sábado, 20 de novembro de 2010

UMA PALESTRA EM BUENOS AIRES

SALÃO NOBRE

O congresso tratava de muitos assuntos, que não tinham relação direta com a exposição que me cabia fazer. Apresentei-me no dia inaugural, quando me informaram que eu seria o último palestrante, cinco dias depois. Eram palestras numerosas e simultâneas, cujos temas iam desde o aumento dos problemas com a camada de ozônio até o poder calorífico do álcool combustível ou como se poderia antecipar a produção de um campo de petróleo, diminuir a poluição da cidade de Tóquio ou medir a umidade do ar num campo de golfe.

Embora de um modo geral fossem dissertações competentes, a poucas assisti, pois esses assuntos geralmente não me interessavam. Constatei também que cada palestrante merecia apenas uns poucos interessados, com os congressistas divididos pelas inúmeras salas. Não tinha por que me preocupar, pois um vexame de minha parte haveria de ser para meia dúzia de testemunhas ociosas, eis que não passava de um palestrante de último dia, quando os participantes estariam voltando para seus países ou aproveitando o derradeiro momento para conhecer melhor a cidade de Buenos Aires. Não iriam perder seu tempo comigo, um desconhecido, sem nenhum retrospecto ou recomendação nos folhetos que orientavam a seleção das palestras a serem assistidas.

Uma indiferença que, de resto, só fazia me tranquilizar. Afinal, palestrar em congressos nunca fizera parte de minhas habilitações, e estava ali para cumprir uma determinação da WED, motivada não sei por que exatas e valiosas razões. Era completar rapidamente minha apresentação, agradecer humildemente a presença dos gatos pingados que me honrassem com sua audiência, se alguns, e seguir diretamente para o aeroporto, no mais assumido low profile.
Foi com esse espírito que convidei Cecília para conhecer tudo a nosso alcance em Buenos Aires, enquanto não chegava minha vez de participar no evento. Duas vezes fomos a uma casa de tangos. No Teatro Colón assistimos à ópera Manon Lescaut, de Giacomo Puccini, com Plácido Domingo e Renata Scotto, além de comparecer a um evento que reuniu vários artistas para homenagear Astor Piazolla, muito emocionante e cheio de atrações.

Renata Scotto

Surpresa

Quando a sexta-feira finalmente chegou, ainda no hotel recebi a informação de que minha palestra seria no salão nobre do congresso.


- Salão nobre, por que salão nobre?

- É o único auditório com mais de cem lugares, e a direção do congresso percebeu que há grande interesse pela sua palestra.

Foi assim que expus para 716 profissionais de todo o mundo sobre como se pode tomar uma decisão em relação a um projeto caracterizado pela incerteza. Os problemas, as soluções possíveis, os contratos, os investimentos adicionais, as cláusulas alternativas. Respondi a muitas questões, algumas formuladas por professores e até por presidentes de empresas, sempre me valendo da minha experiência na WED.

Quando regressei ao Brasil, a WED recebeu uma dezena de telegramas internacionais, que se congratulavam com minha palestra, e eu, em particular, fui surpreendido por uma carta elogiosa do presidente do congresso. Não tinha nenhum compromisso com a vaidade, pois minha matéria, a única, era o cumprimento do que me competia fazer. Mas devo admitir que os telegramas e a carta do presidente serviram para deixar aquecido meu desprevenido coração, eu que já considerara o fato de falar competentemente para setecentos e dezesseis congressistas na presença da Cecília um generoso benefício para minha autoestima.

Por que não?

Agora, sem emprego e sem mulher, eu me lembrava daquela pequena vitória, disposto a me levantar e dar a volta por cima.

- Sim, podia me tornar um professor... que fosse a física, por que não?

Decidi pesquisar na Internet e tive a sorte de descobrir que poderia candidatar-me a um doutorado de física, pois era portador de um diploma de engenharia, bastando-me, a esse fim, conseguir ser aprovado numa aula que deveria dar para uma banca de doutores. Foi fácil registrar-me como candidato, pois a faculdade aceitou meus títulos, sem grandes dificuldades ou retificações. Nos meus frequentes exercícios de generalização, imaginei naquele momento que os cursos voltados para a ciência não conseguem atrair muitos alunos, quem sabe por falta de apelo, de modo que os candidatos que aparecem são sempre muito bem-vindos. A aula seria dentro de cinco meses, na temporada das admissões, sobre um assunto da física a ser anunciado, na hora, por uma banca de professores.

- Tudo depende de mim, pensei.

Tinha dinheiro bastante para viver modestamente durante uns vinte meses, sem trabalhar, e me pus a rever em profundidade todas aquelas matérias do colegial e da faculdade. Oito horas por dia a ler sobre elementos e causas, espaço e movimento, matéria e força, energia e entropia, os átomos, o tempo, a luz, teoria dos campos, réguas e relógios, gravitação e curvatura, partículas e observador. Quando parava para descansar, lia poemas de Bandeira, Drummond, Fernando Pessoa, Manuel de Barros, Antero de Quental, essa gente que sabe muito sobre o ser humano, até o que se passa dentro de cada um de nós.
Herança de um emparelhamento, que não houve...

Nenhum comentário: