quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A PENSÃO DA TIJUCA

OBSERVANDO OS INSENSATOS

É divertido vê-los chegar, assim humildes, como o Araújo, que ontem aqui aportou de mala quase vazia, trazendo nas mãos um espelho, um cavaquinho e dois cabides de arame.

- Quanto custa o quarto mais barato?

Depois, integrados, desinibem-se e esparramam-se pensão afora, com seus malogros e ambições, grandes defeitos e poucas qualidades. São, como eu, perdedores, vultos, apenas vultos, e, deles, o pouco que sei considero demasiado.

A pensão

Servir na Bósnia

Eu os vejo diariamente, na hora das refeições. Nenhuma importância há de haver no guarda-livros, que estuda canto, na esperança de representar o Otelo; na Ivonete, que era caixa de farmácia no Largo da Segunda-Feira e agora, mesmo desempregada, usa perfumes caros e só traja vestidos importados, nas suas caminhadas suspeitas pela Conde de Bonfim; no Sargento Castro de Paula, cujo sonho é servir na Bósnia, por alguns dólares da ONU, e na sua mulher, dona Eulália, a portuguesa branquicela, que tudo tempera com azeite de oliva, até a sobremesa; no Sebastião Valadares, que ateou fogo no armazém vazio após esconder as mercadorias num depósito de Caxias e, em vez de receber a indenização reclamada, está a enfrentar um adverso processo judicial; no Zé Terra, um pernambucano enfezado que bate na mulher, a Jupira; e no Sorianito Gonzalez, que é mexicano e apanha da sua todas as noites.

Incêndio do inexistente

Reversão dialógica

Ah, antes que me escape, Carlos Arruda de Proença é, dos hóspedes, o mais extravagante, com sua mania de usar expressões complicadas, das quais não me esqueço de "mateologia holística", "reversão dialógica" e "tmeses ataviadoras". Ele se recusa a esclarecê-las, mesmo não sendo entendido por ninguém.

- Louçanias, senhores, meras louçanias de linguagem. Não existem para ser explicadas, nem me cabe nenhuma obrigação de dar milho aos pombos.

Outro dia, quando se conversava sobre decisões políticas controvertidas, deixou escapar alguma coisa em Latim, "beati monoculi in regione caecorum", provocando reações irônicas do Zé Terra e de dona Eulália.

- Na minha terra quem fala bonito é o prefeito.

- Em Portugal a lei da vida é muito outra, pois escreveu, não leu, o pau comeu. Lá o pau come solenemente!

- Vocês são estupefativos, rebateu o Proença.

- O quê?

- Gente de visão plúmbea, ímproba e mitigada.

E não é só

Há também na pensão um Licurgo dos Santos Reis, alfaiate de roupas militares, que às vezes inicia suas refeições com rezas assim:

Profanaste os vasos santos
Nas torpezas de um festim.
Teus dias estão contados
Como os da bela Seboim.
Não sabias, ò cão danado,
Que tenho o corpo fechado?
Tu fizeste e pagarás,
Vade retro, Satanás.

Rezas ou pragas, nem sei direito.

Praga

No mês passado apareceu aqui o Abdmelaus Karuche de Alicante, conhecido como Abdias, um estudante profissional que se gaba de sempre conseguir generosas bolsas de estudo, de acordo com trâmites que conhece com exclusividade. Polpudas e sumarentas bolsas, garante ele, que as acumula, a todas, na maior desfaçatez. Estudou engenharia, literatura e geografia, mas seu interesse atual está na filosofia, que orgulhosamente chama de a ciência de Platão.
Justiça seja feita, esse Abdias realmente estuda, e estuda muito, adquirindo informações a serviço de coisa nenhuma, a fundo perdido, pois disse repetidas vezes que não trabalhará jamais.

Assassinou o sono
Ts'ai Lun

Sentado em meu canto, na maior parte do tempo desligo-me desse ambiente, que em certas ocasiões se torna inóspito e agressivo. Eles falam da ONU, das companhias de seguros, de Otelo, das mulheres que gostam de apanhar, do azeite de oliva, das bolsas de estudo e das louçanias de linguagem, e eu, fingindo que os ouço, viajo infinito afora, imaginando por que Einstein assumiu-se com a velocidade da luz para estabelecer as bases da teoria da relatividade, se é verdade que o eunuco chinês Ts'ai Lun inventou o papel ou como Macbeth, o nobre escocês que assassinou o sono, houve de morrer pelas mãos daquele que não nasceu de mulher, quando as florestas se puseram a caminhar.

(Adaptado do livro "O Homem Horizontal")

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