quarta-feira, 15 de setembro de 2010

UMA PRIMAVERA NO TEXAS

A RAPOSA MARROM

O professor Burford, comentando o teste de admissão para o curso que se iniciava, revelou que dois alunos haviam se confundido na interpretação da terceira questão. Pelo mesmo e prosaico motivo: dificuldades com o idioma inglês. Ambos brasileiros, ambos recém-chegados a Austin.

- Um deles é este aqui, disse Burford, apoiando a mão sobre meu ombro, e ele se chama Carlos Auvergne de Carvalho. The quick brown fox jumps over the lazy dog e, não obstante, o senhor não sabe o significado de dummy variable. Veja só!

Um vexame que nem cheguei a padecer, pois o professor, deslocando-se para o outro lado da sala, apontou para a bela jovem de casaco branco. Foi naquele momento que a vi pela primeira vez.

- Cecília, Cecília Lafayette de Castro.

Cecília

O aplauso de toda a turma era uma demonstração de solidariedade, que ela agradecia cheia de modéstia, mas com sorriso cativante. Um tributo à sua extraordinária beleza, sem dúvida, pois, se assim não fosse, teriam me aplaudido também, por que não? Melhor de tudo era que já não estava só naquele mundo estrangeiro, cujo sotaque eu decifrava com dificuldade e ouvido incompetente. No Union´s, o restaurante do campus universitário, ela me explicou que era arquiteta por formação, mas tinha a ambição de ser estilista.

- The quick brown fox jumps over the lazy dog, o que Burford quis dizer com isso?

- A ligeira raposa marrom salta sobre o cão preguiçoso. É uma frase que contém todas as letras usadas no idioma inglês, utilizada nos testes relacionados com máquinas de telégrafo. Essa frase faz parte do show do Burford, que viu em nós, estrangeiros, o pretexto para dizer que a língua inglesa se espalha elegantemente por aí, em todas as bibliotecas do mundo, usando não mais que escassas vinte e seis letras letras. Daí a estranheza com alunos graduados que não sabem o que é dummy variable. Já pensou na tragédia que será alguém morrer sem saber o significado de dummy variable?

- Estranheza e, quem sabe, desapontamento. Ou seja, isso de não saber inglês é pura negligência... Devemos reconhecer, todavia, que foi carinhoso conosco, pois, seja como for, apresentou-nos à turma.

- Sem dúvida... Mas, voltando à raposa, será que o Burford sabe português? São também vinte e seis letras, as mesmas, se não estou enganada.

- Suficientes para escrever os Lusíadas.

- E as crônicas do Rubem Braga...

Distribuição de frequência

- Mudando de assunto, Cecília, por que uma estilista tem de estudar estatística?

- Porque trabalha com moda.

- Um trocadilho?

- Não, não mesmo. Onde você acha que os estatísticos foram buscar sua noção de moda? A moda, a das roupas, tem tudo a ver com amostragem, média, mediana, momentos, desvio padrão...

- É, basta ter uma distribuição de frequências.

- E você, por que está aqui, na Universidade do Texas?

- Bem, sou engenheiro recém-formado e cumpro um treinamento de três meses, a serviço da WED.

- WED?

- Sim, W-E-D, Western Exploration and Development, uma companhia internacional de projetos de mineração e energia.

Megera domada

Além de bonita, Cecília logo revelou ser uma mulher inteligente. Decidimos estudar juntos e, entre histogramas, regressões e números-índices, tive a percepção de que estávamos construindo uma parceria vitoriosa, que iria para além de uma primavera universitária no Texas. Acertei, e na mosca, pois logo estávamos namorando, e morando juntos, perfeitamente integrados um ao outro.

Ron Reagan

Terminado o curso, visitamos Nova Orleans, Nova York, Chicago e San Francisco, antes de regressar para o Brasil. Vimos, no magnífico San Francisco Theatre, um balé cujo motivo era a peça de Shakespeare “The Taming of the Shrew”, impossível de esquecer, por um par de motivos. Primeiro, a dificuldade que Cecília e eu tivemos para saber que “The Taming of the Shrew” era o título inglês de “A Megera Domada”, ou seja, a raposa do Buford ainda estava a saltar sobre nós. Socorreu-nos o generoso e culto senador Artur da Távola, que estava providencialmente sentado a nosso lado. O outro ponto era que um dos dançarinos era Ron Reagan, filho do então presidente Ronald Reagan. Os dançarinos se apresentavam sob máscaras correspondentes aos respectivos personagens, de maneira que não nos foi possível reconhecer qual dos personagens era representado pelo filho ilustre.

- “Petruchio”, arriscou Cecília.

- “Batista Minola”, creio eu, disse Artur da Távola. E você, Carlinhos, que acha?

- Sou muito ruim no quesito adivinhação, respondi.

Podemos duas coisas


Terminava desse modo o breve passeio com que nos despedimos dos Estados Unidos. Nosso destino era agora o Rio de Janeiro.

- Se você quiser, Cecília, podemos duas coisas, disse-lhe, quando nos acomodamos no avião que nos trouxe de volta..

- Acho que podemos mais do que duas coisas, Carlinhos.

- Sem dúvida, mas quero me referir a duas delas, específicas e fundamentais. A primeira é estabelecer um binômio para nós: lealdade e generosidade.

- Muito justo e pertinente. E a outra?

- A gente se casar, assim que estivermos no Brasil.

- Esse é também o meu desejo. Vamos em frente.

- Que a fé vira depois, dizia
D'Alembert...

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