quarta-feira, 14 de novembro de 2007

BINÔMIO DE NEWTON (parte 1/3)

A ponte

Hoje tenho por melhor exercício divagar sobre acontecimentos afastados no tempo, pois o passado é a minha matéria. Mais ou menos na linha do doutor Pedro Nava, para quem o futuro
é somente uma expectativa da nossa experiência, sujeita a todos os riscos, e o presente não tem dimensão, sendo apenas este ponto da trajetória, que já passou, nem sei se você percebeu.

- Só o passado existe como realidade objetiva.

Eu era obrigado a seguir para Araruama nos fins de semana, pois na minha família criança não tinha voz, nem vez. Eram horas intermináveis na fila das barcas, até chegar o momento de embarcar o carro e transpor a baía. Imaginei a ponte imensa e, dos seus numerosos profetas, fui dos poucos que tiveram a ambição de construí-la.

Curso preparatório

Do pensamento à ação, cheguei a freqüentar um curso preparatório para o vestibular de engenharia, no longínquo ano de 1960. Meus planos esbarraram, porém, nos obstáculos que o professor Kakaze ia depondo à minha frente. Lembro-me muito bem da satisfação que lhe proporcionavam os seus teoremas e dos problemas que costumava propor, a todo instante, para testar os conhecimentos daquela turma de principiantes. Que só faziam revelar a minha inaptidão e aumentar a minha angústia. Pobre de mim!

Dia importante, nessa fase de ensaio e muito erro, foi o da questão que se colocou para sempre no epicentro das minhas frustrações:

- Utilizando dez consoantes e cinco vogais, quantos agrupamentos de quatro consoantes e duas vogais distintas podem ser formados?

Tremi, perplexo, sem saber como enfrentar o desafio. O Ramiro, lá na primeira fila, levantou-se rapidamente com o resultado:


- 1.512.000 agrupamentos.


Não me contive:

- Então, professor, isso é necessário?

- Certamente, meu caro pitecantropo. Passaremos da análise combinatória ao binômio de Newton, que, de tão importante, é citado até nas poesias do Fernando Pessoa. Depois estudaremos o cálculo das probabilidades e a distribuição de Gauss. A qual há de ser sempre
campanular, você sabia? Sem a distribuição de Gauss não se enriquece o urânio, não se gera, não se transmite e não se distribui eletricidade, não se constroem as grandes estruturas, como o Maracanã, nem os canhões necessários à segurança nacional.

- Nem a ponte Rio-Niterói?

-Nem a ponte Rio-Niterói, ora se!


Voltei para casa cheio de desalento. Sem a distribuição de Gauss, não havia nenhuma salvação. Além disso, 1.512.000 agrupamentos!
Algumas semanas ainda insisti, impotente e desamparado, na luta desigual com integrais e polinômios. O desenlace entre mim e a engenharia, cada vez mais inevitável, consumou-se no dia 8 de junho de 1960, quando o Kakaze indagou pelo logaritmo, na base raiz de dois, do logaritmo de 81, na base raiz de três. Um pesadelo dentro do pesadelo. Enquanto o Ramiro dava, lá na frente, o seu espetáculo de competência, escapuli sorrateiramente e, desatinado como um ícaro que percebe a ruína das suas ambições impossíveis, abandonei a engenharia, em caráter irrevogável e irretratável. Não obstante a ponte Rio-Niterói.

Gênios

Cervantes escreveu o “Dom Quixote”, Rembrandt pintou a “Ronda Noturna”, e Einstein, mesmo assoberbado na seção de patentes de Berna, explicou o movimento browniano, entendeu a natureza dual da luz, a um só tempo partícula e onda, e formulou a desconcertante Teoria da Relatividade.

Ronda Noturna

Com certeza se dirá que foram gênios, e eu, óbvio que seja, muito modestamente acrescento: pessoas dotadas de extraordinária aptidão e avassaladora força de vontade.
Exatamente assim eu via o Ramiro, a quem estava reservado o privilégio das grandes edificações, incluindo, quem sabe, a ponte Rio-Niterói. Cervantes, Rembrandt e Einstein, lá atrás, gênios indisputáveis. Ramiro, cá na frente, na condição de expectativa da minha experiência, era um gênio em plena e decidida elaboração.
Eu, que não sou gênio por falta de talento e até mesmo por falta de vontade, estou sempre resolvendo problemas de palavras cruzadas. Não sei explicar por quê. Imagino que a atividade esteja relacionada com a solidão, tratando-se de empreendimento que não carece de parceiros, nem de testemunhas. Quando depôs sobre os anos de chumbo, Ernesto Geisel atribuiu ao general Costa e Silva o apego excessivo às palavras cruzadas. Posso imaginar o general, entre um e outro ato institucional, fazendo a invocação mística dos hindus com a luz que emana da ponta dos dedos e colocando o demônio tibetano no inferno dos malês antes da antepenúltima hora canônica. Indizível solidão...
(continua)

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