terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

SOLILÓQUIO

Aguardando uma tertúlia literária

Chego antes das 14 horas e acomodo-me na primeira fila. Lembro-me de ter trazido as crônicas do Machado de Assis e aproveito para ler sobre o velho Senado, pois conhecer a alma das instituições sempre me comove e emociona.

Machado de Assis

"Paranhos costumava falar com moderação e pausa; firmava os dedos, erguia-se para o gesto lento e sóbrio, ou então para chamar os punhos da camisa, e sua voz ia saindo meditada e colorida. Naquele dia, porém, a ânsia de produzir a defesa era tal, que as primeiras palavras foram antes bradadas que ditas:

- Não à vaidade, senhor presidente...

Daí a um instante, a voz tornava ao diapasão habitual, e o discurso continuou como nos outros dias. Eram nove horas da noite, quando ele acabou; estava como no princípio, nenhum sinal de fadiga, nem dele nem do auditório, que o aplaudiu."

Bardo Sereno

Dez minutos minutos passados, talvez mais, só agora percebo que a sala está lotada. Há muitas pessoas em pé. Imagino que toda essa gente esteja na expectativa de uma briga, como a da semana passada. Ainda faltam 20 minutos para o início da sessão, uma eternidade.
Subitamente um homem levanta-se no meio da platéia e toma a palavra:

- Meu nome é Bardo Sereno. Nada tenho a ver com este evento, mero circunstante e metediço que sou por aqui, mas gostaria que os senhores ouvissem o meu texto.

Bardo Sereno

Um constrangimento prolongado, até que o velhinho da bengala se manifesta:

- Texto, que texto?

- Um pequeno solilóquio, mediante o qual apresento a minha capacidade.

- Solilóquio... O que é isso?

- Um monólogo dramático de caráter literário.

- Manda lá o solilóquio, se de fato pequeno.

- Aí vai... Maldo, escarneço, degringolo, hiperbolizo, descuro, prevarico, infernizo e obscureço, sem que ninguém se dê conta da iniqüidade que represento. Tergiverso, ocultamente, e como! Posso rir de todos os discursos sobre o método, extrair a raiz cúbica do infinito, iluminar buracos negros e consolar girafas escandalizadas, eis alguns dos meus mais freqüentes e divertidos passatempos. Posso evitar o assassinato de Lincoln, impedir o terremoto de Lisboa,
apagar o incêndio de Roma, absolver Giordano Bruno e Galileu Galilei, decidir sobre o Santo Graal, conferir os cálculos de Eratóstenes e reabrir a Academia de Platão, dela excluindo os que não saibam matemática, e somente estes. Que mais, isso mesmo, que mais? Sou capaz de conversar com Cervantes, convencer o indeciso Pilatos de que a democracia direta é muito complicada, conter os arroubos de Napoleão ou salvá-lo de Waterloo, dar ouvidos a Beethoven, atirar longe a cicuta de Sócrates e comprar trigais diretamente de Van Gogh. Uma pechincha, senhores, uma pechincha!

- Muito bem!

- Maravilhoso!

- Valeu, Bardo Sereno!

- Sinceramente... Eu não esperava críticas, assim, tão construtivas.
Obrigado, obrigado a todos!

Namorou a Pier Angeli

Pier Angeli

Muito curioso, mas prefiro que ninguém mais se anime para uma segunda exibição desse tipo. Não tenho disposição, nem paciência, para ser platéia dos ASP, autores sem público. Não mesmo, não mesmo. Pois, como caixa de banco indefeso e desqualificado, sou obrigado a ouvir todo dia o gerente da conta dos aposentados, que tem um discurso parecido com o desse Bardo Sereno para relatar suas inesgotáveis proezas e capacidades. É o doutor Pacheco, um velhinho que fala rumeno sem sotaque, conhece armas e brasões, é PHD em geografia política, foi campeão de tênis, derrotou o Petrossian com xeque-mate de cavalo e sobreviveu 40 dias no deserto. Ah, antes que me esqueça, protagonizou o Cyrano de Bergerac, namorou a Pier Angeli e deu aulas particulares para o Norberto Bobbio.
Solilóquio, so - li - ló - quio...
(fim)

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

A PENSÃO DOS NAUFRAGADOS (1/1)

BEATI MONOCULI

É divertido vê-los chegar, muito humildes, como o Araújo, que ontem aqui aportou de mala quase vazia, trazendo nas mãos um espelho, um cavaquinho e dois cabides de arame.

- Quanto custa o quarto mais barato?

A pensão

Depois, integrados, desinibem-se e esparramam-se pensão afora, com seus malogros e ambições, grandes defeitos e poucas qualidades. São, como eu, perdedores, vultos, apenas vultos, e, deles, o pouco que sei considero demasiado.

Caminhadas suspeitas

Nenhuma importância há de haver no guarda-livros que estuda canto, na esperança de representar o Othelo; na Ivonete, que era caixa de farmácia no Largo da Segunda-Feira e agora, mesmo desempregada, usa perfumes caros e só traja vestidos importados, nas suas caminhadas suspeitas pela Conde de Bonfim; no Sargento Castro de Paula, cujo sonho é servir na Bósnia, por alguns dólares da ONU, e na sua mulher, dona Eulália, a portuguesa branquicela que tudo tempera com azeite de oliva, até a sobremesa; no Sebastião Valadares, que ateou fogo no armazém vazio após esconder as mercadorias num depósito de Caxias e, em vez de receber a indenização reclamada à companhia de seguros, está a enfrentar um adverso processo judicial; no Zé Terra, um pernambucano enfezado que bate na mulher, a Jupira; e no Sorianito Gonzalez, que é mexicano e apanha da sua todas as noites.

Incêndio do inexistente

Reversão dialógica

Ah, sim, antes que me escape, Carlos Arruda de Proença é dos hóspedes o mais extravagante, com sua mania de usar expressões complicadas, das quais não me esqueço de "mateologia holística", "reversão dialógica" e "tmeses ataviadoras". Ele se recusa a esclarecê-las, mesmo não sendo entendido por ninguém.

- Louçanias, senhores, meras louçanias de linguagem. Não existem para ser explicadas, nem me cabe nenhuma obrigação de dar milho aos pombos.

Outro dia, quando se conversava no jantar sobre decisões políticas controvertidas, deixou escapar alguma coisa em latim, "beati monoculi in regione caecorum", provocando reações irônicas do Zé Terra e de dona Eulália.

- Na minha terra quem fala bonito é o prefeito.

- Em Portugal a lei da vida é muito outra, pois escreveu, não leu, o pau comeu. Lá o pau come solenemente!

- Vocês são estupefativos, rebateu o Proença.

- O quê?

- Gente de visão plúmbea, ímproba e mitigada.

E não é só

Pois há também na pensão um Licurgo dos Santos Reis, alfaiate de roupas militares, que às vezes inicia suas refeições com rezas assim:

Profanaste os vasos santos
Nas torpezas de um festim.
Teus dias estão contados
Como os da bela Seboim.
Não sabias, cão danado,
Que tenho o corpo fechado?
Tu fizeste e pagarás,
Vade retro, Satanás.

Rezas ou pragas, nem sei direito.

Praga

No mês passado apareceu aqui o Abdmelaus Karuche de Alicante, conhecido como Abdias, um estudante profissional que se gaba de sempre conseguir generosas bolsas de estudo, de acordo com trâmites que conhece com exclusividade. Polpudas e sumarentas bolsas, garante ele, que as acumula, a todas, na maior desfaçatez. Estudou engenharia, literatura e geografia, mas seu interesse atual está na filosofia, que orgulhosamente chama de a ciência de Platão.
Justiça seja feita, esse Abdias realmente estuda, e estuda muito, adquirindo informações a serviço de coisa nenhuma, a fundo perdido, pois disse repetidas vezes que não trabalhará jamais.

Assassinou o sono
Ts´ai Lun

Sentado em meu canto, na maior parte do tempo desligo-me desse ambiente, que em certas ocasiões se torna inóspito e agressivo. Eles falam da ONU, das companhias de seguros, de Othelo, das mulheres que gostam de apanhar, do azeite de oliva, das bolsas de estudo e das louçanias de linguagem, e eu, fingindo que os ouço, viajo infinito afora, imaginando por que Einstein assumiu-se com a velocidade da luz para estabelecer as bases da teoria da relatividade, se é verdade que o eunuco chinês Ts´ai Lun inventou o papel ou como Machbeth, o nobre escocês que assassinou o sono, houve de morrer pelas mãos daquele que não nasceu de mulher, quando as florestas se puseram a caminhar.
(Fim)

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

A DESCOBERTA DO FÓSFORO

Mais que ouro


Hennig Brand

A descoberta do fósforo foi uma façanha do alquimista alemão Hennig Brand (1630-1710), graças à sua tentativa de produzir ouro a partir da urina. Em 1669 Brand reuniu 50 galões de urina no porão de sua casa e adicionou-lhes produtos químicos que foi escolhendo arbitrariamente. A pasta resultante foi submetida a um processo de destilação, cujos vapores deveriam transformar-se em ouro quando resfriados em água.
O que obteve, porém, foi uma substância que brilhava na escuridão. Em vez de chegar ao ouro, descobriu o fósforo. Pois, com as adições de Hennig Brand, a urina, um fosfato sódico de amônia, foi transformada num fosfito sódico, que, levado à ebulição, decompôs-se de maneira a liberar o fósforo.
Um c
aso típico de serendipidade.



Logo se percebeu a importância comercial dessa descoberta.
P
elo caminho percorrido por Hennig Brand, eram necessários 50 litros de urina para obter um grama de fósforo, que era vendido por cerca de 30 dólares atuais por grama, valendo mais que o ouro.

Genialidade, azar e imprudência

O químico sueco Karl Scheele (1742-1786) d
escobriu em 1769 um processo semelhante à pasteurização que permitiu a produção de fósforo em larga escala e colocou a Suécia como líder mundial em produtos lumíníferos.

Karl Scheele

Scheele foi um gênio da química, tendo descoberto inúmeros elementos químicos, como o oxigênio, o nitrogênio, o bário, o cloro, o flúor, o manganês, o molibdêmio e o tungstênio, além de diversos compostos químicos, como o ácido nítrico, o glicerol, o ácido tânico e o cianeto de hidrogênio, este conhecido como ácido prússico.
Além da competência, outra particularidade de Scheele era a falta de sorte. Suas descobertas passaram despercebidas ou ocorreram paralelamente às de outros pesquisadores, que receberam todo o crédito por essas façanhas. Por exemplo: Scheele descobriu o oxigênio em 1772, mas quem recebeu o crédito foi Joseph Priestley
(1733-1804), que descobriu o oxigênio apenas em 1774. Outro caso foi o da descoberta do cloro, atribuída a Humphry Davy (1778-1829), que de fato o descobriu em 1810, mas Karl Scheele já o fizera 36 anos antes.
Scheele tinha o mau hábito de experimentar o sabor das substâncias que produzia no seu laboratório, como o mercúrio e o ácido clorídrico. Um hábito que lhe custou a vida, pois foi encontrado morto, por envenenamento, no dia 21 de maio de 1786.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

INÊS DE CASTRO

A RAINHA MORTA

O episódio de Inês de Castro ocorreu
em Coimbra, no século XIV. Consta que Dom Pedro, quando ainda príncipe herdeiro do trono de Portugal, casou-se secretamente com a dama espanhola Inês de Castro, após ficar viúvo de Constância de Aragão, falecida em 1345. O casal viveu seus amores no Paço de Santa Clara, às margens do rio Mondego, em Coimbra.

Afonso IV, o Rei Benigno, aconselhado por cortesãos que temiam uma influência espanhola sobre o trono de Portugal, decretou a morte de Inês, em 1355, aproveitando-se do fato de que seu filho Pedro estava ausente, ou lutando pelo Reino de Castilha, segundo uns, ou numa estação de caça, segundo outros.
Três cortesãos, Pero Coelho, Diego Lopes Pacheco e Álvaro Gonçalves, foram encarregados de executar a pobre dama, missão que teriam cumprido com requintes de crueldade, degolando Inês sem nenhuma piedade. Segundo a tradição popular o sangue de Inês ficou gravado numa rocha e nela permanecerá para sempre.

Rei Cruel

Desvairado com o ocorrido, Dom Pedro insurgiu-se contra o pai, derrotou-o, corou-se rei de Portugal e perseguiu os carrascos de Inês, torturando dois deles até a morte, Pero Coelho e Álvaro Gonçalves. Por tal motivo passou à história com os epítetos de Rei Justiceiro e Rei Cruel. Reza uma das versões que em 1361 Dom Pedro mandou exumar o cadáver de Inês, coroando-a rainha depois de morta. Os restos mortais de Pedro e Inês estão em túmulos suntuosos no Mosteiro de Alcobaça, cidade que fica a 109 quilômetros de Lisboa.

Mosteiro de Alcobaça

Inês nos Lusíadas

Inês de Castro é o tema das estrofes de 118 a 135 do Canto III dos Lusíadas, reproduzindo a história de Portugal como narrada por Vasco da Gama ao rei de Melinde (uma cidade que hoje pertence ao Quênia, na costa do Índico). Abaixo, duas estrofes de Camões alusivas ao episódio:

Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruto,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus formosos olhos nunca enxuto,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.


Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito,
Se de humano é matar uma donzela
Fraca e sem força, só por ter sujeito
O coração a quem soube vencê-la,
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois te não move a culpa que não tinha.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

BINÔMIO DE NEWTON (parte3/3)

Nhambiquaras

Outro dia, ao cruzar a Cinelândia, reencontrei Ramiro, o gênio capaz de uma Capela Sistina ou de uma Teoria da Relatividade.
Não mudara quase nada, aquela cara trigonométrica e proparoxítona. Engenheiro suma cum laudae da turma de 1966, adquirira grande experiência construindo túneis e viadutos e trabalhou, depois, na construção da... ponte Rio-Niterói. Bingo! Eu, lá atrás, entendia alguma coisa de futuro...

- Diga-me, indaguei, você usou os conhecimentos do professor Kakaze, os 1.512.000 agrupamentos, o cálculo das probabilidades e a distribuição de Gauss?

- Não, nada disso foi necessário.

A obra havia dispensado a parte mateológica da sua inexcedível competência. Usara apenas ferragem, cimento, brita um, brita dois, brita três, tabelas, ábacos, thumb rules...


- O quê?

- Thumb rules.


- Pombas!
Regras Práticas ou "Chutes" Educados

Terminada a ponte, Ramiro engajou-se no desenvolvimento de campos de petróleo nas costas britânicas do Mar do Norte. Assentamento de plataformas e construção de sistemas flutuantes de produção, projetos que se justificam quando os preços do petróleo estão elevados, como agora.

- Está de férias?, perguntei-lhe, já em tom de despedida.

- Não, voltei de vez. Estou desempregado, mas decidido a conseguir uma ocupação sem grandes tardanças. Concorri ao cargo de engenheiro de manutenção numa fábrica de computadores em Maria da Graça, mas fui recusado no teste. Não soube responder o nome que se dá à unidade de elastância.

- É daraf, comentei. O daraf é o inverso do farad, que, por sua vez, é a unidade prática de capacitância.

- Estou, porém, na iminência de conseguir um emprego de oito salários mínimos, mais sobreaviso e periculosidade, numa hidrelétrica no norte de Mato Grosso, junto da reserva indígena dos nhambiquaras. Uma passagem de avião por ano, ida e volta, para visitar o Rio de Janeiro. Vou usar toda a minha experiência na construção de barragens, sem nenhuma agressão ao meio ambiente ou ao
s processos ecológicos essenciais.

nhambiquaras

Profissionais de mercado

Não consigo imaginar o Ramiro senão brilhando, o giz em riste, sob os aplausos entusiasmados do professor Kakaze.
Mas essa questão dos nhambiquaras me desconcertou, desestabilizando as minhas memórias. Dos quais, nhambiquaras, sei apenas que gostam de aaru, que é um bolo no qual se misturam carne de tatu e farinha de mandioca.

- Meu caro pitecantropo, o binômio de Newton é até citado nas poesias do Fernando Pessoa.

Será que o Ramiro brilhava mesmo ou não passava de uma das minhas fantasias? Raiz de dois e raiz de três, isso existe de fato na teoria dos logaritmos? O professor Kakaze citou realmente o Fernando Pessoa?
Veio então a idéia. É verdade que eu nunca dera importância à poesia e conhecia, se tanto, o Mal Secreto e alguns trechos bem condoreiros do Navio Negreiro. Seja como for, fui à livraria e comprei as obras completas de Fernando Pessoa, o poeta que, em sonhos, sonhos criou. Logo na introdução, fiquei sabendo que foi um homem do comércio, autor de textos para dirigentes de empresas, publicados na Revista de Comércio e Contabilidade, de Lisboa, e de uma vasta Teoria e Prática do Comércio.

- Um profissional de mercado, exatamente como eu!


Li toda obra e encontrei o poema em Álvaro de Campos:



“O Binômio de Newton é tão belo como a Vênus de Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso.
óóóó óóóóóó óó óóóóóóó óóóóóóó (O vento lá fora.)”


Players e observadores

Um exemplo de player: Vittorio Gassman, o homem que desfrutou o doce arroz amargo... Outros players: Costa e Silva, Rembrandt e Ramiro. Eles entendem de álgebras e metáforas e movem a história, para o bem ou para o mal, êxito ou infortúnio. Tentei ser player também, mas não passei de observador. Resta-me o consolo de que, sem observadores, este universo não faria nenhum sentido.

(Fim)

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

BINÔMIO DE NEWTON (parte 2/3)

Maná

Qualquer pessoa normal entende a lógica da contabilidade, pois o grande Luca Paciolo, criador das partidas dobradas, era um homem positivamente menos complicado do que o professor Kakaze. A terminologia é simples e direta. Não se cogita de logaritmo, nem de derivada, mas do ativo disponível. O passivo circulante ocupa o lugar das equações trigonométricas e das integrais indefinidas, e não há espaço para inequações de nenhuma natureza, sendo certo, com justa razão, que os dois pratos da balança deverão permanecer em rigorosa paridade. Basta ter um pouco de organização, para não misturar informações, e de paciência, para consultar tabelas, como quem vai ao dicionário. Ah, vale também um pouco de bom senso, para nunca somar o que deve ser subtraído, cometendo nessa inversão um erro multiplicado por dois.
Logo percebi que a atividade estava a meu alcance e, incapaz de viver das palavras cruzadas, decidi trabalhar como contador. Botei banca de guarda-livros, apenas ciente dos prolegômenos contábeis, e nesse mister, entre borradores e diários, muito me valeu o aforismo de Sparafucile de Pococô:

- O dinheiro é bolsípeto, pois, se sair de um bolso, entra necessariamente em outro bolso.

No início faturava pouco, cobrando um salário mínimo por cliente. Depois, perdida a inocência, passei a impor honorários cada vez mais elevados, certo de que os clientes não teriam como opor resistência. Impor o preço, na cartilha dos bem-sucedidos, implica um decisivo salto de qualidade...


Bolsa de Valores do Rio de Janeiro

Por fim, entrei para a classe dos milionários de gabinete, quando gloriosamente me pus a especular na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, à sombra da Comissão de Valores Mobiliários, estimulado pela Fazenda, aplaudido, e muito, pelo Planejamento e conven
ientemente documentado pela Associação Nacional dos Analistas dos Mercados de Capitais. Ah, nunca me esqueça de dizer que naquela época tudo o que se amealhava nesse mercado gozava de isenção do imposto de renda. Um incentivo providencial, muito justo e conveniente...
Minha técnica era a de adquirir barato, e a termo, na adinamia do mercado, e enfiar caro, e à vista, nas fases de euforia. Em outras palavras, comprar quando todos queriam vender e vender quando decidiam voltar às compras - a ambição de violar princípios termodinâmicos e criar o moto contínuo de primeira espécie. Quem não se lembra de 1971, quando as pessoas trocavam suas casas por ações? O Plano Cruzado, esquecer quem há de?

- Eu, na outra ponta, vendia ações a mancheias...

Se é verdade que se pode perder muito (ou, o que dá no mesmo, ganhar milhões num dia e vê-los desaparecer no dia seguinte), o esperto geralmente se dá bem, muito bem, pois a Bolsa, convenientemente utilizada, pode ensejar um retorno muito superior ao esforço despendido. Um jogo desproporcional, desequilibrado, a favor dos... equipados. Engana-se o cruzadista que conservar, cá fora do diagrama, a impressão de que maná é apenas o alimento que Deus mandou em forma de chuva para socorro dos israelitas no deserto...
Assim foi. Consumado o êxito das minhas especulações, desapareci completamente dos pregões, pois especular é atividade de gente pobre. Ou melhor, de gente ainda pobre.

Comprei um apartamento de três andares, mais cobertura, na Avenida Vieira Souto, uma ilha em Cabo Frio e uma centena de salas nos melhores edifícios da Avenida Rio Branco. Passei a acionista majoritário de algumas empresas sólidas e rentáveis, engajadas em negócios de fertilizantes, bebidas e metalurgia, que meus prepostos administram com redobrado zelo e eficiência, na pressuposição e temor de que posso demiti-los a qualquer momento.

Arroz doce


Do meu escritório, de frente para o pôster de Silvana Mangano, molhada de 18 anos, contemplo com nostalgia a obra de 13 quilômetros à qual não tive acesso, eis o meu fracasso mais retumbante. Não me despojarei, porém, do mérito de tê-las antevisto, tamanhas, nas minhas premonições de adolescente...
(continua)

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

BINÔMIO DE NEWTON (parte 1/3)

A ponte

Hoje tenho por melhor exercício divagar sobre acontecimentos afastados no tempo, pois o passado é a minha matéria. Mais ou menos na linha do doutor Pedro Nava, para quem o futuro
é somente uma expectativa da nossa experiência, sujeita a todos os riscos, e o presente não tem dimensão, sendo apenas este ponto da trajetória, que já passou, nem sei se você percebeu.

- Só o passado existe como realidade objetiva.

Eu era obrigado a seguir para Araruama nos fins de semana, pois na minha família criança não tinha voz, nem vez. Eram horas intermináveis na fila das barcas, até chegar o momento de embarcar o carro e transpor a baía. Imaginei a ponte imensa e, dos seus numerosos profetas, fui dos poucos que tiveram a ambição de construí-la.

Curso preparatório

Do pensamento à ação, cheguei a freqüentar um curso preparatório para o vestibular de engenharia, no longínquo ano de 1960. Meus planos esbarraram, porém, nos obstáculos que o professor Kakaze ia depondo à minha frente. Lembro-me muito bem da satisfação que lhe proporcionavam os seus teoremas e dos problemas que costumava propor, a todo instante, para testar os conhecimentos daquela turma de principiantes. Que só faziam revelar a minha inaptidão e aumentar a minha angústia. Pobre de mim!

Dia importante, nessa fase de ensaio e muito erro, foi o da questão que se colocou para sempre no epicentro das minhas frustrações:

- Utilizando dez consoantes e cinco vogais, quantos agrupamentos de quatro consoantes e duas vogais distintas podem ser formados?

Tremi, perplexo, sem saber como enfrentar o desafio. O Ramiro, lá na primeira fila, levantou-se rapidamente com o resultado:


- 1.512.000 agrupamentos.


Não me contive:

- Então, professor, isso é necessário?

- Certamente, meu caro pitecantropo. Passaremos da análise combinatória ao binômio de Newton, que, de tão importante, é citado até nas poesias do Fernando Pessoa. Depois estudaremos o cálculo das probabilidades e a distribuição de Gauss. A qual há de ser sempre
campanular, você sabia? Sem a distribuição de Gauss não se enriquece o urânio, não se gera, não se transmite e não se distribui eletricidade, não se constroem as grandes estruturas, como o Maracanã, nem os canhões necessários à segurança nacional.

- Nem a ponte Rio-Niterói?

-Nem a ponte Rio-Niterói, ora se!


Voltei para casa cheio de desalento. Sem a distribuição de Gauss, não havia nenhuma salvação. Além disso, 1.512.000 agrupamentos!
Algumas semanas ainda insisti, impotente e desamparado, na luta desigual com integrais e polinômios. O desenlace entre mim e a engenharia, cada vez mais inevitável, consumou-se no dia 8 de junho de 1960, quando o Kakaze indagou pelo logaritmo, na base raiz de dois, do logaritmo de 81, na base raiz de três. Um pesadelo dentro do pesadelo. Enquanto o Ramiro dava, lá na frente, o seu espetáculo de competência, escapuli sorrateiramente e, desatinado como um ícaro que percebe a ruína das suas ambições impossíveis, abandonei a engenharia, em caráter irrevogável e irretratável. Não obstante a ponte Rio-Niterói.

Gênios

Cervantes escreveu o “Dom Quixote”, Rembrandt pintou a “Ronda Noturna”, e Einstein, mesmo assoberbado na seção de patentes de Berna, explicou o movimento browniano, entendeu a natureza dual da luz, a um só tempo partícula e onda, e formulou a desconcertante Teoria da Relatividade.

Ronda Noturna

Com certeza se dirá que foram gênios, e eu, óbvio que seja, muito modestamente acrescento: pessoas dotadas de extraordinária aptidão e avassaladora força de vontade.
Exatamente assim eu via o Ramiro, a quem estava reservado o privilégio das grandes edificações, incluindo, quem sabe, a ponte Rio-Niterói. Cervantes, Rembrandt e Einstein, lá atrás, gênios indisputáveis. Ramiro, cá na frente, na condição de expectativa da minha experiência, era um gênio em plena e decidida elaboração.
Eu, que não sou gênio por falta de talento e até mesmo por falta de vontade, estou sempre resolvendo problemas de palavras cruzadas. Não sei explicar por quê. Imagino que a atividade esteja relacionada com a solidão, tratando-se de empreendimento que não carece de parceiros, nem de testemunhas. Quando depôs sobre os anos de chumbo, Ernesto Geisel atribuiu ao general Costa e Silva o apego excessivo às palavras cruzadas. Posso imaginar o general, entre um e outro ato institucional, fazendo a invocação mística dos hindus com a luz que emana da ponta dos dedos e colocando o demônio tibetano no inferno dos malês antes da antepenúltima hora canônica. Indizível solidão...
(continua)

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

GRAVITAÇÃO UNIVERSAL

Fomos rebatidos para a periferia

Para Aristóteles a Terra era o centro do Universo e lugar natural de todas as coisas, uma concepção que deu origem ao chamado sistema geocêntrico, de Ptolomeu: o homem, privilegiado por Deus, estava no centro e tudo girava a seu redor. A Igreja assumiu essa idéia, e quem discordasse poderia ser castigado, como aconteceu com Giordano Bruno, lançado à fogueira em 1600. Veio depois a teoria heliocêntrica de Copérnico, e a Terra foi rebatida para a periferia do Universo, a girar em torno do Sol, que é uma de mais de cem bilhões de estrelas da Via Láctea, que, por sua vez, é uma de mais de cem bilhões de galáxias, dentro de um Universo criado numa explosão que ocorreu há 15 bilhões de anos, a evoluir em permanente e decidida expansão.

Gravitação e relatividade

Com essa concepção de que a Terra não era um ponto fixo no centro do Universo, tornou-se necessária uma revisão das leis relacionadas com o movimento dos corpos, o que levou ao conceito de gravitação universal. A lei da gravitação universal é a mais conhecida das leis físicas, tendo sido formulada por Isaac Newton a partir dos estudos sobre inércia feitos por Galileu e das leis planetárias de Kepler, válida não somente para a Terra e o Sistema Solar, como para todo o Universo e seus trilhões de estrelas:

Tudo se passa como se matéria atraísse matéria, na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias.

A lei da gravitação caracteriza um modelo recorrente da Natureza, bastando ver na Eletrostática que, pela lei de Coulomb, a força entre dois objetos carregados eletricamente está na razão direta de suas cargas e, igualmente, na razão inversa do quadrado das distâncias.

- E o que diz a teoria da relatividade geral?

- A relatividade geral postula que, em verdade, matéria não “atrai” matéria. O que a matéria faz é deformar o espaço, que, assim deformado, determina o caminho a ser perseguido pela matéria. Tanto que um raio de luz é atraído pelo Sol, bastando afirmar que uma estrela cuja luz tangencia o Sol, durante os seus eclipses, parece estar deslocada do lugar onde é vista nas suas condições habituais.

- Como fica a lei da gravitação universal, de Newton, em face da teoria da relatividade?

- Continua válida, com a restrição de que não se pode dizer que matéria "atrai" matéria. E sim que matéria "parece atrair" matéria, o que se explica pela deformação que provoca no espaço.


sexta-feira, 14 de setembro de 2007

A METÁFORA DO JOGO DE XADREZ

ENTENDENDO A NATUREZA

Thomas Henry Huxley, médico e cientista inglês, chamado de "Buldogue de Darwin", e Richard Feynman, que muitos consideram o maior físico da história dos Estados Unidos, usaram o jogo de xadrez como imagem da realidade natural. É que não temos outro recurso senão o de jogar o jogo antes de entendê-lo, o que significa errar muitas vezes antes de acertar.

Thomas Henry Huxley (1825-1895)

Charles Darwin formulou a Teoria da Evolução
entre 1836 e 1858: as espécies evoluem mediante processos naturais, a partir de algumas poucas formas primitivas simples, quem sabe a partir de uma única forma. Quando suas idéias se tornaram conhecidas, foram combatidas pelos religiosos vitorianos, gerando uma controvérsia que culminou com um debate, diante de um público de 800 pessoas, na Universidade de Oxford, em 30 de junho de 1860.
Nesse debate, os ortodoxos foram representados pelo Rev
erendo Samuel Wilberforce, Bispo de Oxford, e Charles Darwin, por Thomas Huxley.


Huxley

"O tabuleiro de xadrez é o mundo, as peças são os fenômenos do Universo, as regras do jogo são o que convencionamos chamar de as leis da Natureza. O jogador do outro lado está oculto para nós. Sabemos que seu jogo é sempre limpo, justo e paciente. Mas também sabemos, pela nossa experiência, que ele nunca perdoa um erro, nem faz a menor concessão à ignorância."

("A Liberal Education", 1868)


Richard Feynman (1918-1988)

Richard Fe
ynman, recebedor do Prêmio Nobel de Física de 1965, notabilizou-se por ter criado a Eletrodinâmica Quântica e por trabalhos importantes sobre interações fracas, trabalhos sobre interações fortes e trabalhos sobre a superfluidez do hélio líquido. Exímio professor, foi o criador do "diagrama de Feynman".
Passou uma temporada no Brasil, onde, tocando tamborim com maestria
no bloco carnavalesco Inocentes de Copacabana, foi campeão do carnaval em 1952.


Richard Feynman

"Podemos imaginar que esse arranjo de coisas móveis que constitui o mundo seja algo como uma grande partida de xadrez jogada pelos deuses, e nós somos os observadores do jogo. Não conhecemos as regras, e tudo que podemos fazer é observá-lo. É claro que, se insistirmos na observação, acabaremos captando algumas das regras, e estas formam a física fundamental. Quando conhecermos todas as regras, estaremos "entendendo" o mundo."

("Feynman Lectures on Physics", 1963)

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

LUDWIG BOLTZMANN (1844-1906)

Outra equação no túmulo

Até o início do século XX os físicos dividiam-se em mecanicistas, que acreditavam ser possível explicar os fenômenos pelos movimentos dos átomos e moléculas, impondo à natureza um comportamento estatístico, e os energistas, que defendiam serem os fenômenos uma conseqüência das trocas de energia.


- Não existe esse negócio de átomos, diziam os energistas.

Ludwig Boltzmann, que foi professor das universidades de Graz, Viena, Munique e Leipzig, tornou-se o mais ativo mecanicista, insistindo em explicar os fenômenos macroscópicos (pressão, temperatura etc) pelas interações entre átomos e moléculas, no seu constante movimento.
A maioria dos físicos, até mesmo Ernest Mach e Wilhelm Ostwald, que eram seus colegas de universidade, rejeitavam essa concepção, sem querer aceitar a existência real dos átomos e moléculas. Ernest Mach escreveu:


- Os átomos
são objetos do pensamento, que não podem ser percebidos pelos sentidos.

Boltzmann manteve uma interminável disputa com o editor da publicação científica mais importante da Alemanha, que não admitia nos textos a serem publicados a consideração de átomos e moléculas como entidades reais, senão como constructos mentais.
Teve, porém, o apoio de Maxwell, na Escócia, e de Gibbs, nos Estados Unidos, e de grande parte dos químicos, que a esta altura já estavam cientes da teoria atômica de John Dalton.

Suicídio

Em 1906, quando passava férias na Baía de Druino, perto de Trieste, Boltzmann se enforcou. Não se sabe se as acirradas disputas científicas que ainda o acompanhavam pesaram para esse trágico desfecho, sendo certo, porém, que Boltzmann tinha uma natureza muito depressiva.


No túmulo



Boltzmann definiu a entropia de forma geral e inequívoca em termos mecânicos, a partir da teoria cinética dos gases. As equações correspondentes são muito complicadas, mas a teoria de Boltzmann foi aceita pouco depois de sua morte, quando medidas de J. Perrin, em 1908, mostraram a insofismável existência e o movimento dos átomos e moléculas. No túmulo de Boltzmann, no Cemitério Central de Viena, encontra-se gravada a equação correspondente às suas idéias:

S = k log W