FILHA DOS TIOS
Durante anos, desde Cecília, olhara outras mulheres com olhos neutros e desinteressados. Era agora um descasado, inseguro e desempregado, a procura de um destino. Resolvi deixar o tempo correr, sem nada procurar ou forçar relativamente às mulheres, pagando o preço de ficar sozinho. Meu objetivo imediato era habilitar-me para uma nova profissão. Mas o acaso trabalhou depressa, e conheci May, numa livraria do Leblon, algumas semanas depois do dia em que me inscrevi como candidato ao doutorado. Nossa conversa prolongou-se para além da livraria, e nos pusemos a passear pela Visconde de Albuquerque.
Ela era egiptóloga, eu que nem desconfiava da existência dessa atividade.
- E você, Carlinhos, qual a sua profissão?
- Engenheiro malsucedido, pois abandonei o ofício e decidi fazer um doutorado de física. Para isso, devo ser aprovado numa aula que darei daqui a alguns meses. Engenharia é uma profissão corriqueira e até meio óbvia. Mas egiptóloga, que faz exatamente uma egiptóloga?
- Bem, atualmente estou envolvida num projeto internacional relacionado com o faraó Tutancâmon, do século XIV a. C., coordenado pelo Museu de Ciência de Londres. Sua tumba, descoberta em 1922, em Tebas, no Vale dos Reis, continha uma quantidade extraordinária de joias e é considerada um dos maiores tesouros arqueológicos de todos os tempos.
- Museu de Ciência, lá em Londres?
Perguntei o que ela já me informara, nada menos edificante. Fazer o quê, dizer o quê? Eu era um analfabeto cultural. Tinha até me esquecido que existiu alguém chamado Tutancâmon, e essa palavra não escutava havia bem uns quinze anos. E, se me lembro, o que o meu professor de História dizia era "Tutancamon", e não Tutancâmon.
- Estamos reconstituindo a verdadeira face de Tutancâmon, que não tinha os lábios grossos e o rosto triangular sugerido pela máscara mortuária que lhe é atribuída, essa que se encontra reproduzida nos livros de História. Na verdade seus lábios eram finos, dentro de um rosto largo, que, além do mais, caracterizava-se por sobrancelhas grossas e olhos pequenos.
- A reconstituição facial de uma pessoa que morreu há tanto tempo há de ser muito complicada, observei, fazendo força para não ficar calado.
- Morreu há trinta e quatro séculos. Posso dizer que envolve radiografias da múmia, técnicas de raios X, processos e efeitos especiais, técnicas forenses digitais e softwares capazes de compatibilizar a face que se quer reconstituir com os ossos do crânio encontrados no sarcófago. A University College of London vai exibir esta semana um molde da face, criado por escultores especializados.
- Muito interessante.
- Suspeita-se que tenha recebido um violento golpe na cervical enquanto dormia. O suposto assassino foi seu primeiro-ministro, que se casou com a viúva, veja só, quase a história do Hamlet, de Shakespeare. A ferida não lhe causou a morte de imediato, e sua agonia se prolongou durante dois meses de terrível sofrimento.
- Onde você entra, nessa história, como egiptóloga?
- Tudo que faço é colaborar com informações históricas, pois não sou habilitada nessas técnicas de reconstituição facial. Por exemplo, houve certa vez uma discussão sobre a idade com que morreu Tutancâmon, e fui chamada a dar a minha opinião.
- Com que idade ele morreu?
- Para mim morreu quando tinha dezoito anos, mas esse não é um ponto completamente decidido. Subiu ao trono com nove anos, sendo conhecido como o faraó-menino.
- Os egípicios eram precoces...
- De fato. Cleópatra, por exemplo, chegou ao poder com apenas dezoito anos. Isso cerca de mil e quatrocentos anos depois.
- Só sei que Cleópatra gostava de seduzir imperadores romanos, como César e Marco Antônio. Mais não sei dizer, nem vi aqueles filmes apoteóticos...
- Cleópatra foi muito mais do que uma colecionadora de maridos ou uma mulher sedutora num filme do Cecil B. De Mile. Para além de se destacar pela beleza, falava vários idiomas e patrocinava as artes e as ciências. Lembre-se de que governava o Egito a partir de Alexandria, capital cultural da Antiguidade... Ela era filha de tios, veja você.
- Filha de tios? Pode isso?
- Cleópatra era filha de Ptolomeu Aulete e Cleópatra Trifena, que eram irmãos. Logo, Ptolomeu Aulete era pai de Cleópatra, mas seu tio, por parte de mãe; Cleópatra Trifena era sua mãe, mas também tia, por parte de pai. Filha dos tios, portanto.
- Assim não vale!
- Vale, sim, pois ela própria se casou com dois de seus irmãos mais jovens. Um de cada vez, bem entendido.
- Uma promiscuidade familiar.
- E real.
Uma mulher bonita e esclarecida, egiptóloga, veja só! E eu, idiota que sou, pagava o preço de não poder contribuir para o assunto e concorrendo decisivamente para a banalização dos diálogos: “muito interessante”, “os egípcios eram precoces” e “com que idade ele morreu?” Um vexame total e absoluto! O homem moderno distingue-se pelo nível e excelência das suas informações - positivamente não era esse o meu caso. Precisava estudar mais, porque aquela coisa de só saber física e ler apenas poesia inferiorizava e dificultava minha vida como pessoa. Enunciar o teorema das forças vivas e recitar Pásargada ou Confidências de um Itabirano, mais que isso eu não sabia. Que deveria fazer? O único caminho era padecer sobre os livros de filosofia, arte, música, história, em vez de ficar flanando, prevaricando ou malbaratando por aí meu escasso tempo de lazer.
- Seja como for, já tinha uma namorada...
sábado, 11 de dezembro de 2010
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