quarta-feira, 24 de agosto de 2011

UMA FRANCESA NA MINHA POLTRONA

Uma sinfonia de Mahler

Sentiu a mão no ombro. Era a moça de preto.

- Posso sentar?


- Por favor.

- Peço que não estranhe a ousadia. Estava a observá-lo e senti uma vontade irresistível de conversar com você.

- Não seja por isso. Muito prazer em conhecê-la.

- Não sei, não, mas você me parece muito angustiado.


- Estou pensando no paradoxo do mentiroso e curtindo um pouco a solidão.


- Solidão cheia de manias: “garçom, mais um black and white. Oito anos.” Nunca vi black and white que não fosse oito anos...


- Nem eu. Mas não gosto de correr nenhum risco...

- Muito engraçado!


Pascale. Olhou-a atentamente. Era olhos e boca, como uma mulher de Manuel Bandeira. Quem sabe francesa? Há francesas que abordam homens nos bares, falam Português e tomam banho. Aos 34 anos, Estevinho vivera todas as situações: casara-se, desquitara-se, casara-se novamente, divorciara-se, juntara-se algumas vezes.
Mulheres que partiam, mulheres que chegavam. Algumas, de férias, por prazo definido, ou, como dizia, mulheres dia três, que vão embora no dia quatro, para Porto Alegre, Munique, Juiz de Fora, Florença, Houston ou Além Paraíba. Pois é necessário retornar ao trabalho ou aos braços de um noivo impaciente e cheio de saudade.

- Aceita um uísque?

- Só se for oito anos...

Na cama


Um homem e uma mulher que tomam uísque juntos, no Leblon, são cúmplices de um ideal inexorável: a cama. Quanta obra-prima existe, livros, filmes, peças e canções, sobre mesas, pianos, luvas, colares, retratos e outros variados objetos, usados como metáfora do amor ou de sua ausência. Há um texto de Rubem Braga exaltando o guarda-chuva. Sobre cama, todavia, tudo que Estevinho conhecia era a história de um homem traído, que, ao separar-se da mulher, doou-lhe tudo, absolutamente tudo, menos a cama. Pois se a cama fosse com ela, teria perdido a própria alma,
além da mulher.


Pascale

Pois é, minha pátria é minha cama, pensou Estevinho, quando viu Pascale, deitada a seu lado. Nua assim, deitada assim, magnífica assim. Simplesmente deslumbrante! Uma mulher bonita começa pelos olhos, continua nos lábios, alteia-se em montes soberbos, estende-se por vales insondáveis e acaba... não acaba não, isso mesmo, uma mulher bonita não acaba nunca. A mulher é a perfeição. Se Aristóteles não disse isso, eis pois uma imperdoável omissão de Aristóteles.
Volúpia, entrega, prazer, apoteose à primeira potência, apoteoses ao quadrado, apoteoses ao infinito, eis o enredo do amor, que é a melhor das capacidades humanas. Um instante de amor, Estevinho, vale por uma boa eternidade.


Dia três


Estevinho olhou com ternura a francesa agora deitada no sofá da sala, ainda nua e magnífica. Não se conteve:

- Você é deslumbrante, Pascale. A mulher capaz de fazer a felicidade de qualquer homem.

- Exatamente o que você disse para a Regininha, Estevinho.


Hamlet

Há entre o céu e a terra coisas para além do que supõe a nossa filosofia, meu caro Estevinho. Bebi muito? Essa Pascale existe mesmo? Estou sonhando? Regininha está viva, e quem morreu fui eu? Onde estou? Por quem os sinos dobram? Calma, calma, que os sinos não dobram, estou no apartamento da Visconde de Albuquerque, vivo, pois morta está a Regininha, Pascale existe mesmo e está deitada na minha poltrona, bebi muito e há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia. O negócio é ficar calmo, fingir naturalidade e mostrar interesse a meio pau.

- Como você sabe que eu disse isso para a Regininha?

- Regininha era minha irmã gêmea.


Ora, diabo, essa foi de lascar! Atiro-me pela janela, escrevo uma carta para Marlene Dietrich, demonstro seis vezes o teorema de Pitágoras ou compro uma geladeira a prestações? Como se conjuga explodir na primeira pessoa? Easy, boy, deixa a Pascale desfazer o pacote e que não haja nele serpentes, nem explosivos.


- Agora sei por que você me parecia familiar: há no seu rosto muita coisa da Regininha!


- Nosso encontro não foi espontâneo, Estevinho. Procurei-o no bar para conversar sobre ela.


Regininha

A chegada da verdade, pelo remorso da família, isso, exatamente isso, que Pascale foi logo confessando. Filhas de pai francês e mãe brasileira, Pascale e Regininha tiveram uma infância abastada no Leblon. Quando os pais se separaram, Regininha e a mãe permaneceram no Rio de Janeiro, mas Pascale voltou com o pai para a França. Mãe e filha dissiparam tudo que o francês lhes deixara, com grandes complicações para ambas. A consequência foi que aos poucos Regininha tornou-se garota de programa. Cobrava 500 dólares para passar uma tarde com executivos. Tudo lucrativo e reservado, pois era requisitada por gente que não economizava dinheiro e comportava-se com toda a discrição.
(Quem diria, a Regininha, hein? Eu, morando aqui perto, não estava sabendo de nada. Prostituta, a Regininha Duvivier era prostituta!
)

- Aconteceu, porém, que a Regininha conheceu o Ernesto Augusto numa festa. Começaram a namorar e ficaram noivos. Ele é muito rico e decidiu promover um jantar de cerimônia para apresentá-la a seus amigos e parentes. Deu-se então que um dos convidados, o banqueiro Leopoldo, reconheceu a Regininha.


- Era um dos seus clientes?


- Isso, isso mesmo. Na manhã seguinte, o noivado foi rompido.


- Motivo pelo qual decidiu ligar para mim.


- Ligou para mim também. Você não havia dito que ela era a moça capaz de fazer a felicidade de qualquer homem? Morreu sem saber que você diz isso para todas as mulheres.


- Isso não é verdade!


- Usaria você como desculpa, a de que trocara o Ernesto pelo galante Estevinho.

- Como não me deixei seduzir, ficou sem saída e decidiu matar-se.


- Por aí.


- Por que a carta me incriminando?


- Uma atitude lamentável, que ninguém conseguiu explicar. Talvez um fato policial para despistar os amigos, os parentes e a vizinhança: perder a vida, mas salvar as aparências.


Se entendi corretamente, Regininha quis me usar como noivo. Não deu. Então me usou como boi de piranha, com grande sucesso. Eu, o boi de uma piranha. Sacana, mil vezes sacana. Tenho decididamente cara de panaca, mas, convenhamos, meu santo é forte.


- Quer dizer que você me abordou no bar porque me conhecia?


- Sabia de você e estava à sua procura, mas nunca o vira antes disso.


- Sinto-me aliviado, depois de saber de toda a história... Você me procurou por isso, obrigado.


- E tem mais uma coisa.

- Mais uma coisa? Sobre o quê?


- Sobre a morte do barbeiro...

That’s it. Desandou tudo. Desmaiar, voar, sapatear, uivar, ir à guerra, dar milho aos pombos ou proclamar a república, nada pode salvar-me, pois sou um condenado às aflições e hei de merecê-las rigorosamente até o fim. Jusque au bout. Logo vi que não ia ficar de graça. Para ela, também para ela, eu, Estevinho Pastasciutta, matei o Godô.


- Você veio para me atormentar?

- Muito pelo contrário, vim para informar-lhe que você não matou o barbeiro, como antes não havia matado a Regininha.


- Como assim?


- Estou passando uns tempos com uma tia que mora na Rita Ludolf. Sei, como todos na rua, do conselho que você deu ao Godô e tenho certeza de que você está sofrendo. Por um crime que não cometeu. Por ter desaparecido, sem deixar nenhuma pista, não tomou conhecimento da verdade, que não demorou a surgir: o Godô não morreu enfartado, mas envenenado pela mulher, que já confessou o crime.


- Foi isso, é?



- Você comentou com o Godô sobre o risco de jogar futebol sem autorização médica. Uma observação sensata, claro. Se a morte tivesse decorrido de um ataque cardíaco, estaríamos diante de uma coincidência e nada mais...

- Eu sei, mas nem todo mundo é como você, capaz de...


- Refutar pensamentos mágicos. Você não é assassino, nem de noivas suicidas, nem de barbeiros vítimados pelo veneno de suas consortes.


Pascale, mulher "dia três"

- Bota com sorte nisso!

Pascale, linda maravilhosa, livrou-me naquele instante de todos os meus remorsos, laboriosamente amealhados. Pensei mon amour, je t’aime, com todas as forças do meu despedaçado, combalido e aviltado coração. Olhei-a novamente, senti que era a mulher que eu desejava, abracei-a e disse as palavras mais sinceras da minha vida:


- Pascale, eu te amo!

Ela sorriu, transbordando de ternura. Gostara muito de mim, das minhas histórias, da minha lagosta e da minha cama. Não era por nada não, mas tinha de ir-se. Mulher "dia três" é a que retorna dia quatro para o trabalho ou para os braços do marido. No caso de Pascale retornou para ambos, pois é casada, muito bem casada, e professora da Universidade de Paris.

- Reste avec moi.

- Pas de tout.

Fazer o quê?, foi a pergunta que me ocorreu. Para a qual havia uma alternativa, e somente uma:

- Comprar um descascador de batatas ou escutar uma sinfonia de Mahler.

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