UM LUGAR AO SOL
Dizia Heráclito de Éfeso que tudo está em permanente fluição, transformando-se a cada instante, tanto que a você não é dado entrar pela segunda vez no mesmo rio. Este já não será o mesmo, nem você.
- Foi o que sucedeu conosco.
Pois é, oito anos são suficientes para qualquer pessoa mudar, do primeiro ao último átomo, inexorável e definitivamente. Com o passar do tempo, Cecília e eu nos tornamos outros, não outros quaisquer e ocasionais, mas outros consumados, consumadíssimos. Nossas conquistas profissionais e materiais aos poucos passaram a não representar mais que uma higiene, a não nos garantir nenhum prazer nem estabilidade: uma higiene que de certo modo até nos desunia. Além disso, os prazeres da cama vão diminuindo lenta e progressivamente, e tenho para mim que não há comunhão de almas e união estável que não sejam garantidas a golpes de paixão e de volúpia. No início, lá atrás, eu queria um filho, mas Cecília me dissuadiu, pois filhos não se compatibilizavam com a dinâmica dos negócios, que sempre se opõem à normalidade da vida familiar. Bastava ver que éramos obrigados a constantes viagens ou a compromissos intermináveis e exaustivos.
De repente, passados os anos, decidiu mudar de ideia, e foi a minha vez de vetar a iniciativa. Ela, uma mulher especialmente inteligente, não se deu conta da irresponsabilidade que seria gerar um filho num casamento que definhava, anódino e desaquecido.
- Devemos continuar pensando com calma sobre esse assunto, Cecília. Vivemos num ritmo muito profissional, que teria de se alterar de forma importante antes de introduzir mais alguém no nosso espaço.
Tédio, quem sabe o tédio não seja exatamente isso?
Não sei, com efeito, das razões objetivas da nossa separação, se é que existiram. Creio que isso é tarefa para psicólogos e psicanalistas, essa gente que entende de alma e sabe como sondar o que temos de profundo e impenetrável. Nos meus insights amadores, concluí prosaicamente que no casamento cada um entra com sua quota de renúncia; são coisas banais, que incomodam, mas seguem toleradas porque o benefício da união é maior que os custos envolvidos. Ceder espaços, conviver com os pequenos defeitos recíprocos, não ter direito à solidão, discutir o que se quer fazer, e também o que não se quer fazer, são miudezas e futilidades que se acumulam ao longo do tempo e paulatinamente vão alterando a equação do casamento. Cecília se aborrecia quando voltávamos antecipadamente de Cabo Frio, na noite de sábado, quando eu tinha um desafio de tênis no domingo de manhã; reclamava das minhas reuniões de trabalho, quase todas as terças, a varar pela madrugada; e do chope, que eu tomava com os amigos nas noites da última quinta-feira de cada mês.
Mas eu também não cedia? Perdi o filme do Ettore Scola para ver Antonio Banderas e, ora pois, a partida final do campeonato para esperar tia Amália no aeroporto, e muitas vezes aturei intermináveis conversas sobre modas e percorri exposições que não me despertavam nenhum interesse. Ah, tive até de suportar um estilista americano, que ficou espantado quando percebeu que o Rio de Janeiro está mais para Nova York do que para Floresta Amazônica.
- Floresta Amazônica?
- Sempre pensei que o Brasil fosse uma ilha no rio Amazonas, infestada de índios e jacarés, mas cheia de cafezais, escolas de samba e mulheres de biquíni.
- Sim...
- Ao sul de Buenos Aires e ao norte de Copacabana.
A isso, tudo acumulado, costumo chamar de fadiga de material, pois não vejo outras razões no contexto da nossa separação. Isso mesmo, na nossa contabilidade conjugal não relaciono nenhum cristal quebrado, nem mágoas ou ressentimentos fundamentais. Rousseau, se me acudisse com alguma de suas autorizadas explicações, talvez atribuísse essa separação improvável à independência financeira dos parceiros, pois só a necessidade consolida e mantém a família; a não-necessidade opõe-se à sua estabilidade, ao tornar o desenlace fácil e operacional. Não descarto, porém, a hipótese de que esteja a malversar o desconcertante Rousseau, cuja obra li, anos atrás, de forma apressada e descomprometida.
Progressão é progressão, e um dia o custo ultrapassa o benefício. Até que ela me veio com aquela história de Montgomery Clift e Shelley Winters, um amor que teve de fenecer para ensejar outro amor, maior e renovado; eu merecia, assim também, encontrar minha Elizabeth Taylor, pois a mim não me faltavam os atributos para um merecido lugar ao sol. Foi assim, civilizadamente assim, que me comunicou que nosso casamento já não lhe interessava. Eu me esquivei de produzir uma ironia, a de lembrar que nessa história do lugar ao sol o personagem de Montgomery Clift terminou sendo arrastado para a cadeira elétrica. Achei, isto sim, que estava sendo protegido pela sorte, pois separar-me era tudo o que então desejava e, pelo que conheço de mim, se minha tivesse sido a iniciativa, mais um remorso teria para administrar.
- Pode ficar com a minha parte.
- Claro que não, Carlinhos.
Ela ficou com a casa no Itanhangá, o único bem material que tínhamos em comum, e me compensou com dinheiro bastante para um apartamento no Leblon. Uma derradeira convivência ainda nos tocou, sem nenhuma animosidade ou irritação. Que nem fariam sentido na nossa história, da qual a separação foi apenas um capítulo necessário. Estranho, porém, foi continuar transitando mais quarenta dias pelos caminhos da casa, pois nenhum cenário permanece neutro, nem impune, em face de um amor exaurido. Até a arte perde o sentido, as cores se esmaecem e, para dizer a verdade, nunca vi a menor graça naquela cortina da sala de visitas, lilás, isso mesmo, lilás, e em momento algum estive de acordo com a moldura que escolheu para o Böcklin que arrematamos no leilão da Bartolomeu Mitre.
Nem mesmo um telefonema ou um protocolar cartão de despedida. Pois um deixou de existir para o outro, aquele estágio na relação de duas pessoas que, para Octavio Paz, poderia chamar-se de nenhumação. No nosso caso, seria mais apropriado falar em nenhumação recíproca, que é a arte de inexistir daqui para lá e de lá para cá...
segunda-feira, 27 de dezembro de 2010
sábado, 25 de dezembro de 2010
DRUMMOND
sábado, 18 de dezembro de 2010
CORA CORALINA E CABRAL
ORAÇÃO DO MILHO
Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante.
Sou a farinha econômica do proletário.
Sou a polenta do imigrante e a miga dos que começam a vida em terra estranha.
Alimento dos porcos e do triste mu de carga.
O que me planta não levanta comércio, nem avantaja dinheiro.
Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paióis.
Sou o cocho abastecido donde rumina o gado.
Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece.
Sou o cacarejo alegre das poedeiras à volta dos seus ninhos.
Sou a pobreza vegetal agradecida a Vós, Senhor, que me fizestes necessário e humilde.
Sou o milho.
João Cabral de Melo Neto (1920 - 1999)
Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante.
Sou a farinha econômica do proletário.
Sou a polenta do imigrante e a miga dos que começam a vida em terra estranha.
Alimento dos porcos e do triste mu de carga.
O que me planta não levanta comércio, nem avantaja dinheiro.
Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paióis.
Sou o cocho abastecido donde rumina o gado.
Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece.
Sou o cacarejo alegre das poedeiras à volta dos seus ninhos.
Sou a pobreza vegetal agradecida a Vós, Senhor, que me fizestes necessário e humilde.
Sou o milho.
Cora Coralina (1889-1985)
A EDUCAÇÃO PELA PEDRA
Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições de pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições de pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.
quarta-feira, 15 de dezembro de 2010
PEQUENOS BURGUESES
A IGNORÂNCIA HUMILHA E FRAGILIZA
Foi do Museu que ela me ligou.
- Quero convidá-lo para ver uma peça.
- Peça, sobre o quê? Quando?
- Pequenos Burgueses, de Máximo Gorki, hoje à noite. Sobre os Bessemenovs, uma família russa em decadência. Nem pense em recusar, pois já adquiri os ingressos.
Nunca fora chegado a ver peças de teatro. Lembrei-me, porém, da Megera Domada, que vira anos atrás, com a Cecília, em San Francisco - uma peça cheia de italianos escrita por Shakespeare.
- Alla nostra casa ben venuto, molto honorato signor mio Petruchio.
Como esquecer, com o filho do Ronald Reagan no palco e o Artur da Távola sentado a nosso lado, dando todas as dicas?
May, ao volante, tomou o rumo do Teatro Villa-Lobos. Durante o percurso, explicou-me que Máximo Gorki teve uma vida miserável, trabalhando como lavador de pratos, pescador, vendedor de frutas, muitas vezes sobrevivendo até como vagabundo. Chegou a tentar o suicídio, o desespero de quem se sente perdido, no meio de uma gente corrupta e miserável. Ele se consagrou, porém, ao escrever os Pequenos Burgueses, pois a decadência dos Bessemenovs, com todas as suas contradições, era uma amostra do que acontecia na Rússia que antecedeu a Revolução Comunista.
Um pai arbitrário, uma filha deprimida, um filho pretensioso e Nill, o trombeta de Deus! Era a classe média assoberbada pelo tédio, numa sociedade em plena e acelerada decomposição. Saí do teatro mais convencido de que era necessário introduzir o viés da cultura na minha trajetória de vida, jogando na lata do lixo aquele modelo idiota em que eu só pensava em integrais, vetores, transformadas de Laplace, eletricidade e mecânica. Com apenas a exceção de ler alguma poesia. E a todo instante lembrei-me de Charles Percy Snow, físico e romancista inglês do século passado, para o qual poucos cientistas leem Charles Dickens ou uma peça de Shakespeare, e poucos artistas conhecem o Segundo Princípio da Termodinâmica; assim, concluía ele, fica muito difícil resolver os problemas do mundo.
- Fica mesmo, pensei.
Não que me considerasse um candidato a cientista, na acepção integral da palavra, mas não podia continuar sendo um analfabeto cultural em plena cidade do Rio de Janeiro. Pois a ignorância humilha e fragiliza - se Rui Barbosa tivesse dito isso, seria o primeiro a aplaudir.
Seja como for, desempregado e dedicado à física como se fosse um colegial, estava namorando uma jovem bonita e cheia de iniciativa. Naquele momento crucial da reconstrução da minha vida, May era para mim um incentivo providencial, a alavanca que Arquimedes pediu, mas não teve, para levantar o mundo.
Foi do Museu que ela me ligou.
- Quero convidá-lo para ver uma peça.
- Peça, sobre o quê? Quando?
- Pequenos Burgueses, de Máximo Gorki, hoje à noite. Sobre os Bessemenovs, uma família russa em decadência. Nem pense em recusar, pois já adquiri os ingressos.
Nunca fora chegado a ver peças de teatro. Lembrei-me, porém, da Megera Domada, que vira anos atrás, com a Cecília, em San Francisco - uma peça cheia de italianos escrita por Shakespeare.
- Alla nostra casa ben venuto, molto honorato signor mio Petruchio.
Como esquecer, com o filho do Ronald Reagan no palco e o Artur da Távola sentado a nosso lado, dando todas as dicas?
May, ao volante, tomou o rumo do Teatro Villa-Lobos. Durante o percurso, explicou-me que Máximo Gorki teve uma vida miserável, trabalhando como lavador de pratos, pescador, vendedor de frutas, muitas vezes sobrevivendo até como vagabundo. Chegou a tentar o suicídio, o desespero de quem se sente perdido, no meio de uma gente corrupta e miserável. Ele se consagrou, porém, ao escrever os Pequenos Burgueses, pois a decadência dos Bessemenovs, com todas as suas contradições, era uma amostra do que acontecia na Rússia que antecedeu a Revolução Comunista.
Um pai arbitrário, uma filha deprimida, um filho pretensioso e Nill, o trombeta de Deus! Era a classe média assoberbada pelo tédio, numa sociedade em plena e acelerada decomposição. Saí do teatro mais convencido de que era necessário introduzir o viés da cultura na minha trajetória de vida, jogando na lata do lixo aquele modelo idiota em que eu só pensava em integrais, vetores, transformadas de Laplace, eletricidade e mecânica. Com apenas a exceção de ler alguma poesia. E a todo instante lembrei-me de Charles Percy Snow, físico e romancista inglês do século passado, para o qual poucos cientistas leem Charles Dickens ou uma peça de Shakespeare, e poucos artistas conhecem o Segundo Princípio da Termodinâmica; assim, concluía ele, fica muito difícil resolver os problemas do mundo.
- Fica mesmo, pensei.
Não que me considerasse um candidato a cientista, na acepção integral da palavra, mas não podia continuar sendo um analfabeto cultural em plena cidade do Rio de Janeiro. Pois a ignorância humilha e fragiliza - se Rui Barbosa tivesse dito isso, seria o primeiro a aplaudir.
Seja como for, desempregado e dedicado à física como se fosse um colegial, estava namorando uma jovem bonita e cheia de iniciativa. Naquele momento crucial da reconstrução da minha vida, May era para mim um incentivo providencial, a alavanca que Arquimedes pediu, mas não teve, para levantar o mundo.
sábado, 11 de dezembro de 2010
UMA EGIPTÓLOGA NO MEU CAMINHO
FILHA DOS TIOS
Durante anos, desde Cecília, olhara outras mulheres com olhos neutros e desinteressados. Era agora um descasado, inseguro e desempregado, a procura de um destino. Resolvi deixar o tempo correr, sem nada procurar ou forçar relativamente às mulheres, pagando o preço de ficar sozinho. Meu objetivo imediato era habilitar-me para uma nova profissão. Mas o acaso trabalhou depressa, e conheci May, numa livraria do Leblon, algumas semanas depois do dia em que me inscrevi como candidato ao doutorado. Nossa conversa prolongou-se para além da livraria, e nos pusemos a passear pela Visconde de Albuquerque.
Ela era egiptóloga, eu que nem desconfiava da existência dessa atividade.
- E você, Carlinhos, qual a sua profissão?
- Engenheiro malsucedido, pois abandonei o ofício e decidi fazer um doutorado de física. Para isso, devo ser aprovado numa aula que darei daqui a alguns meses. Engenharia é uma profissão corriqueira e até meio óbvia. Mas egiptóloga, que faz exatamente uma egiptóloga?
- Bem, atualmente estou envolvida num projeto internacional relacionado com o faraó Tutancâmon, do século XIV a. C., coordenado pelo Museu de Ciência de Londres. Sua tumba, descoberta em 1922, em Tebas, no Vale dos Reis, continha uma quantidade extraordinária de joias e é considerada um dos maiores tesouros arqueológicos de todos os tempos.
- Museu de Ciência, lá em Londres?
Perguntei o que ela já me informara, nada menos edificante. Fazer o quê, dizer o quê? Eu era um analfabeto cultural. Tinha até me esquecido que existiu alguém chamado Tutancâmon, e essa palavra não escutava havia bem uns quinze anos. E, se me lembro, o que o meu professor de História dizia era "Tutancamon", e não Tutancâmon.
- Estamos reconstituindo a verdadeira face de Tutancâmon, que não tinha os lábios grossos e o rosto triangular sugerido pela máscara mortuária que lhe é atribuída, essa que se encontra reproduzida nos livros de História. Na verdade seus lábios eram finos, dentro de um rosto largo, que, além do mais, caracterizava-se por sobrancelhas grossas e olhos pequenos.
- A reconstituição facial de uma pessoa que morreu há tanto tempo há de ser muito complicada, observei, fazendo força para não ficar calado.
- Morreu há trinta e quatro séculos. Posso dizer que envolve radiografias da múmia, técnicas de raios X, processos e efeitos especiais, técnicas forenses digitais e softwares capazes de compatibilizar a face que se quer reconstituir com os ossos do crânio encontrados no sarcófago. A University College of London vai exibir esta semana um molde da face, criado por escultores especializados.
- Muito interessante.
- Suspeita-se que tenha recebido um violento golpe na cervical enquanto dormia. O suposto assassino foi seu primeiro-ministro, que se casou com a viúva, veja só, quase a história do Hamlet, de Shakespeare. A ferida não lhe causou a morte de imediato, e sua agonia se prolongou durante dois meses de terrível sofrimento.
- Onde você entra, nessa história, como egiptóloga?
- Tudo que faço é colaborar com informações históricas, pois não sou habilitada nessas técnicas de reconstituição facial. Por exemplo, houve certa vez uma discussão sobre a idade com que morreu Tutancâmon, e fui chamada a dar a minha opinião.
- Com que idade ele morreu?
- Para mim morreu quando tinha dezoito anos, mas esse não é um ponto completamente decidido. Subiu ao trono com nove anos, sendo conhecido como o faraó-menino.
- Os egípicios eram precoces...
- De fato. Cleópatra, por exemplo, chegou ao poder com apenas dezoito anos. Isso cerca de mil e quatrocentos anos depois.
- Só sei que Cleópatra gostava de seduzir imperadores romanos, como César e Marco Antônio. Mais não sei dizer, nem vi aqueles filmes apoteóticos...
- Cleópatra foi muito mais do que uma colecionadora de maridos ou uma mulher sedutora num filme do Cecil B. De Mile. Para além de se destacar pela beleza, falava vários idiomas e patrocinava as artes e as ciências. Lembre-se de que governava o Egito a partir de Alexandria, capital cultural da Antiguidade... Ela era filha de tios, veja você.
- Filha de tios? Pode isso?
- Cleópatra era filha de Ptolomeu Aulete e Cleópatra Trifena, que eram irmãos. Logo, Ptolomeu Aulete era pai de Cleópatra, mas seu tio, por parte de mãe; Cleópatra Trifena era sua mãe, mas também tia, por parte de pai. Filha dos tios, portanto.
- Assim não vale!
- Vale, sim, pois ela própria se casou com dois de seus irmãos mais jovens. Um de cada vez, bem entendido.
- Uma promiscuidade familiar.
- E real.
Uma mulher bonita e esclarecida, egiptóloga, veja só! E eu, idiota que sou, pagava o preço de não poder contribuir para o assunto e concorrendo decisivamente para a banalização dos diálogos: “muito interessante”, “os egípcios eram precoces” e “com que idade ele morreu?” Um vexame total e absoluto! O homem moderno distingue-se pelo nível e excelência das suas informações - positivamente não era esse o meu caso. Precisava estudar mais, porque aquela coisa de só saber física e ler apenas poesia inferiorizava e dificultava minha vida como pessoa. Enunciar o teorema das forças vivas e recitar Pásargada ou Confidências de um Itabirano, mais que isso eu não sabia. Que deveria fazer? O único caminho era padecer sobre os livros de filosofia, arte, música, história, em vez de ficar flanando, prevaricando ou malbaratando por aí meu escasso tempo de lazer.
- Seja como for, já tinha uma namorada...
Durante anos, desde Cecília, olhara outras mulheres com olhos neutros e desinteressados. Era agora um descasado, inseguro e desempregado, a procura de um destino. Resolvi deixar o tempo correr, sem nada procurar ou forçar relativamente às mulheres, pagando o preço de ficar sozinho. Meu objetivo imediato era habilitar-me para uma nova profissão. Mas o acaso trabalhou depressa, e conheci May, numa livraria do Leblon, algumas semanas depois do dia em que me inscrevi como candidato ao doutorado. Nossa conversa prolongou-se para além da livraria, e nos pusemos a passear pela Visconde de Albuquerque.
Ela era egiptóloga, eu que nem desconfiava da existência dessa atividade.
- E você, Carlinhos, qual a sua profissão?
- Engenheiro malsucedido, pois abandonei o ofício e decidi fazer um doutorado de física. Para isso, devo ser aprovado numa aula que darei daqui a alguns meses. Engenharia é uma profissão corriqueira e até meio óbvia. Mas egiptóloga, que faz exatamente uma egiptóloga?
- Bem, atualmente estou envolvida num projeto internacional relacionado com o faraó Tutancâmon, do século XIV a. C., coordenado pelo Museu de Ciência de Londres. Sua tumba, descoberta em 1922, em Tebas, no Vale dos Reis, continha uma quantidade extraordinária de joias e é considerada um dos maiores tesouros arqueológicos de todos os tempos.
- Museu de Ciência, lá em Londres?
Perguntei o que ela já me informara, nada menos edificante. Fazer o quê, dizer o quê? Eu era um analfabeto cultural. Tinha até me esquecido que existiu alguém chamado Tutancâmon, e essa palavra não escutava havia bem uns quinze anos. E, se me lembro, o que o meu professor de História dizia era "Tutancamon", e não Tutancâmon.
- Estamos reconstituindo a verdadeira face de Tutancâmon, que não tinha os lábios grossos e o rosto triangular sugerido pela máscara mortuária que lhe é atribuída, essa que se encontra reproduzida nos livros de História. Na verdade seus lábios eram finos, dentro de um rosto largo, que, além do mais, caracterizava-se por sobrancelhas grossas e olhos pequenos.
- A reconstituição facial de uma pessoa que morreu há tanto tempo há de ser muito complicada, observei, fazendo força para não ficar calado.
- Morreu há trinta e quatro séculos. Posso dizer que envolve radiografias da múmia, técnicas de raios X, processos e efeitos especiais, técnicas forenses digitais e softwares capazes de compatibilizar a face que se quer reconstituir com os ossos do crânio encontrados no sarcófago. A University College of London vai exibir esta semana um molde da face, criado por escultores especializados.
- Muito interessante.
- Suspeita-se que tenha recebido um violento golpe na cervical enquanto dormia. O suposto assassino foi seu primeiro-ministro, que se casou com a viúva, veja só, quase a história do Hamlet, de Shakespeare. A ferida não lhe causou a morte de imediato, e sua agonia se prolongou durante dois meses de terrível sofrimento.
- Onde você entra, nessa história, como egiptóloga?
- Tudo que faço é colaborar com informações históricas, pois não sou habilitada nessas técnicas de reconstituição facial. Por exemplo, houve certa vez uma discussão sobre a idade com que morreu Tutancâmon, e fui chamada a dar a minha opinião.
- Com que idade ele morreu?
- Para mim morreu quando tinha dezoito anos, mas esse não é um ponto completamente decidido. Subiu ao trono com nove anos, sendo conhecido como o faraó-menino.
- Os egípicios eram precoces...
- De fato. Cleópatra, por exemplo, chegou ao poder com apenas dezoito anos. Isso cerca de mil e quatrocentos anos depois.
- Só sei que Cleópatra gostava de seduzir imperadores romanos, como César e Marco Antônio. Mais não sei dizer, nem vi aqueles filmes apoteóticos...
- Cleópatra foi muito mais do que uma colecionadora de maridos ou uma mulher sedutora num filme do Cecil B. De Mile. Para além de se destacar pela beleza, falava vários idiomas e patrocinava as artes e as ciências. Lembre-se de que governava o Egito a partir de Alexandria, capital cultural da Antiguidade... Ela era filha de tios, veja você.
- Filha de tios? Pode isso?
- Cleópatra era filha de Ptolomeu Aulete e Cleópatra Trifena, que eram irmãos. Logo, Ptolomeu Aulete era pai de Cleópatra, mas seu tio, por parte de mãe; Cleópatra Trifena era sua mãe, mas também tia, por parte de pai. Filha dos tios, portanto.
- Assim não vale!
- Vale, sim, pois ela própria se casou com dois de seus irmãos mais jovens. Um de cada vez, bem entendido.
- Uma promiscuidade familiar.
- E real.
Uma mulher bonita e esclarecida, egiptóloga, veja só! E eu, idiota que sou, pagava o preço de não poder contribuir para o assunto e concorrendo decisivamente para a banalização dos diálogos: “muito interessante”, “os egípcios eram precoces” e “com que idade ele morreu?” Um vexame total e absoluto! O homem moderno distingue-se pelo nível e excelência das suas informações - positivamente não era esse o meu caso. Precisava estudar mais, porque aquela coisa de só saber física e ler apenas poesia inferiorizava e dificultava minha vida como pessoa. Enunciar o teorema das forças vivas e recitar Pásargada ou Confidências de um Itabirano, mais que isso eu não sabia. Que deveria fazer? O único caminho era padecer sobre os livros de filosofia, arte, música, história, em vez de ficar flanando, prevaricando ou malbaratando por aí meu escasso tempo de lazer.
- Seja como for, já tinha uma namorada...
quarta-feira, 1 de dezembro de 2010
MUITO ANTES DE COPÉRNICO
ARISTARCO DE SAMOS
Filolau concebera, no Século V a.C., um sistema cosmológico em que a Terra não era imóvel, nem o centro do mundo, e estaria a "dançar" pelo cosmos, tanto quanto a esfera das fixas e os sete "planetas" (então incluídos o Sol e a Lua), ao redor de um fogo central (que chamou de Héstia).
Depois, um professor da Academia de Platão, Heraclides do Ponto (390 - 322 a.C) apresentou a concepção de um sistema misto, em que Mercúrio e Vênus estariam a girar em torno do Sol, o qual, por seu turno, giraria em torno da Terra, assim como a Lua, Marte, Júpiter e Saturno.
Para Heraclides, além disso, a Terra não estaria parada, pois submetida a um movimento de rotação, girando em torno do seu centro.
Heraclides foi tido como louco e ganhou o apelido de "Paradoxlog" (qualquer coisa como "forjador de Paradoxos").
Embora equivocadas, as concepções de Filolau e de Heraclides estavam mais próximas da realidade que a de Aristóteles, que veio depois e acabou prevalecendo. As ideias de Aristóteles sobre o mundo, que na verdade sistematizavam e complementavam as concepções que se estenderam de Pitágoras a Platão, foram aceitas e predominaram por muitos séculos, até o advento do modelo de Copérnico. Conquanto Aristóteles tivesse geralmente espírito de cientista, sua ideia do Universo tinha mais de imaginação do que de observação e de experimentação.
Depois de Aristóteles
É verdade que, depois de Aristóteles, um habitante de Alexandria, Aristarco de Samos (310 a. C. - 230 a. C.), iria conceber um mundo segundo uma teoria heliocêntrica total (muito mais completa que a de Heraclides do Ponto). Aristarco chegou ao seu modelo porque se dedicou a calcular distâncias, como as que nos separam da Lua e do Sol, utilizando o método da paralaxe, uma de suas criações. Aristarco também acertou quando afirmou que a Terra gira em torno do seu eixo, fazendo uma volta completa em 24 horas. Seu modelo de Universo recebeu o seguinte comentário de Arquimedes:
- Vejam só... Aristarco faz a hipótese de que as estrelas fixas e o Sol permanecem imóveis; e de que a Terra se move em torno do Sol, descrevendo a circunferência de um círculo.
Aristarco era um filósofo respeitado, mas suas ideias cosmológicas tiveram forte oposição, incluindo-se entre seus detratores o próprio Arquimedes. Tanto que o estoico Cleanto de Assos (331 - 232 a.C) quis abrir contra ele um processo de heresia, numa antecipação do episódio que se repetiria quando o Santo Ofício moveu um processo contra Galileu, no século XVII.
Infelizmente, o modelo de Aristarco foi completamente esquecido, embora estivesse muito próximo do de Nicolau Copérnico, este apresentado quase vinte séculos depois e hoje consagrado como o modelo correto do nosso sistema planetário.
Razões da recusa a Aristarco
Os livros costumam buscar as razões por que os gregos rejeitaram as concepções de Aristarco, que estavam muito mais próximas da verdade do que as de Aristóteles. Algumas delas são apresentadas a seguir:
(a) A ideia de um mundo centrado no Sol parece ridícula, para quem percebe o Sol nascendo e morrendo a cada 24 horas. O Universo com o Sol no centro contrariava decididamente o bom senso. Para Einstein, entretanto, é sempre bom investigar completamente a verdade subjacente, pois muitas vezes o bom senso é "um conjunto de preconceitos adquiridos antes dos 18 anos".
(b) Os gregos admitiam que, se a Terra se movesse, sentiríamos o solo a fugir dos nossos pés, tanto quanto perceberíamos o vento provocado pelo seu deslocamento. Uma pedra lançada verticalmente para cima, no nosso quintal, não cairia no mesmo ponto, mas no quintal do vizinho. Essa ideia equivocada decorria do desconhecimento da física do movimento, mais exatamente do princípio da inércia de Galileu, pelo qual tudo na Terra acompanha o movimento desta. Quando lançada verticalmente para cima, a pedra persevera em seu movimento anterior, incorporando em sua trajetória o movimento da Terra (e em relação a esta cai exatamente no mesmo lugar de onde foi atirada). Pois, no seu movimento para cima e para baixo, continua acompanhando lateralmente o movimento da Terra, assim como o ponto de onde foi lançada.
(c) Aristóteles supunha que a Terra estava no centro do mundo por causa do seu peso. Todos os corpos têm seu lugar natural, afirmava, e o lugar natural dos corpos pesados é um ponto abstrato, que chamou de "centro da Terra".
(d) Pensavam os gregos que, se a Terra se movesse, deveria haver mudanças nas posições das estrelas, alterando-se umas em relação às outras, o que não parecia ocorrer. Sabe-se hoje, ao contrário, que essas mudanças ocorrem realmente, configurando a chamada paralaxe estelar, o que não se percebe por causa das fantásticas distâncias que nos separam das estrelas.
Seja como for, ao abandonar Aristarco, a ciência teria de esperar vinte séculos por Nicolau Copérnico.
Filolau concebera, no Século V a.C., um sistema cosmológico em que a Terra não era imóvel, nem o centro do mundo, e estaria a "dançar" pelo cosmos, tanto quanto a esfera das fixas e os sete "planetas" (então incluídos o Sol e a Lua), ao redor de um fogo central (que chamou de Héstia).
Depois, um professor da Academia de Platão, Heraclides do Ponto (390 - 322 a.C) apresentou a concepção de um sistema misto, em que Mercúrio e Vênus estariam a girar em torno do Sol, o qual, por seu turno, giraria em torno da Terra, assim como a Lua, Marte, Júpiter e Saturno.
Para Heraclides, além disso, a Terra não estaria parada, pois submetida a um movimento de rotação, girando em torno do seu centro.
Heraclides foi tido como louco e ganhou o apelido de "Paradoxlog" (qualquer coisa como "forjador de Paradoxos").
Embora equivocadas, as concepções de Filolau e de Heraclides estavam mais próximas da realidade que a de Aristóteles, que veio depois e acabou prevalecendo. As ideias de Aristóteles sobre o mundo, que na verdade sistematizavam e complementavam as concepções que se estenderam de Pitágoras a Platão, foram aceitas e predominaram por muitos séculos, até o advento do modelo de Copérnico. Conquanto Aristóteles tivesse geralmente espírito de cientista, sua ideia do Universo tinha mais de imaginação do que de observação e de experimentação.
Depois de Aristóteles
É verdade que, depois de Aristóteles, um habitante de Alexandria, Aristarco de Samos (310 a. C. - 230 a. C.), iria conceber um mundo segundo uma teoria heliocêntrica total (muito mais completa que a de Heraclides do Ponto). Aristarco chegou ao seu modelo porque se dedicou a calcular distâncias, como as que nos separam da Lua e do Sol, utilizando o método da paralaxe, uma de suas criações. Aristarco também acertou quando afirmou que a Terra gira em torno do seu eixo, fazendo uma volta completa em 24 horas. Seu modelo de Universo recebeu o seguinte comentário de Arquimedes:
- Vejam só... Aristarco faz a hipótese de que as estrelas fixas e o Sol permanecem imóveis; e de que a Terra se move em torno do Sol, descrevendo a circunferência de um círculo.
Aristarco era um filósofo respeitado, mas suas ideias cosmológicas tiveram forte oposição, incluindo-se entre seus detratores o próprio Arquimedes. Tanto que o estoico Cleanto de Assos (331 - 232 a.C) quis abrir contra ele um processo de heresia, numa antecipação do episódio que se repetiria quando o Santo Ofício moveu um processo contra Galileu, no século XVII.
Infelizmente, o modelo de Aristarco foi completamente esquecido, embora estivesse muito próximo do de Nicolau Copérnico, este apresentado quase vinte séculos depois e hoje consagrado como o modelo correto do nosso sistema planetário.
Razões da recusa a Aristarco
Os livros costumam buscar as razões por que os gregos rejeitaram as concepções de Aristarco, que estavam muito mais próximas da verdade do que as de Aristóteles. Algumas delas são apresentadas a seguir:
(a) A ideia de um mundo centrado no Sol parece ridícula, para quem percebe o Sol nascendo e morrendo a cada 24 horas. O Universo com o Sol no centro contrariava decididamente o bom senso. Para Einstein, entretanto, é sempre bom investigar completamente a verdade subjacente, pois muitas vezes o bom senso é "um conjunto de preconceitos adquiridos antes dos 18 anos".
(b) Os gregos admitiam que, se a Terra se movesse, sentiríamos o solo a fugir dos nossos pés, tanto quanto perceberíamos o vento provocado pelo seu deslocamento. Uma pedra lançada verticalmente para cima, no nosso quintal, não cairia no mesmo ponto, mas no quintal do vizinho. Essa ideia equivocada decorria do desconhecimento da física do movimento, mais exatamente do princípio da inércia de Galileu, pelo qual tudo na Terra acompanha o movimento desta. Quando lançada verticalmente para cima, a pedra persevera em seu movimento anterior, incorporando em sua trajetória o movimento da Terra (e em relação a esta cai exatamente no mesmo lugar de onde foi atirada). Pois, no seu movimento para cima e para baixo, continua acompanhando lateralmente o movimento da Terra, assim como o ponto de onde foi lançada.
(c) Aristóteles supunha que a Terra estava no centro do mundo por causa do seu peso. Todos os corpos têm seu lugar natural, afirmava, e o lugar natural dos corpos pesados é um ponto abstrato, que chamou de "centro da Terra".
(d) Pensavam os gregos que, se a Terra se movesse, deveria haver mudanças nas posições das estrelas, alterando-se umas em relação às outras, o que não parecia ocorrer. Sabe-se hoje, ao contrário, que essas mudanças ocorrem realmente, configurando a chamada paralaxe estelar, o que não se percebe por causa das fantásticas distâncias que nos separam das estrelas.
Seja como for, ao abandonar Aristarco, a ciência teria de esperar vinte séculos por Nicolau Copérnico.
quarta-feira, 24 de novembro de 2010
O PAI DA ASTRONOMIA
HIPARCO DE NICEIA
Considerado por muitos o fundador da astronomia científica, Hiparco de Niceia (190-126 a. C.) foi um importante cientista de Alexandria, criador da trigonometria e do método da paralaxe estelar, tendo sido um dos primeiros matemáticos a dividir o círculo em 360 graus; cada grau, em 60 minutos; e cada minuto, em 60 segundos.
Hiparco inventou o astrolábio, instrumento que permite definir a posição dos astros e calcular sua altura acima da linha do horizonte, calculou a duração do ano solar, descobriu a precessão dos equinócios e catalogou 850 estrelas, listando-as por magnitude, longitude e latitude. Neste último trabalho, considerou de primeira grandeza as vinte estrelas mais brilhantes e de sexta grandeza, as estrelas escassamente visíveis a olho nu em noites sem luar. Distribuiu as demais estrelas em quatro grandezas intermediárias, segundo seu brilho.
Precessão dos equinócios
Os equinócios são as duas datas do ano nas quais o dia e a noite têm durações iguais: atualmente, o dia 21 de março (entrada da primavera no Hemisfério Norte) e o dia 22 de setembro (entrada da primavera no Hemisfério Sul). São os dois dias em que o Sol, em seu movimento aparente em torno da Terra, atravessa o equador celeste (sendo este a projeção do equador da Terra sobre a esfera celeste).
Muito importante é saber que o Sol não está sempre na mesma posição do zodíaco quando ocorrem os equinócios, ou seja, os pontos em que a trajetória aparente do Sol cruza o equador celeste não são fixos, mas vão mudando lentamente com o tempo. Isso decorre do fato de que a Terra tem um movimento de rotação em torno do eixo dos polos, o qual mantém uma inclinação de pouco mais de 23 graus em relação à perpendicular à eclíptica (plano da órbita da Terra ao redor do Sol). Acontece que o eixo dos polos, que atualmente aponta na direção da estrela Alfa, da constelação de Ursa Menor, por isso mesmo chamada de Estrela Polar, desloca-se ligeiramente com o passar do tempo, devido a forças gravitacionais do Sol e da Lua motivadas pelo fato de a Terra ser achatada nos polos e dilatada no Equador; nesse movimento, similar ao de um pião, que bamboleia enquanto gira, o eixo dos polos descreve um duplo cone a partir do centro da Terra, de maneira que cada polo percorre uma circunferência completa em 26 mil anos, com uma velocidade angular de 50" (cinquenta segundos de ângulo) por ano.
Diz-se que, nesse processo, o eixo dos polos precessiona em torno do eixo da eclíptica. Em consequência da precessão, os equinócios se deslocam ao longo da eclíptica, ocorrendo mais cedo a cada ano, num movimento retrógrado em relação ao movimento da Terra em torno do Sol. Seja, por exemplo, o equinócio da primavera no Hemisfério Norte, o de março, que, antecipando-se cada vez mais, passará a ocorrer em fevereiro, depois em janeiro, e assim por diante, retornando a 21 de março em 26 mil anos, para recomeçar a mesma revolução indefinidamente.
Um resultado importante desse deslocamento precessional é a modificação das estrelas visíveis no céu, durante a noite, em determinada época do ano. Por exemplo, atualmente a constelação de Órion é vista em dezembro e a de Escorpião, em junho. Daqui a 13 mil anos será o oposto. A estrela polar, que hoje é a Alpha, da constelação de Ursa Menor, será então a estrela Vega, da constelação de Lira.
O fenômeno da precessão foi descoberto por Hiparco de Niceia, no ano 129 a.C., ao comparar suas observações da posição da estrela Spica com observações feitas por Timocharis de Alexandria, em 273 a.C, ou seja, 144 anos antes.
Os cálculos de Hiparco indicaram com incrível precisão que a velocidade angular do movimento de precessão era de 50" por ano.
Pai da Astronomia
Hiparco, que fundou um observatório astronômico em Rodes, fez medições de distâncias aos astros, previu os eclipses do Sol e da Lua para os seiscentos anos seguintes, descobriu as formas das constelações e demonstrou que havia mudanças nas posições das estrelas. Chegou a calcular que a distância da Lua era de 59 vezes o raio da Terra, com erro de apenas 1,5%.
Outro feito foi o cálculo da duração do ano com surpreendente exatidão: 365 dias, 5 horas, 55 minutos e 12 segundos. Como o valor correto é de 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 46 segundos, o erro do seu cálculo foi inferior a 0,001%!
Foi no desenvolvimento desses trabalhos que Hiparco criou a trigonometria, tendo desenvolvido a ideia das funções trigonométricas e elaborado uma tabela de seus valores para vários ângulos.
No Almagesto, o livro de Cláudio Ptolomeu que iria prevalecer por muitos séculos, há várias referências elogiosas aos trabalhos de Hiparco.
Considerado por muitos o fundador da astronomia científica, Hiparco de Niceia (190-126 a. C.) foi um importante cientista de Alexandria, criador da trigonometria e do método da paralaxe estelar, tendo sido um dos primeiros matemáticos a dividir o círculo em 360 graus; cada grau, em 60 minutos; e cada minuto, em 60 segundos.
Hiparco inventou o astrolábio, instrumento que permite definir a posição dos astros e calcular sua altura acima da linha do horizonte, calculou a duração do ano solar, descobriu a precessão dos equinócios e catalogou 850 estrelas, listando-as por magnitude, longitude e latitude. Neste último trabalho, considerou de primeira grandeza as vinte estrelas mais brilhantes e de sexta grandeza, as estrelas escassamente visíveis a olho nu em noites sem luar. Distribuiu as demais estrelas em quatro grandezas intermediárias, segundo seu brilho.
Precessão dos equinócios
Os equinócios são as duas datas do ano nas quais o dia e a noite têm durações iguais: atualmente, o dia 21 de março (entrada da primavera no Hemisfério Norte) e o dia 22 de setembro (entrada da primavera no Hemisfério Sul). São os dois dias em que o Sol, em seu movimento aparente em torno da Terra, atravessa o equador celeste (sendo este a projeção do equador da Terra sobre a esfera celeste).
Muito importante é saber que o Sol não está sempre na mesma posição do zodíaco quando ocorrem os equinócios, ou seja, os pontos em que a trajetória aparente do Sol cruza o equador celeste não são fixos, mas vão mudando lentamente com o tempo. Isso decorre do fato de que a Terra tem um movimento de rotação em torno do eixo dos polos, o qual mantém uma inclinação de pouco mais de 23 graus em relação à perpendicular à eclíptica (plano da órbita da Terra ao redor do Sol). Acontece que o eixo dos polos, que atualmente aponta na direção da estrela Alfa, da constelação de Ursa Menor, por isso mesmo chamada de Estrela Polar, desloca-se ligeiramente com o passar do tempo, devido a forças gravitacionais do Sol e da Lua motivadas pelo fato de a Terra ser achatada nos polos e dilatada no Equador; nesse movimento, similar ao de um pião, que bamboleia enquanto gira, o eixo dos polos descreve um duplo cone a partir do centro da Terra, de maneira que cada polo percorre uma circunferência completa em 26 mil anos, com uma velocidade angular de 50" (cinquenta segundos de ângulo) por ano.
Diz-se que, nesse processo, o eixo dos polos precessiona em torno do eixo da eclíptica. Em consequência da precessão, os equinócios se deslocam ao longo da eclíptica, ocorrendo mais cedo a cada ano, num movimento retrógrado em relação ao movimento da Terra em torno do Sol. Seja, por exemplo, o equinócio da primavera no Hemisfério Norte, o de março, que, antecipando-se cada vez mais, passará a ocorrer em fevereiro, depois em janeiro, e assim por diante, retornando a 21 de março em 26 mil anos, para recomeçar a mesma revolução indefinidamente.
Um resultado importante desse deslocamento precessional é a modificação das estrelas visíveis no céu, durante a noite, em determinada época do ano. Por exemplo, atualmente a constelação de Órion é vista em dezembro e a de Escorpião, em junho. Daqui a 13 mil anos será o oposto. A estrela polar, que hoje é a Alpha, da constelação de Ursa Menor, será então a estrela Vega, da constelação de Lira.
O fenômeno da precessão foi descoberto por Hiparco de Niceia, no ano 129 a.C., ao comparar suas observações da posição da estrela Spica com observações feitas por Timocharis de Alexandria, em 273 a.C, ou seja, 144 anos antes.
Os cálculos de Hiparco indicaram com incrível precisão que a velocidade angular do movimento de precessão era de 50" por ano.
Pai da Astronomia
Hiparco, que fundou um observatório astronômico em Rodes, fez medições de distâncias aos astros, previu os eclipses do Sol e da Lua para os seiscentos anos seguintes, descobriu as formas das constelações e demonstrou que havia mudanças nas posições das estrelas. Chegou a calcular que a distância da Lua era de 59 vezes o raio da Terra, com erro de apenas 1,5%.
Outro feito foi o cálculo da duração do ano com surpreendente exatidão: 365 dias, 5 horas, 55 minutos e 12 segundos. Como o valor correto é de 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 46 segundos, o erro do seu cálculo foi inferior a 0,001%!
Foi no desenvolvimento desses trabalhos que Hiparco criou a trigonometria, tendo desenvolvido a ideia das funções trigonométricas e elaborado uma tabela de seus valores para vários ângulos.
No Almagesto, o livro de Cláudio Ptolomeu que iria prevalecer por muitos séculos, há várias referências elogiosas aos trabalhos de Hiparco.
sábado, 20 de novembro de 2010
UMA PALESTRA EM BUENOS AIRES
SALÃO NOBRE
O congresso tratava de muitos assuntos, que não tinham relação direta com a exposição que me cabia fazer. Apresentei-me no dia inaugural, quando me informaram que eu seria o último palestrante, cinco dias depois. Eram palestras numerosas e simultâneas, cujos temas iam desde o aumento dos problemas com a camada de ozônio até o poder calorífico do álcool combustível ou como se poderia antecipar a produção de um campo de petróleo, diminuir a poluição da cidade de Tóquio ou medir a umidade do ar num campo de golfe.
Embora de um modo geral fossem dissertações competentes, a poucas assisti, pois esses assuntos geralmente não me interessavam. Constatei também que cada palestrante merecia apenas uns poucos interessados, com os congressistas divididos pelas inúmeras salas. Não tinha por que me preocupar, pois um vexame de minha parte haveria de ser para meia dúzia de testemunhas ociosas, eis que não passava de um palestrante de último dia, quando os participantes estariam voltando para seus países ou aproveitando o derradeiro momento para conhecer melhor a cidade de Buenos Aires. Não iriam perder seu tempo comigo, um desconhecido, sem nenhum retrospecto ou recomendação nos folhetos que orientavam a seleção das palestras a serem assistidas.
Uma indiferença que, de resto, só fazia me tranquilizar. Afinal, palestrar em congressos nunca fizera parte de minhas habilitações, e estava ali para cumprir uma determinação da WED, motivada não sei por que exatas e valiosas razões. Era completar rapidamente minha apresentação, agradecer humildemente a presença dos gatos pingados que me honrassem com sua audiência, se alguns, e seguir diretamente para o aeroporto, no mais assumido low profile.
Foi com esse espírito que convidei Cecília para conhecer tudo a nosso alcance em Buenos Aires, enquanto não chegava minha vez de participar no evento. Duas vezes fomos a uma casa de tangos. No Teatro Colón assistimos à ópera Manon Lescaut, de Giacomo Puccini, com Plácido Domingo e Renata Scotto, além de comparecer a um evento que reuniu vários artistas para homenagear Astor Piazolla, muito emocionante e cheio de atrações.
Surpresa
Quando a sexta-feira finalmente chegou, ainda no hotel recebi a informação de que minha palestra seria no salão nobre do congresso.
- Salão nobre, por que salão nobre?
- É o único auditório com mais de cem lugares, e a direção do congresso percebeu que há grande interesse pela sua palestra.
Foi assim que expus para 716 profissionais de todo o mundo sobre como se pode tomar uma decisão em relação a um projeto caracterizado pela incerteza. Os problemas, as soluções possíveis, os contratos, os investimentos adicionais, as cláusulas alternativas. Respondi a muitas questões, algumas formuladas por professores e até por presidentes de empresas, sempre me valendo da minha experiência na WED.
Quando regressei ao Brasil, a WED recebeu uma dezena de telegramas internacionais, que se congratulavam com minha palestra, e eu, em particular, fui surpreendido por uma carta elogiosa do presidente do congresso. Não tinha nenhum compromisso com a vaidade, pois minha matéria, a única, era o cumprimento do que me competia fazer. Mas devo admitir que os telegramas e a carta do presidente serviram para deixar aquecido meu desprevenido coração, eu que já considerara o fato de falar competentemente para setecentos e dezesseis congressistas na presença da Cecília um generoso benefício para minha autoestima.
Por que não?
Agora, sem emprego e sem mulher, eu me lembrava daquela pequena vitória, disposto a me levantar e dar a volta por cima.
- Sim, podia me tornar um professor... que fosse a física, por que não?
Decidi pesquisar na Internet e tive a sorte de descobrir que poderia candidatar-me a um doutorado de física, pois era portador de um diploma de engenharia, bastando-me, a esse fim, conseguir ser aprovado numa aula que deveria dar para uma banca de doutores. Foi fácil registrar-me como candidato, pois a faculdade aceitou meus títulos, sem grandes dificuldades ou retificações. Nos meus frequentes exercícios de generalização, imaginei naquele momento que os cursos voltados para a ciência não conseguem atrair muitos alunos, quem sabe por falta de apelo, de modo que os candidatos que aparecem são sempre muito bem-vindos. A aula seria dentro de cinco meses, na temporada das admissões, sobre um assunto da física a ser anunciado, na hora, por uma banca de professores.
- Tudo depende de mim, pensei.
Tinha dinheiro bastante para viver modestamente durante uns vinte meses, sem trabalhar, e me pus a rever em profundidade todas aquelas matérias do colegial e da faculdade. Oito horas por dia a ler sobre elementos e causas, espaço e movimento, matéria e força, energia e entropia, os átomos, o tempo, a luz, teoria dos campos, réguas e relógios, gravitação e curvatura, partículas e observador. Quando parava para descansar, lia poemas de Bandeira, Drummond, Fernando Pessoa, Manuel de Barros, Antero de Quental, essa gente que sabe muito sobre o ser humano, até o que se passa dentro de cada um de nós.
Herança de um emparelhamento, que não houve...
O congresso tratava de muitos assuntos, que não tinham relação direta com a exposição que me cabia fazer. Apresentei-me no dia inaugural, quando me informaram que eu seria o último palestrante, cinco dias depois. Eram palestras numerosas e simultâneas, cujos temas iam desde o aumento dos problemas com a camada de ozônio até o poder calorífico do álcool combustível ou como se poderia antecipar a produção de um campo de petróleo, diminuir a poluição da cidade de Tóquio ou medir a umidade do ar num campo de golfe.
Embora de um modo geral fossem dissertações competentes, a poucas assisti, pois esses assuntos geralmente não me interessavam. Constatei também que cada palestrante merecia apenas uns poucos interessados, com os congressistas divididos pelas inúmeras salas. Não tinha por que me preocupar, pois um vexame de minha parte haveria de ser para meia dúzia de testemunhas ociosas, eis que não passava de um palestrante de último dia, quando os participantes estariam voltando para seus países ou aproveitando o derradeiro momento para conhecer melhor a cidade de Buenos Aires. Não iriam perder seu tempo comigo, um desconhecido, sem nenhum retrospecto ou recomendação nos folhetos que orientavam a seleção das palestras a serem assistidas.
Uma indiferença que, de resto, só fazia me tranquilizar. Afinal, palestrar em congressos nunca fizera parte de minhas habilitações, e estava ali para cumprir uma determinação da WED, motivada não sei por que exatas e valiosas razões. Era completar rapidamente minha apresentação, agradecer humildemente a presença dos gatos pingados que me honrassem com sua audiência, se alguns, e seguir diretamente para o aeroporto, no mais assumido low profile.
Foi com esse espírito que convidei Cecília para conhecer tudo a nosso alcance em Buenos Aires, enquanto não chegava minha vez de participar no evento. Duas vezes fomos a uma casa de tangos. No Teatro Colón assistimos à ópera Manon Lescaut, de Giacomo Puccini, com Plácido Domingo e Renata Scotto, além de comparecer a um evento que reuniu vários artistas para homenagear Astor Piazolla, muito emocionante e cheio de atrações.
Surpresa
Quando a sexta-feira finalmente chegou, ainda no hotel recebi a informação de que minha palestra seria no salão nobre do congresso.
- Salão nobre, por que salão nobre?
- É o único auditório com mais de cem lugares, e a direção do congresso percebeu que há grande interesse pela sua palestra.
Foi assim que expus para 716 profissionais de todo o mundo sobre como se pode tomar uma decisão em relação a um projeto caracterizado pela incerteza. Os problemas, as soluções possíveis, os contratos, os investimentos adicionais, as cláusulas alternativas. Respondi a muitas questões, algumas formuladas por professores e até por presidentes de empresas, sempre me valendo da minha experiência na WED.
Quando regressei ao Brasil, a WED recebeu uma dezena de telegramas internacionais, que se congratulavam com minha palestra, e eu, em particular, fui surpreendido por uma carta elogiosa do presidente do congresso. Não tinha nenhum compromisso com a vaidade, pois minha matéria, a única, era o cumprimento do que me competia fazer. Mas devo admitir que os telegramas e a carta do presidente serviram para deixar aquecido meu desprevenido coração, eu que já considerara o fato de falar competentemente para setecentos e dezesseis congressistas na presença da Cecília um generoso benefício para minha autoestima.
Por que não?
Agora, sem emprego e sem mulher, eu me lembrava daquela pequena vitória, disposto a me levantar e dar a volta por cima.
- Sim, podia me tornar um professor... que fosse a física, por que não?
Decidi pesquisar na Internet e tive a sorte de descobrir que poderia candidatar-me a um doutorado de física, pois era portador de um diploma de engenharia, bastando-me, a esse fim, conseguir ser aprovado numa aula que deveria dar para uma banca de doutores. Foi fácil registrar-me como candidato, pois a faculdade aceitou meus títulos, sem grandes dificuldades ou retificações. Nos meus frequentes exercícios de generalização, imaginei naquele momento que os cursos voltados para a ciência não conseguem atrair muitos alunos, quem sabe por falta de apelo, de modo que os candidatos que aparecem são sempre muito bem-vindos. A aula seria dentro de cinco meses, na temporada das admissões, sobre um assunto da física a ser anunciado, na hora, por uma banca de professores.
- Tudo depende de mim, pensei.
Tinha dinheiro bastante para viver modestamente durante uns vinte meses, sem trabalhar, e me pus a rever em profundidade todas aquelas matérias do colegial e da faculdade. Oito horas por dia a ler sobre elementos e causas, espaço e movimento, matéria e força, energia e entropia, os átomos, o tempo, a luz, teoria dos campos, réguas e relógios, gravitação e curvatura, partículas e observador. Quando parava para descansar, lia poemas de Bandeira, Drummond, Fernando Pessoa, Manuel de Barros, Antero de Quental, essa gente que sabe muito sobre o ser humano, até o que se passa dentro de cada um de nós.
Herança de um emparelhamento, que não houve...
quarta-feira, 17 de novembro de 2010
A TERRA NO CENTRO DE TUDO
SISTEMA GEOCÊNTRICO
Em pleno apogeu do Império Romano, coube a Cláudio Ptolomeu (90-168), de Alexandria, construir um modelo matemático para sintetizar a antiga astronomia grega, ou seja, o pensamento que se consolidou com fundamentos esboçados desde Pitágoras até as contribuições de Platão e Aristóteles.
- a centralidade e fixidez da Terra,
- o tamanho reduzido do Universo,
- a distinção entre um mundo supralunar e um mundo sublunar e
- o movimento circular e uniforme dos astros.
Leis Físicas
De fato, o sistema de Ptolomeu "operacionaliza" as ideias e insuficiências de seu tempo. A crença na centralidade e fixidez da Terra decorria principalmente do desconhecimento das leis físicas (como as leis do movimento, o princípio da inércia e a lei da gravidade). Acreditavam os gregos que, se a Terra se movesse, sentíriamos o vento contra nossos corpos e todos os corpos em repouso na Terra pareceriam estar em deslocamento contrário. O próprio Ptolomeu escreveu que, se a Terra se movesse, "os pássaros que voassem no sentido do movimento não poderiam voltar para seus ninhos." Desconheciam, com efeito, o princípio da inércia, que só seria formulado por Galileu, no início do século XVII.
Além disso, uma Terra em movimento era incompatível com a concepção grega da gravidade; Aristóteles supunha que a Terra estava no centro do mundo por causa do seu peso. Todos os corpos têm seu lugar natural, e o lugar natural dos corpos pesados é um ponto abstrato, que chamou de "centro da Terra".
Outro motivo para crer na imobilidade da Terra era a aparente ausência de alterações nas posições das estrelas. Se a Terra se movesse, as estrelas deveriam alterar-se umas em relação às outras, por causa da paralaxe estelar. Esse entendimento decorria de não terem os gregos nenhuma ideia das enormes distâncias que nos separam das estrelas; a paralaxe existe, mas as distâncias até as estrelas, e entre elas, é tão grande que parece não existir.
Contradições
Havia, porém, algumas questões a resolver:
(1) Se os movimentos dos astros eram circulares, tendo uma Terra fixa como centro, como explicar que ora estivessem mais próximos, ora mais longe dela?
(2) A velocidade dos astros não permanecia imutável, variando de acordo com sua posição na órbita, o que configurava outra contradição com a premissa de movimento uniforme.
(3) Cinco planetas vagavam errantemente em torno da Terra: Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno. De vez em quando um deles parava e começava a andar para trás, num recuo chamado de movimento retrógrado. Como explicar isso?
Salvar o fenômeno
No contexto das concepções astronômicas gregas, usa-se a expressão "salvar o fenômeno" para fazer referência ao esforço empreendido para justificar os complicados movimentos planetários utilizando apenas movimentos circulares uniformes. No esforço de "salvar" o modelo da perfeição, contornando as três contradições mencionadas, Ptolomeu usou um complicado sistema de deferentes, epiciclos e equantes.
Para explicar as trajetórias não circulares, Ptolomeu admitiu que o planeta se move ao longo de um pequeno círculo chamado epiciclo, cujo centro se move em um círculo maior chamado deferente. A Terra fica numa posição um pouco afastada do centro do deferente (portanto o deferente é um círculo cujo centro não é a Terra). Conjugando o movimento do centro do epiciclo, movido pelo deferente, com o movimento próprio do planeta a descrever o epiciclo tem-se um movimento resultante para definir a trajetória do astro em questão, tudo construído de modo que o astro ora se afasta, ora se aproxima, atrasa-se ou adianta-se.
Para explicar a velocidade não uniforme dos planetas, Ptolomeu introduziu o equante, que é um ponto ao lado do centro do deferente oposto à posição da Terra, em relação ao qual o centro do epiciclo se move a uma velocidade angular uniforme. O movimento uniforme não era do planeta, mas do centro do epiciclo, em relação ao equante, não em relação à Terra.
Em pleno apogeu do Império Romano, coube a Cláudio Ptolomeu (90-168), de Alexandria, construir um modelo matemático para sintetizar a antiga astronomia grega, ou seja, o pensamento que se consolidou com fundamentos esboçados desde Pitágoras até as contribuições de Platão e Aristóteles.
- a centralidade e fixidez da Terra,
- o tamanho reduzido do Universo,
- a distinção entre um mundo supralunar e um mundo sublunar e
- o movimento circular e uniforme dos astros.
Leis Físicas
De fato, o sistema de Ptolomeu "operacionaliza" as ideias e insuficiências de seu tempo. A crença na centralidade e fixidez da Terra decorria principalmente do desconhecimento das leis físicas (como as leis do movimento, o princípio da inércia e a lei da gravidade). Acreditavam os gregos que, se a Terra se movesse, sentíriamos o vento contra nossos corpos e todos os corpos em repouso na Terra pareceriam estar em deslocamento contrário. O próprio Ptolomeu escreveu que, se a Terra se movesse, "os pássaros que voassem no sentido do movimento não poderiam voltar para seus ninhos." Desconheciam, com efeito, o princípio da inércia, que só seria formulado por Galileu, no início do século XVII.
Além disso, uma Terra em movimento era incompatível com a concepção grega da gravidade; Aristóteles supunha que a Terra estava no centro do mundo por causa do seu peso. Todos os corpos têm seu lugar natural, e o lugar natural dos corpos pesados é um ponto abstrato, que chamou de "centro da Terra".
Outro motivo para crer na imobilidade da Terra era a aparente ausência de alterações nas posições das estrelas. Se a Terra se movesse, as estrelas deveriam alterar-se umas em relação às outras, por causa da paralaxe estelar. Esse entendimento decorria de não terem os gregos nenhuma ideia das enormes distâncias que nos separam das estrelas; a paralaxe existe, mas as distâncias até as estrelas, e entre elas, é tão grande que parece não existir.
Contradições
Havia, porém, algumas questões a resolver:
(1) Se os movimentos dos astros eram circulares, tendo uma Terra fixa como centro, como explicar que ora estivessem mais próximos, ora mais longe dela?
(2) A velocidade dos astros não permanecia imutável, variando de acordo com sua posição na órbita, o que configurava outra contradição com a premissa de movimento uniforme.
(3) Cinco planetas vagavam errantemente em torno da Terra: Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno. De vez em quando um deles parava e começava a andar para trás, num recuo chamado de movimento retrógrado. Como explicar isso?
Salvar o fenômeno
No contexto das concepções astronômicas gregas, usa-se a expressão "salvar o fenômeno" para fazer referência ao esforço empreendido para justificar os complicados movimentos planetários utilizando apenas movimentos circulares uniformes. No esforço de "salvar" o modelo da perfeição, contornando as três contradições mencionadas, Ptolomeu usou um complicado sistema de deferentes, epiciclos e equantes.
Para explicar as trajetórias não circulares, Ptolomeu admitiu que o planeta se move ao longo de um pequeno círculo chamado epiciclo, cujo centro se move em um círculo maior chamado deferente. A Terra fica numa posição um pouco afastada do centro do deferente (portanto o deferente é um círculo cujo centro não é a Terra). Conjugando o movimento do centro do epiciclo, movido pelo deferente, com o movimento próprio do planeta a descrever o epiciclo tem-se um movimento resultante para definir a trajetória do astro em questão, tudo construído de modo que o astro ora se afasta, ora se aproxima, atrasa-se ou adianta-se.
Para explicar a velocidade não uniforme dos planetas, Ptolomeu introduziu o equante, que é um ponto ao lado do centro do deferente oposto à posição da Terra, em relação ao qual o centro do epiciclo se move a uma velocidade angular uniforme. O movimento uniforme não era do planeta, mas do centro do epiciclo, em relação ao equante, não em relação à Terra.
Deferente, equante, epiciclo
O deferente, o raio do epiciclo, sua velocidade e a posição do equante eram determinados matematicamente, o que dava ao Sistema de Ptolomeu um cunho de artificialidade, mas permitia explicar qualquer órbita e qualquer movimento retrógrado, com utilizar movimentos circulares e uniformes.
Ou seja, a matemática "de resultado", em que a solução desejada retroage sobre os parâmetros que a definem, é que permitiu "salvar o fenômeno". Artificial, mas eficiente, o sistema de Ptolomeu iria prevalecer, absoluto e em caráter exclusivo, do século II até o século XVI, quando passou a ter a concorrência do sistema heliocêntrico de Copérnico.
Ou seja, a matemática "de resultado", em que a solução desejada retroage sobre os parâmetros que a definem, é que permitiu "salvar o fenômeno". Artificial, mas eficiente, o sistema de Ptolomeu iria prevalecer, absoluto e em caráter exclusivo, do século II até o século XVI, quando passou a ter a concorrência do sistema heliocêntrico de Copérnico.
sábado, 13 de novembro de 2010
O TRIUNFO DO SUTIL
UM ESTALO: FÍSICA
Tinha de decidir sobre o meu futuro, rapidamente, claro, mas sem desespero. Pensei muito, hesitei muito, recolhido em mim mesmo durante dias seguidos. Até que, num estalo, senti que queria mesmo era ser professor de física, a matéria que sempre me fascinou. Sim, eu seria professor de física. Em nenhum momento esquecera a emoção, no colégio, quando o professor mencionou que o austríaco Wolfgang Pauli, Prêmio Nobel de Física, de 1945, descobriu uma partícula subatômica usando tão-somente as quatro operações aritméticas.
Ao observar o que acontece quando um nêutron se desdobra num próton e num elétron, no fenômeno conhecido como decaimento beta, Pauli calculou uma diferença entre a energia das partículas, antes e depois do desdobramento. Postulou, para explicá-la, a existência de uma partícula que não pode ser percebida, por ter massa insignificante e carga elétrica nula, que tudo atravessa e não interfere com nada.
- Somos constantemente atravessados por ela, em quantidades avassaladoras e à velocidade da luz.
- Não seria essa partícula fantasmal uma metáfora matemática, considerando que ninguém teve, ainda, o privilégio de vê-la, nem de senti-la?
Pauli confiava nos princípios da física.
- Ela existe. Se não existir, estará violado o princípio da conservação da energia.
Foi o físico italiano Enrico Fermi que propôs dar a essa partícula o nome afetuoso de neutrino, que em italiano vale por “neutronzinho”, em virtude de sua neutralidade excepcional. Em 1956, físicos experimentais detetaram o neutrino no reator Hanford, em Washington, e publicaram, na revista Science, o artigo "Deteção do neutrino livre: uma confirmação".
- O neutrino é o triunfo do sutil, conformou-se o astrofísico francês Michel Cassé.
Histórias como a de Pauli contribuíram para aumentar meu entusiasmo pela física, o que me levou a estudar engenharia, que era, agora, uma etapa a ser esquecida. Sim, eu queria ser professor, com a vantagem adicional, perante minhas idiossincrasias, de que a atividade implica pouco ou nenhum envolvimento com outras pessoas, sendo o único compromisso do professor o de ensinar e ser entendido pelos alunos.
- Ninguém pode obrigar um professor a ensinar uma fórmula errada ou fazer a quadratura do círculo.
Achava, além disso, que possuía inclinação para a cátedra, principalmente após o congresso de Buenos Aires, no qual, três anos antes, eu tinha dado uma palestra sobre contratos de risco, por determinação da WED. Explico como foi. Desde a última década do século passado, o Governo deixara de atuar em caráter exclusivo na área de infraestrutura, substituindo-se nessa tarefa por companhias nacionais e estrangeiras, contratadas no regime das concessões. As agências regulam a atividade e licitam os projetos, as companhias assumem o risco e executam as operações e o governo recolhe generosos impostos e participações. Telecomunicações, petróleo, energia elétrica e mineração, tudo agora se desenvolvia sob a égide da competição.
Os que não conviveram com esse modelo, queriam saber, e rapidamente, como funcionam os contratos e como se toma uma decisão quando há risco de empreitadas malsucedidas. Tudo bem, pensei, é a minha praia, mas havia o inconveniente de que não tinha nenhuma experiência como palestrante, nem paticipara de nenhum congresso.
Cecília decidiu viajar comigo, uma pausa no ritmo frenético que levava à frente dos seus negócios, cada dia mais diversificados, prósperos e exaustivos. Viajávamos juntos frequentemente nas férias, é verdade, mas essa foi a única vez em que me acompanhou numa viagem de negócios no exterior.
Tinha de decidir sobre o meu futuro, rapidamente, claro, mas sem desespero. Pensei muito, hesitei muito, recolhido em mim mesmo durante dias seguidos. Até que, num estalo, senti que queria mesmo era ser professor de física, a matéria que sempre me fascinou. Sim, eu seria professor de física. Em nenhum momento esquecera a emoção, no colégio, quando o professor mencionou que o austríaco Wolfgang Pauli, Prêmio Nobel de Física, de 1945, descobriu uma partícula subatômica usando tão-somente as quatro operações aritméticas.
Ao observar o que acontece quando um nêutron se desdobra num próton e num elétron, no fenômeno conhecido como decaimento beta, Pauli calculou uma diferença entre a energia das partículas, antes e depois do desdobramento. Postulou, para explicá-la, a existência de uma partícula que não pode ser percebida, por ter massa insignificante e carga elétrica nula, que tudo atravessa e não interfere com nada.
- Somos constantemente atravessados por ela, em quantidades avassaladoras e à velocidade da luz.
- Não seria essa partícula fantasmal uma metáfora matemática, considerando que ninguém teve, ainda, o privilégio de vê-la, nem de senti-la?
Pauli confiava nos princípios da física.
- Ela existe. Se não existir, estará violado o princípio da conservação da energia.
Foi o físico italiano Enrico Fermi que propôs dar a essa partícula o nome afetuoso de neutrino, que em italiano vale por “neutronzinho”, em virtude de sua neutralidade excepcional. Em 1956, físicos experimentais detetaram o neutrino no reator Hanford, em Washington, e publicaram, na revista Science, o artigo "Deteção do neutrino livre: uma confirmação".
- O neutrino é o triunfo do sutil, conformou-se o astrofísico francês Michel Cassé.
Histórias como a de Pauli contribuíram para aumentar meu entusiasmo pela física, o que me levou a estudar engenharia, que era, agora, uma etapa a ser esquecida. Sim, eu queria ser professor, com a vantagem adicional, perante minhas idiossincrasias, de que a atividade implica pouco ou nenhum envolvimento com outras pessoas, sendo o único compromisso do professor o de ensinar e ser entendido pelos alunos.
- Ninguém pode obrigar um professor a ensinar uma fórmula errada ou fazer a quadratura do círculo.
Achava, além disso, que possuía inclinação para a cátedra, principalmente após o congresso de Buenos Aires, no qual, três anos antes, eu tinha dado uma palestra sobre contratos de risco, por determinação da WED. Explico como foi. Desde a última década do século passado, o Governo deixara de atuar em caráter exclusivo na área de infraestrutura, substituindo-se nessa tarefa por companhias nacionais e estrangeiras, contratadas no regime das concessões. As agências regulam a atividade e licitam os projetos, as companhias assumem o risco e executam as operações e o governo recolhe generosos impostos e participações. Telecomunicações, petróleo, energia elétrica e mineração, tudo agora se desenvolvia sob a égide da competição.
Os que não conviveram com esse modelo, queriam saber, e rapidamente, como funcionam os contratos e como se toma uma decisão quando há risco de empreitadas malsucedidas. Tudo bem, pensei, é a minha praia, mas havia o inconveniente de que não tinha nenhuma experiência como palestrante, nem paticipara de nenhum congresso.
Cecília decidiu viajar comigo, uma pausa no ritmo frenético que levava à frente dos seus negócios, cada dia mais diversificados, prósperos e exaustivos. Viajávamos juntos frequentemente nas férias, é verdade, mas essa foi a única vez em que me acompanhou numa viagem de negócios no exterior.
quarta-feira, 10 de novembro de 2010
TÉCNICAS DE ENGANAÇÃO
DUAS VEZES NO MESMO BECO
Sair da WED e separar-me da Cecília, tudo num intervalo de dois meses, recuava-me à estaca zero. Não sabia de que maneira recomeçar, nem tinha por onde, e precipitadamente resolvi fazer um curso de negociações de contratos, animado pela decisão do governo de incentivar as joint-ventures na mineração, no petróleo e nos projetos de eletricidade.
Tudo a ver com o que fazia na WED, mas, a bem da verdade, o curso me interessava pela oportunidade de me relacionar com outros profissionais da atividade, não para aprender o que já sabia. Para ser franco, nem sei se a gente precisa de curso para negociar. Estamos negociando a cada momento na nossa vida particular e doméstica, seja para comprar um apartamento, discutir um empréstimo, escolher com a mulher um programa de lazer, um restaurante ou nosso lugar no avião. Negociamos nosso trajeto, com o motorista de táxi, e o mês das férias, com nosso chefe. No lado profissional, a necessidade de negociar é ainda maior, nas aquisições de materiais, nas reuniões com outros profissionais, nas tratativas com clientes e prestadores de serviços ou nas discussões de contratos.
O curso, nas três semanas em que o frequentei, dava ênfase às operações de natureza prospectiva, sendo necessário descobrir a oportunidade, estimar os custos e receitas de cada projeto potencial, orientar a decisão a ser tomada, buscar sócios, participar das licitações e negociar os acordos. Primeiro, calcular os resultados virtuais de um projeto potencial, as probabilidades de ocorrência dos eventos possíveis e, finalmente, o valor monetário esperado do projeto médio, elaborado com as propriedades de todos os eventos considerados. Depois, efetuar as negociações dos contratos, havendo aqueles que são assinados com agências do governo e os que envolvem companhias que se associam nas joint-ventures. Contratos de risco, memorandos de entendimento, procedimentos contábeis e acordos de operações conjuntas, cujos termos são negociados exaustivamente, cláusula por cláusula, às vezes palavra por palavra, que não existe palavra inútil ou supérflua nos contratos de responsabilidade.
Essa parte do curso foi boa, ensinando procedimentos semelhantes às práticas que conheci na WED. Fui, porém, surpreendido quando os professores começaram a estimular a filosofia da manipulação, que se baseia na análise de pontos fortes e pontos fracos dos negociadores da outra parte contratante, na elaboração de dossiês pessoais e no uso de providências facilitadoras, para envolvê-los e vencê-los por enganação. Nas negociações que conduzi na WED, sempre estive de prontidão para defender-me desses estratagemas. Mas o que o curso estava a ensinar era o ataque, para ludibriar, e não a defesa, para não ser ludibriado.
- Nosso curso vai agora se ocupar das técnicas para desestabilizar a outra parte. Hoje veremos os prazos enganosos e as cláusulas de palha.
- Prazos enganosos e cláusulas de palha?
- Prazos enganosos, que os americanos chamam de “phony deadlines”, destinam-se a induzir o negociador da outra parte a tomar decisões apressadas, sem dar-lhe tempo de perceber todas as implicações da cláusula que está sendo discutida. O expediente pode começar com um inocente comentário do tipo “vamos concluir logo o negócio, pois preciso estar em Londres amanhã à noite”.
- E cláusulas de palha?
- São as chamadas “straw issues”, que correspondem ao nosso “bode na sala”. Cláusulas irrazoáveis, propostas no meio das negociações pelo negociador esperto, para serem retiradas em troca de a outra parte ceder em algum outro ponto que esteja sendo discutido. Principalmente na hora do chamado “toma-lá-dá-cá” das discussões contratuais.
- Há outras técnicas e cláusulas desse tipo?
- Inúmeras, que vamos analisar exaustivamente, praticando cada estratagema de maneira a facilitar a tarefa de vocês na vida real.
O curso ensinava, pois, a arte da empulhação! Pior é que os alunos estavam interessados nessas técnicas de ludibriar, concordavam com as mesmas e sugeriam alternativas para bem enganar a outra parte. Não me dou bem nesse ambiente, pensei. Tinha abandonado um emprego excepcional por não me conformar com a existência de “meios heterodoxos que se justificam pelos fins a serem alcançados”. Entendi naquele instante que ingressar no clube dos negociadores seria uma oportunidade de “apanhar duas vezes no mesmo beco”, que essa era uma expressão usada pela Cecília para ironizar os que reincidiam no erro, sem se emendar após o primeiro castigo.
Em boa hora abandonei o curso de negociações, decidido a não ver aquela gente nunca mais.
Sair da WED e separar-me da Cecília, tudo num intervalo de dois meses, recuava-me à estaca zero. Não sabia de que maneira recomeçar, nem tinha por onde, e precipitadamente resolvi fazer um curso de negociações de contratos, animado pela decisão do governo de incentivar as joint-ventures na mineração, no petróleo e nos projetos de eletricidade.
Tudo a ver com o que fazia na WED, mas, a bem da verdade, o curso me interessava pela oportunidade de me relacionar com outros profissionais da atividade, não para aprender o que já sabia. Para ser franco, nem sei se a gente precisa de curso para negociar. Estamos negociando a cada momento na nossa vida particular e doméstica, seja para comprar um apartamento, discutir um empréstimo, escolher com a mulher um programa de lazer, um restaurante ou nosso lugar no avião. Negociamos nosso trajeto, com o motorista de táxi, e o mês das férias, com nosso chefe. No lado profissional, a necessidade de negociar é ainda maior, nas aquisições de materiais, nas reuniões com outros profissionais, nas tratativas com clientes e prestadores de serviços ou nas discussões de contratos.
O curso, nas três semanas em que o frequentei, dava ênfase às operações de natureza prospectiva, sendo necessário descobrir a oportunidade, estimar os custos e receitas de cada projeto potencial, orientar a decisão a ser tomada, buscar sócios, participar das licitações e negociar os acordos. Primeiro, calcular os resultados virtuais de um projeto potencial, as probabilidades de ocorrência dos eventos possíveis e, finalmente, o valor monetário esperado do projeto médio, elaborado com as propriedades de todos os eventos considerados. Depois, efetuar as negociações dos contratos, havendo aqueles que são assinados com agências do governo e os que envolvem companhias que se associam nas joint-ventures. Contratos de risco, memorandos de entendimento, procedimentos contábeis e acordos de operações conjuntas, cujos termos são negociados exaustivamente, cláusula por cláusula, às vezes palavra por palavra, que não existe palavra inútil ou supérflua nos contratos de responsabilidade.
Essa parte do curso foi boa, ensinando procedimentos semelhantes às práticas que conheci na WED. Fui, porém, surpreendido quando os professores começaram a estimular a filosofia da manipulação, que se baseia na análise de pontos fortes e pontos fracos dos negociadores da outra parte contratante, na elaboração de dossiês pessoais e no uso de providências facilitadoras, para envolvê-los e vencê-los por enganação. Nas negociações que conduzi na WED, sempre estive de prontidão para defender-me desses estratagemas. Mas o que o curso estava a ensinar era o ataque, para ludibriar, e não a defesa, para não ser ludibriado.
- Nosso curso vai agora se ocupar das técnicas para desestabilizar a outra parte. Hoje veremos os prazos enganosos e as cláusulas de palha.
- Prazos enganosos e cláusulas de palha?
- Prazos enganosos, que os americanos chamam de “phony deadlines”, destinam-se a induzir o negociador da outra parte a tomar decisões apressadas, sem dar-lhe tempo de perceber todas as implicações da cláusula que está sendo discutida. O expediente pode começar com um inocente comentário do tipo “vamos concluir logo o negócio, pois preciso estar em Londres amanhã à noite”.
- E cláusulas de palha?
- São as chamadas “straw issues”, que correspondem ao nosso “bode na sala”. Cláusulas irrazoáveis, propostas no meio das negociações pelo negociador esperto, para serem retiradas em troca de a outra parte ceder em algum outro ponto que esteja sendo discutido. Principalmente na hora do chamado “toma-lá-dá-cá” das discussões contratuais.
- Há outras técnicas e cláusulas desse tipo?
- Inúmeras, que vamos analisar exaustivamente, praticando cada estratagema de maneira a facilitar a tarefa de vocês na vida real.
O curso ensinava, pois, a arte da empulhação! Pior é que os alunos estavam interessados nessas técnicas de ludibriar, concordavam com as mesmas e sugeriam alternativas para bem enganar a outra parte. Não me dou bem nesse ambiente, pensei. Tinha abandonado um emprego excepcional por não me conformar com a existência de “meios heterodoxos que se justificam pelos fins a serem alcançados”. Entendi naquele instante que ingressar no clube dos negociadores seria uma oportunidade de “apanhar duas vezes no mesmo beco”, que essa era uma expressão usada pela Cecília para ironizar os que reincidiam no erro, sem se emendar após o primeiro castigo.
Em boa hora abandonei o curso de negociações, decidido a não ver aquela gente nunca mais.
sábado, 6 de novembro de 2010
CIÊNCIA NA IDADE MÉDIA
OS ÁRABES SALVARAM O CONHECIMENTO GREGO
Os romanos tinham mais interesse em comércio, direito e moral do que em investigação científica, na ocasião em que dominaram os gregos, no segundo século antes de Cristo. Apenas Aristóteles e Platão suscitavam algum interesse, sendo importante mencionar que em geral as obras científicas gregas não foram traduzidas para o Latim. Inicialmente, sem envolvimento do Estado com religião, a evolução científica dos gregos pôde seguir seu curso normal em Alexandria, com destaque na astronomia para os trabalhos de Ptolomeu. Sua obra máxima, "Hè Megalè Syntaxis", foi traduzida pelos árabes, na Idade Média, com o nome de “Al Midjisti” (“O Grande Livro”), o qual só muitos séculos depois retornou para conhecimento do Ocidente, onde recebeu o título de Almagesto.
A partir do século II, passou a ocorrer a ascendência da religião sobre o Império Romano, até que, em 391, o imperador Teodósio deu ao Cristianismo o estatuto de religião do Estado. Num movimento inverso ao que se iniciara com os pré-socráticos, que separaram ciência de religião, agora os monges da igreja, que viviam reclusos em mosteiros, rezando e copiando livros, tornavam-se responsáveis pela proteção espiritual da sociedade. Eles passaram a dizer o que era certo e o que era errado em termos científicos, estabelecendo parâmetros e os textos bíblicos e dogmas que deveriam ser usados na interpretação e validação do se podia aceitar. Por exemplo, garantiam que a Terra, imóvel, apoiava-se sobre colunas, de acordo com o Salmo 103: 5:
- “Assentaste a Terra sobre suas bases, irremovível para sempre e eternamente.”
Pensamento e razão davam lugar à fé religiosa e à fidelidade aos textos cristãos.
Quatro registros
(1) São Basílio (330-379) condenou os que “comparam a simplicidade e ingenuidade de nossos discursos espirituais com a curiosidade dos filósofos a respeito do céu”. E argumentou:
- Assim como a beleza da mulher casta supera a da cortesã, assim também nossos discursos prevalecem sobre os desses estranhos à Igreja.
(2) Em 389 o imperador romano Teodósio ordenou ao bispo Teófilo que destruísse os monumentos pagãos de Alexandria, entre os quais o Templo de Serápis, dedicado a uma divindade pagã, protetora da saúde. Assim se perdeu boa parte dos livros da Biblioteca de Alexandria, guardados no templo desde Cleópatra (século I).
(3) Em 529 o imperador cristão Justiniano fechou a Academia de Platão, em Atenas, tachando-a de “centro de saber pagão”.
(4) Os religiosos tinham dificuldade para aceitar a esfericidade da Terra, sobretudo pela afirmação de Aristóteles de que havia outro continente ao sul do nosso planeta, habitado pelos antípodas, contrapondo-se ao mundo conhecido. Os cristãos não podiam admitir que houvesse uma outra civilização, de homens não alcançados pelo Dilúvio. Por isso, mesmo os que acreditavam na esfericidade da Terra, representavam-na como uma semiesfera, com apenas o Hemisfério Norte e seus três continentes.
Para resolver essa questão, no século VI o monge Cosmas Indicopleustes defendeu que a Terra era plana como a superfície de uma mesa. Sua argumentação não tem nenhuma proximidade com a ciência e suas deduções se faziam a partir de postulados bíblicos:
- Existem falsos cristãos que ousam sustentar que a Terra é esférica. Uma heresia dos gregos, que refuto com passagens e citações inequívocas dos textos sagrados.
Aristóteles perdido
Na verdade, Aristóteles foi conhecido mais ou menos até o século VI, quando seus livros deixaram de ser lidos, perderam a importância e desapareceram. Havia pouca investigação científica, que cedeu lugar às práticas do ocultismo, em formas diversas de superstição, magia e astrologia. Nesse vácuo é que surgiu a Escola Árabe, concentrando um misto de conhecimentos de origem grega, romana e judaica na Corte de Bizâncio e nos países que se estendem da Síria ao Golfo Pérsico. As obras de Euclides e Ptolomeu foram traduzidas para o árabe, foi adotado o zero, no século IX, na função de completar os algarismos dos indianos, houve o advento da alquimia, com o objetivo de tentar a transmutação dos metais em ouro e encontrar o elixir da vida para cura de todos os males, e foram introduzidas tábuas astronômicas de grande qualidade.
O conhecimento científico grego foi desse modo preservado pelos árabes, que, a partir do século VII, se expandiram para várias regiões, incluindo o Norte da África e a Espanha.
Biblioteca de Toledo: reencontro com os gregos
Quando os espanhóis expulsaram os mouros da cidade de Toledo, em 1085, nela encontraram uma extraordinária biblioteca islâmica, com todo o conhecimento dos gregos antigos traduzidos para o árabe. O rei espanhol Afonso VI deu toda a prioridade à tradução dos textos para o Latim, onde se destacou um intelectual que aprendera a língua árabe, Gerard de Cremona, responsável pela tradução latina de 76 livros, entre os quais o Almagesto, de Cláudio Ptolomeu.
O Almagesto e os textos de Aristóteles passaram a ser considerados sagrados, apesar de neles Aristóteles ter incorrido em erros inadmissíveis, como a declaração de que os homens tinham mais dentes que as mulheres. Para compatibilizar o legado de Aristóteles com as Escrituras, foi fundamental o trabalho de São Tomás de Aquino (1225 - 1274), pela simbiose que fez do cristianismo com a visão aristotélica do mundo.
As ideias de Aristóteles e de seu operador matemático, Ptolomeu, iriam ter, por essa via, uma sobrevivência adicional de quatrocentos anos.
Os romanos tinham mais interesse em comércio, direito e moral do que em investigação científica, na ocasião em que dominaram os gregos, no segundo século antes de Cristo. Apenas Aristóteles e Platão suscitavam algum interesse, sendo importante mencionar que em geral as obras científicas gregas não foram traduzidas para o Latim. Inicialmente, sem envolvimento do Estado com religião, a evolução científica dos gregos pôde seguir seu curso normal em Alexandria, com destaque na astronomia para os trabalhos de Ptolomeu. Sua obra máxima, "Hè Megalè Syntaxis", foi traduzida pelos árabes, na Idade Média, com o nome de “Al Midjisti” (“O Grande Livro”), o qual só muitos séculos depois retornou para conhecimento do Ocidente, onde recebeu o título de Almagesto.
A partir do século II, passou a ocorrer a ascendência da religião sobre o Império Romano, até que, em 391, o imperador Teodósio deu ao Cristianismo o estatuto de religião do Estado. Num movimento inverso ao que se iniciara com os pré-socráticos, que separaram ciência de religião, agora os monges da igreja, que viviam reclusos em mosteiros, rezando e copiando livros, tornavam-se responsáveis pela proteção espiritual da sociedade. Eles passaram a dizer o que era certo e o que era errado em termos científicos, estabelecendo parâmetros e os textos bíblicos e dogmas que deveriam ser usados na interpretação e validação do se podia aceitar. Por exemplo, garantiam que a Terra, imóvel, apoiava-se sobre colunas, de acordo com o Salmo 103: 5:
- “Assentaste a Terra sobre suas bases, irremovível para sempre e eternamente.”
Pensamento e razão davam lugar à fé religiosa e à fidelidade aos textos cristãos.
Quatro registros
(1) São Basílio (330-379) condenou os que “comparam a simplicidade e ingenuidade de nossos discursos espirituais com a curiosidade dos filósofos a respeito do céu”. E argumentou:
- Assim como a beleza da mulher casta supera a da cortesã, assim também nossos discursos prevalecem sobre os desses estranhos à Igreja.
(2) Em 389 o imperador romano Teodósio ordenou ao bispo Teófilo que destruísse os monumentos pagãos de Alexandria, entre os quais o Templo de Serápis, dedicado a uma divindade pagã, protetora da saúde. Assim se perdeu boa parte dos livros da Biblioteca de Alexandria, guardados no templo desde Cleópatra (século I).
(3) Em 529 o imperador cristão Justiniano fechou a Academia de Platão, em Atenas, tachando-a de “centro de saber pagão”.
(4) Os religiosos tinham dificuldade para aceitar a esfericidade da Terra, sobretudo pela afirmação de Aristóteles de que havia outro continente ao sul do nosso planeta, habitado pelos antípodas, contrapondo-se ao mundo conhecido. Os cristãos não podiam admitir que houvesse uma outra civilização, de homens não alcançados pelo Dilúvio. Por isso, mesmo os que acreditavam na esfericidade da Terra, representavam-na como uma semiesfera, com apenas o Hemisfério Norte e seus três continentes.
Para resolver essa questão, no século VI o monge Cosmas Indicopleustes defendeu que a Terra era plana como a superfície de uma mesa. Sua argumentação não tem nenhuma proximidade com a ciência e suas deduções se faziam a partir de postulados bíblicos:
- Existem falsos cristãos que ousam sustentar que a Terra é esférica. Uma heresia dos gregos, que refuto com passagens e citações inequívocas dos textos sagrados.
Aristóteles perdido
Na verdade, Aristóteles foi conhecido mais ou menos até o século VI, quando seus livros deixaram de ser lidos, perderam a importância e desapareceram. Havia pouca investigação científica, que cedeu lugar às práticas do ocultismo, em formas diversas de superstição, magia e astrologia. Nesse vácuo é que surgiu a Escola Árabe, concentrando um misto de conhecimentos de origem grega, romana e judaica na Corte de Bizâncio e nos países que se estendem da Síria ao Golfo Pérsico. As obras de Euclides e Ptolomeu foram traduzidas para o árabe, foi adotado o zero, no século IX, na função de completar os algarismos dos indianos, houve o advento da alquimia, com o objetivo de tentar a transmutação dos metais em ouro e encontrar o elixir da vida para cura de todos os males, e foram introduzidas tábuas astronômicas de grande qualidade.
O conhecimento científico grego foi desse modo preservado pelos árabes, que, a partir do século VII, se expandiram para várias regiões, incluindo o Norte da África e a Espanha.
Biblioteca de Toledo: reencontro com os gregos
Quando os espanhóis expulsaram os mouros da cidade de Toledo, em 1085, nela encontraram uma extraordinária biblioteca islâmica, com todo o conhecimento dos gregos antigos traduzidos para o árabe. O rei espanhol Afonso VI deu toda a prioridade à tradução dos textos para o Latim, onde se destacou um intelectual que aprendera a língua árabe, Gerard de Cremona, responsável pela tradução latina de 76 livros, entre os quais o Almagesto, de Cláudio Ptolomeu.
O Almagesto e os textos de Aristóteles passaram a ser considerados sagrados, apesar de neles Aristóteles ter incorrido em erros inadmissíveis, como a declaração de que os homens tinham mais dentes que as mulheres. Para compatibilizar o legado de Aristóteles com as Escrituras, foi fundamental o trabalho de São Tomás de Aquino (1225 - 1274), pela simbiose que fez do cristianismo com a visão aristotélica do mundo.
As ideias de Aristóteles e de seu operador matemático, Ptolomeu, iriam ter, por essa via, uma sobrevivência adicional de quatrocentos anos.
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