja, percebeu o Primeiro Princípio da Termodinâmica, o qual garante a conservação da energia. O Universo é um sistema fechado e portanto de energia constante, distribuída na luz do sol, no petróleo, nas plantas, nas barragens - energia nuclear, energia mecânica, energia química, energia elétrica... Energia por toda parte, mudando de uma forma para outra, mas conservando-se sempre durante o processo, do ponto de vista quantitativo. Assim também, a energia de um sistema isolado, que não troca energia com o exterior e por isso é igualmente fechado, permanece constante, o que explica o fracasso dos que tentam construir máquinas de movimento perpétuo, ou seja, sistemas que seriam capazes de fornecer trabalho sem receber energia.
Eu tinha ensaiado todos os assuntos, e tantas vezes, que mais parecia uma autoridade na matéria do que um Ricardo III de segunda mão.
- Robert Mayer nasceu no distrito de Heilbronn, no estado de Wurttemberg, na Alemanha. Foi o autor dos estudos que permitiram estabelecer uma equivalência entre trabalho mecânico e calor e quase se matou quando soube que o crédito pelas suas descobertas fora conferido ao físico britânico e fabricante de cerveja James Prescott Joule. Mayer foi realmente boicotado, e isto se deveu ao preconceito contra a Naturphilosophie, pois se dizia então, mais do que agora, que os alemães só pensavam na unidade fundamental da natureza, “esse romantismo metafísico de Goethe”.
Mayer
- Mayer, senhores, morreu de tuberculose, aos 64 anos.
Os professores, com gestos discretos, pareciam estar de acordo com a inovação de jogar um pouco de vida e de conteúdo humano em meio às considerações científicas.
Terminado o Primeiro Princípio, interrompi momentaneamente a explanação para servir-me da água que haviam depositado à minha frente. Estava surpreendentemente calmo, cada vez mais, porque animado com a adesão da banca.
- "So far so good", pensei, lembrando-me do que dizia um professor do Texas nas pausas que fazia durante suas aulas de econometria.
O melhor, porém, estava por vir: Segundo Princípio e entropia.
Os professores, com gestos discretos, pareciam estar de acordo com a inovação de jogar um pouco de vida e de conteúdo humano em meio às considerações científicas.
Terminado o Primeiro Princípio, interrompi momentaneamente a explanação para servir-me da água que haviam depositado à minha frente. Estava surpreendentemente calmo, cada vez mais, porque animado com a adesão da banca.
- "So far so good", pensei, lembrando-me do que dizia um professor do Texas nas pausas que fazia durante suas aulas de econometria.
O melhor, porém, estava por vir: Segundo Princípio e entropia.
quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011
UMA AULA PARA A MOÇA DA SAN MARTIN
Meu reino por cinco salários mínimos
Sonhar com Einstein na véspera da aula, ora direis! Permaneci muito tempo deitado, relacionando o sonho extravagante com a odisseia que era encarar uma banca de doutores e depor-lhes uma aula sobre um assunto que me seria comunicado apenas na hora. A qual, se aprovada, implicava um doutorado, com direito a uma bolsa de cinco salários mínimos por mês, durante três anos. Eu me preparara exaustivamente e só temia que os nervos me atrapalhassem, quando chegasse a hora da verdade.
- Dar uma aula, sem saber qual o assunto... Essa é boa, muito boa.
Mecânica
- Tomara que escolham mecânica. É começar pelo princípio da inércia, passar pelo balde de Newton, discutir o caráter absoluto do movimento da Terra e o pêndulo de Foucault. A toda ação, corresponde uma reação, igual e de sentido contrário, sendo certo, quem diria, que um corpo não pode, por si só, modificar seu estado de repouso ou de movimento retilíneo uniforme. Simetrias e invariâncias, o Princípio de d’Alembert, o tempo, Santo Agostinho, Kant, Stephen Hawking... Nosso passado tem forma de pera, o presente já passou, e o futuro é uma expectativa que reflete a nossa experiência... passada. Bem, isso já é coisa de Pedro Nava.
Honestidade não é grandeza
- Se me pedirem para dar uma aula sobre grandeza, entro com aquela do Ilmar: “Grandeza é o atributo de um objeto ou atributo de um atributo de um objeto, no qual, atributo, se podem reconhecer diferentes graus de intensidade." Se não for atributo, não é grandeza; se não puder assumir diferentes graus de intensidade, também não é grandeza. Carro não é grandeza, mas sua velocidade é. Posso improvisar uma piada: honestidade não é grandeza, pois, embora atributo, nela não se pode reconhecer nenhuma gradação de intensidade. Essa é boa, muito boa!
E se for acústica? Magnetismo? Hidrodinâmica? Relatividade?
Proibido usar matemática
- Lembrar-se, Carlinhos idiota, de não usar integrais ou cálculo vetorial, nem médias harmônicas ou transformadas de Laplace. Ensinar por meio de fórmulas matemáticas é muito cômodo, mas tem o pequeno e decisivo inconveniente de que os alunos ficam sem entender o que está sendo ensinado. Exercite, em vez, aquele seu velho aforismo: a melhor álgebra é a das palavras, verborrágica, superabundante.
A moça da San Martin
Faça de conta que você está num barzinho do Baixo Leblon e a moça mais bonita da San Martin de uma só vez lhe pergunta se você curte o Al Pacino e o que é física.
- Sim, sim, também curto o Al Pacino. Isso mesmo, você vai dar a aula, qualquer que seja o assunto, para a moça mais bonita da San Martin, a Elisa, segurando o giz como quem segura um copo de uísque. Problema, se houver, serão as intervenções do presidente da banca, inesperadas, surpreendentes e ameaçadoras, interferindo no rumo da aula. Mas isso está fora do meu controle. Seja como for, lembre-se de que o professor é um ator num palco, fazendo o Ricardo III. Meu reino por cinco salários mínimos!
Terminada a aula, espero que todos se confraternizem comigo, a exaltar meus conhecimentos, repetindo a cada instante que física é isso aí, de aula assim é que os alunos precisam.
Sonhar com Einstein na véspera da aula, ora direis! Permaneci muito tempo deitado, relacionando o sonho extravagante com a odisseia que era encarar uma banca de doutores e depor-lhes uma aula sobre um assunto que me seria comunicado apenas na hora. A qual, se aprovada, implicava um doutorado, com direito a uma bolsa de cinco salários mínimos por mês, durante três anos. Eu me preparara exaustivamente e só temia que os nervos me atrapalhassem, quando chegasse a hora da verdade.
- Dar uma aula, sem saber qual o assunto... Essa é boa, muito boa.
Mecânica
- Tomara que escolham mecânica. É começar pelo princípio da inércia, passar pelo balde de Newton, discutir o caráter absoluto do movimento da Terra e o pêndulo de Foucault. A toda ação, corresponde uma reação, igual e de sentido contrário, sendo certo, quem diria, que um corpo não pode, por si só, modificar seu estado de repouso ou de movimento retilíneo uniforme. Simetrias e invariâncias, o Princípio de d’Alembert, o tempo, Santo Agostinho, Kant, Stephen Hawking... Nosso passado tem forma de pera, o presente já passou, e o futuro é uma expectativa que reflete a nossa experiência... passada. Bem, isso já é coisa de Pedro Nava.
Honestidade não é grandeza
- Se me pedirem para dar uma aula sobre grandeza, entro com aquela do Ilmar: “Grandeza é o atributo de um objeto ou atributo de um atributo de um objeto, no qual, atributo, se podem reconhecer diferentes graus de intensidade." Se não for atributo, não é grandeza; se não puder assumir diferentes graus de intensidade, também não é grandeza. Carro não é grandeza, mas sua velocidade é. Posso improvisar uma piada: honestidade não é grandeza, pois, embora atributo, nela não se pode reconhecer nenhuma gradação de intensidade. Essa é boa, muito boa!
E se for acústica? Magnetismo? Hidrodinâmica? Relatividade?
Montaigne
Manter a calma, esse o segredo, e só mencionar assuntos por mim dominados, omitindo todo o resto. Ao citar os pioneiros, mencionar seus problemas e dizer como foi que eles morreram. Para avaliar se uma pessoa foi feliz, isto é, se valeu a pena ter vivido, é preciso saber como foi que morreu, e quem ensina isso é Michel de Montaigne, nos Ensaios competentes. Se tais coisas não ficarem esclarecidas, isto é, se não se conhece o lado humano e doloroso dos físicos, os alunos podem pensar que ciência se faz num céu de brigadeiro, sem alma, sem angústia e sem sofrimento. Que a física surge do nada, como a noite, a chuva, as manhãs de outono, o vento leste, ou pelas artimanhas de alguma máquina, bastando ligá-la na tomada ou alimentá-la de petróleo numa planta de gasolina.
Proibido usar matemática
- Lembrar-se, Carlinhos idiota, de não usar integrais ou cálculo vetorial, nem médias harmônicas ou transformadas de Laplace. Ensinar por meio de fórmulas matemáticas é muito cômodo, mas tem o pequeno e decisivo inconveniente de que os alunos ficam sem entender o que está sendo ensinado. Exercite, em vez, aquele seu velho aforismo: a melhor álgebra é a das palavras, verborrágica, superabundante.
A moça da San Martin
Faça de conta que você está num barzinho do Baixo Leblon e a moça mais bonita da San Martin de uma só vez lhe pergunta se você curte o Al Pacino e o que é física.
- Sim, sim, também curto o Al Pacino. Isso mesmo, você vai dar a aula, qualquer que seja o assunto, para a moça mais bonita da San Martin, a Elisa, segurando o giz como quem segura um copo de uísque. Problema, se houver, serão as intervenções do presidente da banca, inesperadas, surpreendentes e ameaçadoras, interferindo no rumo da aula. Mas isso está fora do meu controle. Seja como for, lembre-se de que o professor é um ator num palco, fazendo o Ricardo III. Meu reino por cinco salários mínimos!
Terminada a aula, espero que todos se confraternizem comigo, a exaltar meus conhecimentos, repetindo a cada instante que física é isso aí, de aula assim é que os alunos precisam.
sábado, 5 de fevereiro de 2011
MULHERES GENIAIS (III de III)
HARÉM DE PICKERING
Em 1877 o Observatório Astronômico de Harvard, dirigido por Edward Charles Pickering, iniciou um ambicioso programa de fotografia celeste. Decepcionado com a falta de concentração e incapacidade dos homens para dar atenção aos detalhes, Pickering acabou por convocar para auxiliá-lo, nessa empreitada, uma numerosa equipe de mulheres, que, para ele, eram mais responsáveis, precisas e meticulosas.
Lideradas por Williamina Fleming, as mulheres engajadas nesse projeto formaram o que ficou conhecido como o "Harém de Pickering", encarregando-se de examinar as fotos colhidas pelos telescópios e fazer os cálculos relacionados com os dados observados. As mulheres corresponderam plenamente à expectativa de Pickering. Duas delas, em particular, extrapolaram suas atribuições de simples computadoras de dados de estrelas e passaram a ocupar lugar de destaque na história da Astronomia: Annie Jump Cannon e Henrietta Leavitt.
Annie Jump Cannon, antes uma professora de Física, ingressou no Harém de Pickering em 1896, onde passou a catalogar cerca de 5 mil estrelas por mês, separando-as por cor, brilho e localização. Ela compensava sua surdez quase total com um extraordinário aumento do sentido da visão. De fato, seu “olho” para estrelas não foi jamais igualado e lhe permitiu examinar cerca de 400.000 estrelas, num trabalho absolutamente individual.
É dela a divisão das estrelas, por massa e luminosidade, em sete classes espectrais - O, B, A, F, G, K e M - uma sequência que gerações de estudantes americanos desde muitos anos memorizam mediante utilização de uma célebre frase mnemônica:
- “Oh, Be A Fine Girl - Kiss Me!”.
Isso equivale a qualquer coisa como “Ó, Seja Uma Garota Bacana - Beije-Me!”.
Annie foi uma campeoníssima no quesito “primeira mulher”, pois foi a primeira mulher a receber um doutorado honorário da Universidade de Oxford, a primeira mulher a receber um título de membro da Sociedade Astronômica Americana e a primeira mulher a receber a Medalha de Ouro Draper, da Academia Americana de Ciências.
Henrietta Leavitt (1868 - 1921)
A exemplo de Annie Jump Cannon, Henrietta Leavitt era totalmente surda, o que lhe dificultava disputar oportunidades no mercado de trabalho. Em 1895 ela se ofereceu para trabalhar, sem nenhuma remuneração, no Observatório Astronômico de Harvard, onde executou tarefas simples até 1902, quando foi admitida como assessora permanente, com o salário de 30 centavos de dólar por hora.
Henrietta Leavitt interessou-se por estrelas variáveis, que são estrelas que aumentam e diminuem de brilho regularmente, como a estrela de Algol, na Constelação de Perseu, por isso mesmo chamada, às vezes, de Demônio Piscante.
Henrietta descobriu mais de 2.400 estrelas variáveis, cerca de metade do total então conhecido. Entre as estrelas variáveis, estão as Cefeidas, que variam entre brilho máximo e brilho mínimo em um intervalo de tempo constante; depois de muito pesquisar, ela fez uma descoberta revolucionária, correlacionando o brilho de uma Cefeida com o logaritmo do tempo em dias entre o brilho aparente máximo e o brilho aparente mínimo da Cefeida considerada.
Bastava determinar o período que decorre entre brilho máximo e brilho mínimo, por inspeção visual, para ter o brilho real de uma Cefeida mediante a utilização da correlação obtida por Henrietta, em contraposição ao seu brilho aparente percebido desde a Terra.
Essa descoberta permitiu aos astrônomos, a partir da década de 1920, calcular a exata distância que nos separa de qualquer estrela Cefeida e, em consequência, descobrir que nossa galáxia não era única do Universo, mas apenas uma no meio de cem bilhões de galáxias, sendo certo que há Cefeidas em todas as galáxias.
Henrietta Leavitt morreu de câncer em 1921, quase sem ser percebida, mas hoje muitos a consideram a “mais brilhante mulher que já passou por Harvard”. Onde, é bom repetir, trabalhou cerca de sete anos sem receber nenhum salário, assoberbada por problemas de saúde e pelas suas obrigações domésticas.
As denominações do Asteroide ""5383 Leavitt" e da Cratera Lunar "Leavitt" foram dadas em sua homenagem.
Em 1877 o Observatório Astronômico de Harvard, dirigido por Edward Charles Pickering, iniciou um ambicioso programa de fotografia celeste. Decepcionado com a falta de concentração e incapacidade dos homens para dar atenção aos detalhes, Pickering acabou por convocar para auxiliá-lo, nessa empreitada, uma numerosa equipe de mulheres, que, para ele, eram mais responsáveis, precisas e meticulosas.
Lideradas por Williamina Fleming, as mulheres engajadas nesse projeto formaram o que ficou conhecido como o "Harém de Pickering", encarregando-se de examinar as fotos colhidas pelos telescópios e fazer os cálculos relacionados com os dados observados. As mulheres corresponderam plenamente à expectativa de Pickering. Duas delas, em particular, extrapolaram suas atribuições de simples computadoras de dados de estrelas e passaram a ocupar lugar de destaque na história da Astronomia: Annie Jump Cannon e Henrietta Leavitt.
Annie Jump Cannon (1863 - 1941)
Annie Jump Cannon, antes uma professora de Física, ingressou no Harém de Pickering em 1896, onde passou a catalogar cerca de 5 mil estrelas por mês, separando-as por cor, brilho e localização. Ela compensava sua surdez quase total com um extraordinário aumento do sentido da visão. De fato, seu “olho” para estrelas não foi jamais igualado e lhe permitiu examinar cerca de 400.000 estrelas, num trabalho absolutamente individual.
É dela a divisão das estrelas, por massa e luminosidade, em sete classes espectrais - O, B, A, F, G, K e M - uma sequência que gerações de estudantes americanos desde muitos anos memorizam mediante utilização de uma célebre frase mnemônica:
- “Oh, Be A Fine Girl - Kiss Me!”.
Isso equivale a qualquer coisa como “Ó, Seja Uma Garota Bacana - Beije-Me!”.
Annie foi uma campeoníssima no quesito “primeira mulher”, pois foi a primeira mulher a receber um doutorado honorário da Universidade de Oxford, a primeira mulher a receber um título de membro da Sociedade Astronômica Americana e a primeira mulher a receber a Medalha de Ouro Draper, da Academia Americana de Ciências.
Henrietta Leavitt (1868 - 1921)
A exemplo de Annie Jump Cannon, Henrietta Leavitt era totalmente surda, o que lhe dificultava disputar oportunidades no mercado de trabalho. Em 1895 ela se ofereceu para trabalhar, sem nenhuma remuneração, no Observatório Astronômico de Harvard, onde executou tarefas simples até 1902, quando foi admitida como assessora permanente, com o salário de 30 centavos de dólar por hora.
Henrietta Leavitt interessou-se por estrelas variáveis, que são estrelas que aumentam e diminuem de brilho regularmente, como a estrela de Algol, na Constelação de Perseu, por isso mesmo chamada, às vezes, de Demônio Piscante.
Henrietta descobriu mais de 2.400 estrelas variáveis, cerca de metade do total então conhecido. Entre as estrelas variáveis, estão as Cefeidas, que variam entre brilho máximo e brilho mínimo em um intervalo de tempo constante; depois de muito pesquisar, ela fez uma descoberta revolucionária, correlacionando o brilho de uma Cefeida com o logaritmo do tempo em dias entre o brilho aparente máximo e o brilho aparente mínimo da Cefeida considerada.
Bastava determinar o período que decorre entre brilho máximo e brilho mínimo, por inspeção visual, para ter o brilho real de uma Cefeida mediante a utilização da correlação obtida por Henrietta, em contraposição ao seu brilho aparente percebido desde a Terra.
Essa descoberta permitiu aos astrônomos, a partir da década de 1920, calcular a exata distância que nos separa de qualquer estrela Cefeida e, em consequência, descobrir que nossa galáxia não era única do Universo, mas apenas uma no meio de cem bilhões de galáxias, sendo certo que há Cefeidas em todas as galáxias.
As denominações do Asteroide ""5383 Leavitt" e da Cratera Lunar "Leavitt" foram dadas em sua homenagem.
quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011
EU e LUDIVINE SAGNIER
Com Einstein, no avião
Para Schopenhauer, a vida é um longo sonho ou, o que é equivalente, vida e sonho são páginas alternadas de um livro complicado. Olhei para o senhor que viajava a meu lado e vi que se tratava de Albert Einstein.
- Albert Einstein?
- Sim, respondeu o outro, passando-me um cartão com os seguintes dizeres:
Quem diria... Eu, euzinho, numa viagem de Hong Kong para Paris! Primeira classe, aeromoças belas e gentis, bon jour, monsieur, voulez vous du vin? E Einstein, ali do lado, de cartão em punho, albert.einstein@ulm.com, para todas as dúvidas. Mas, que diabo seria Sunset Society?
Não me recordo de haver desembarcado em Paris, e sonho bom não deveria ser inconclusivo assim. Tomei um chope em Montmartre e dei um olé pelo Quartier Latin? Tomara que tenha topado com a Ludivine Sagnier, na entrada do Louvre, ou melhor, no Jardim de Luxemburgo. Para, enfim e cara a cara, depor-lhe a grande ambição da minha vida.
Sei perfeitamente como seria esse diálogo.
- Mas, afinal, que ambição é esta, Carlinhos?
- Nadar na tua piscina, Lu.
- Ça va.
Permaneci muito tempo deitado, relacionando o sonho extravagante com a odisseia que era encarar uma banca de doutores e depor-lhes uma aula sobre um assunto que me seria comunicado apenas na hora. A qual, se aprovada, implicava um doutorado, com direito a uma bolsa de cinco salários mínimos por mês, durante três anos. Eu me preparara exaustivamente e só temia que os nervos me atrapalhassem, quando a hora chegasse. Sonhar com Einstein na véspera da aula, ora direis!
Para Schopenhauer, a vida é um longo sonho ou, o que é equivalente, vida e sonho são páginas alternadas de um livro complicado. Olhei para o senhor que viajava a meu lado e vi que se tratava de Albert Einstein.
- Albert Einstein?
- Sim, respondeu o outro, passando-me um cartão com os seguintes dizeres:
Dúvidas? Sunset Society,
albert.einstein@ulm.com
albert.einstein@ulm.com
Quem diria... Eu, euzinho, numa viagem de Hong Kong para Paris! Primeira classe, aeromoças belas e gentis, bon jour, monsieur, voulez vous du vin? E Einstein, ali do lado, de cartão em punho, albert.einstein@ulm.com, para todas as dúvidas. Mas, que diabo seria Sunset Society?
Não me recordo de haver desembarcado em Paris, e sonho bom não deveria ser inconclusivo assim. Tomei um chope em Montmartre e dei um olé pelo Quartier Latin? Tomara que tenha topado com a Ludivine Sagnier, na entrada do Louvre, ou melhor, no Jardim de Luxemburgo. Para, enfim e cara a cara, depor-lhe a grande ambição da minha vida.
Sei perfeitamente como seria esse diálogo.
- Mas, afinal, que ambição é esta, Carlinhos?
- Nadar na tua piscina, Lu.
- Ça va.
Permaneci muito tempo deitado, relacionando o sonho extravagante com a odisseia que era encarar uma banca de doutores e depor-lhes uma aula sobre um assunto que me seria comunicado apenas na hora. A qual, se aprovada, implicava um doutorado, com direito a uma bolsa de cinco salários mínimos por mês, durante três anos. Eu me preparara exaustivamente e só temia que os nervos me atrapalhassem, quando a hora chegasse. Sonhar com Einstein na véspera da aula, ora direis!
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