quarta-feira, 1 de setembro de 2010

MELISANDE

MUITA AREIA PARA O MEU CAMINHÃO

Melisande frequentava a praia na altura da Venâncio Flores, onde, de longe, muitas vezes contemplei suas formas harmoniosas, que a mim sempre me pareceram ser um dos motivos da grande afluência masculina naquele ponto da areia.

Embora estudante de poucos recursos, aos poucos fui reunindo informações sobre ela, colhidas discretamente em diligências laboriosas e eficientes, cujo planejamento e execução ocupavam boa parte do meu lazer. Tinha a ambição de que o acaso nos aproximasse um dia. Quem sabe a encontrasse na sala de espera de algum consultório dentário?
Sabia que era universitária e tinha grande interesse pelo darwinismo. Tive a ideia de fazer o que chamo de emparelhamento, estudando seus assuntos preferidos. Precisava ter o que conversar quando a fortuna nos reunisse na mesma antessala. Comprei "O Gene Egoísta", de Richard Dawkins, e fiquei sabendo sobre replicadores e sobre a importância de sua longevidade, fecundidade e fidelidade de cópia.


Podia imaginá-la a conversar comigo, ela comentando que, desde cerca de quatro bilhões de anos, surgiram no mar moléculas que tinham capacidade de se autorreproduzirem. Elas se organizaram, no decorrer do tempo, em máquinas de sobrevivência, que somos nós, animais e vegetais. Uma sobrevivência sustentada num regime de feroz competição, pois até o altruísmo é um ato egoísta dos genes. Nesse ponto da conversa, poderia emparelhar, discorrendo sobre a importância da longevidade, fecundidade e fidelidade de cópia dos replicadores nos rumos da seleção natural. É certo que iria me perguntar:

- Bem observado. Você também estuda Biologia?

- Uma questão de cultura geral, pois sou estudante de engenharia.

Certa vez Melisande esteve na Sale's e importou uma ópera de Tchaikovsky. Confesso que não sabia da existência de nenhuma ópera de Tchaikovsky, muito menos com esse nome, “Eugene Onegin”. Nascia assim mais uma oportunidade de emparelhamento, e foi por isso que encomendei o mesmo filme, que veio de Londres, despendendo na empreitada sessenta e três reais.

Uma ópera lírica, baseada numa novela de Alexander Pushkin. Eugene Onegin é um galã entediado e irresponsável, que conquista o coração da bela camponesa Tatiana, cuja irmã, Olga, é noiva do poeta Vladimir Lensky, grande amigo de Onegin. Num exercício de afetação e galantaria, Onegin esnoba Tatiana e decide conquistar Olga durante um baile em que se comemora o aniversário de Tatiana. Lensky, enciumado e revoltado com o cinismo do amigo, desafia-o para um duelo, e neste é mortalmente ferido por Onegin. O qual viaja depois para outras terras, com o remorso de ter provocado a morte do amigo, e se dá conta de que está perdidamente apaixonado por Tatiana. Neste ponto, eu faria o emparelhamento competente.

- Sei o resto da história, Melisande. Anos mais tarde, Onegin vai a uma festa de nobres em San Petersburg e nela reencontra Tatiana, agora casada com o príncipe Gremin. Confessa-lhe seu amor, mas é recusado por Tatiana, que ainda o ama, mas declara-lhe que em nenhuma hipótese será infiel ao seu marido.

- Você conhece a obra, hein?

- Curto muito o Tchaikovsky. Essa ópera é baseada num conto de Pushkin, que o construiu com base na história de seu vizinho Pyotr Chaadae.

Foi por causa de Melisande que comecei a ler poesia, minha primeira incursão, e até então única, no terreno da cultura. Uma espécie de emparelhamento no escuro, que se baseou apenas na pressuposição de que uma moça daquela classe devia gostar de poesia e conhecer tudo dos melhores poetas. Drummond, Bandeira, João Cabral, Vinícius... Sim, Vinícius:

- Eu te amo, Melisande, eu te amo tanto que o meu peito me dói como em doença; e, quanto mais me seja a dor intensa, mais cresce na minha alma teu encanto.


Um dia, porém, soube que a moça tinha o hábito de viajar todo ano para Paris, onde participava de torneios de hipismo, competindo com nobres de toda a Europa, o que se tornava possível porque seu pai era um industrial muito poderoso. Melisande não era apenas rica, mas extraordinariamente rica. Foi então que me caiu a ficha, e pesadamente, pois essa informação mostrou o abismo que havia entre nós, cerceativo e quase intransponível.

Emparelhamento econômico e financeiro não se faz com livros e óperas, muito menos com poesias. Confesso que por um tempo estive a jogar na sena acumulada, na esperança de ser contemplado com a fortuna providencial, acreditando numa generosa subversão, a meu favor, de todas as probabilidades, as quais, aliás, sempre conspiraram contra mim.
Depois que me formei, os acontecimentos da vida, as vicissitudes, fizeram-me esquecer da moça. Ela foi o primeiro amor da minha vida, mas nenhuma palavra trocada, nem para o bem, nem para o mal. Dela me restaram, tão-somente, a informação sobre o darwinismo e o hábito de ler poesia, que venho cultivando vida afora. Também não podia imaginar que “Eugene Onegin” seria apenas o início da minha adesão às óperas, pois outras mulheres me conduziriam mais tarde pelos caminhos de obras importantes, de Verdi a Mascagni e de Borodin a Mozart.


- Mas foi com ela que se manifestou pela primeira vez a propensão que tenho de me apaixonar pelas mulheres.

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