quarta-feira, 22 de setembro de 2010

UMA MULHER DE TALENTO

PAISAGEM COLORIDA

Nosso casamento deu início a uma fase importante da minha vida. Dois jovens, ambos com vinte e dois anos, dispostos a uma carreira vencedora, tanto no plano afetivo quanto no profissional. Deu muito certo, pois tudo funcionou bem, cada um cumprindo de modo competente sua parte no projeto. Reconheço, porém, a superioridade dela. É verdade que todo o tempo esteve sob minha proteção econômica, pois eu, que recebia uma remuneração razoável na WED, representei sempre o seu seguro. A cujas coberturas, a bem da verdade, nunca precisou recorrer, pois fez ao longo dos anos anos uma carreira vitoriosa, tanto do ponto de vista profissional como financeiro. Ela percebe as oportunidades e administra seus projetos de forma competente, o que, aliás, explica perfeitamente por que uma arquiteta interessada em modas decidiu tomar cursos de estatística e de econometria no Department of Business da Universidade do Texas. Burford, o professor que brincou com nossa ignorância, nunca saberá que Cecília lhe é muito superior, tanto quanto às suas raposas marrons...

- Ela planeja, controla, coordena e comanda tudo, como se fosse um Ford, um Fayol, sei lá.



Itanhangá


Esforço e muito talento igual a êxito, eis uma lei que justifica muito bem os vencedores do mundo. Em pouco tempo, era natural, passou a ganhar mais do que eu. Sempre haverei de reconhecer, com exemplos fartos, que Cecília é uma pessoa diferenciada, e ganhar dinheiro com maestria e dedicação é apenas uma das muitas manifestações de sua inteligência superior. Ela prepondera, esta palavra diz tudo, não importa se a causa é grande, influindo na conta bancária ou no destino das pessoas, ou se irrelevante, como na escolha de um guarda-chuva ou na elaboração de uma lista de convidados. Com muito dinheiro afluindo de ambos os lados, compramos a mansão do Itanhangá e assumimos uma vida de muito conforto material, que incluía carros importados e constantes viagens à Europa. O importante, porém, é que nós nos bastávamos, pois tudo em volta parecia ser, e era, mero complemento na paisagem colorida da nossa existência.

Por ordem do general


Dela falo com muita admiração. Lembro-me, claro, da madrugada angustiante de Veneza, do colar de Ouro Preto e da vitória do Full Advantage, aquela vez no Jóquei Clube. Ah, houve também a história dos cobertores, inesquecível... Os que não morreram tentavam salvar suas miudezas, que a correnteza ia arrastando de maneira decidida. As pessoas, se quisessem ajudar, poderiam enviar dinheiro ou levar suprimentos e agasalhos ao depósito da Rua da Constituição, lá no centro da cidade.

- Vamos ajudar essa gente, Carlinhos.

Compramos dez dúzias de cobertores, que, de carro e com algum embaraço no trânsito, levamos à Rua da Constituição. Tivemos uma recepção fria e burocrática, quase grosseira, e fomos instruídos a deixar os cobertores num pátio muito sujo, onde desordenadamente se amontoavam outros donativos. Tudo seria removido para o depósito, que ficava nos fundos, e distribuído aos flagelados, mas a seu tempo. Um mês depois, superada a urgência da catástrofe, Cecília quis voltar à Rua da Constituição.

- Tenho ordens para abrir o depósito, disse ela ao vigia.

- Abrir o depósito? Ordens de quem?

- Do general Esperantino Tinoco.


Esperantino Tinoco


Lá dentro estavam os nossos cobertores, embrulhados como os deixáramos no dia da tragédia. Por ordem do general Tinoco, nós os resgatamos e os encaminhamos a uma instituição de caridade.

- Não conheço esse general, Cecília.

- Nem seria possível conhecê-lo, simplesmente porque não existe. Foi a minha maneira de pressionar o vigia.

- Ótima, essa. Por que será que pediram donativos e não os enviaram para as vítimas?

- Esse o ponto. Embolsaram o dinheiro piedoso, esquecendo-se do resto, pois não tinham intenção nenhuma de ajudar ninguém; os suprimentos não monetários só eram admitidos na história para dar credibilidade ao apelo.

- Agora entendo; os donativos que não fossem em dinheiro não lhes interessavam.

- Mas há os chatos, como nós, Carlinhos.

E, entre estes, os espertos, como Cecília.


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