Hebdomadário, sim, senhor!
As pessoas não têm por que me incomodar, e seu desinteresse por mim só não é maior que a tranquilidade que me advém desse fato. Sozinho, num quarto do segundo andar, privilégio que me custa por mês o adicional de duzentos reais, alterno-me entre obras literárias e física. Ou me ponho a resolver problemas de palavras cruzadas, pois o homem só, quando não está com vontade de ler, nem de estudar, pode desperdiçar seu tempo procurando pela mulher que tasca o linho, pela epidemia que grassou em Paris no ano da graça de 1441, pelo deus do fogo, entre os celtas, pela abertura na carlinga por onde passa o mastro do navio, pela segunda produção de cana, depois de cortada a primeira, pelo maior afluente do volga, ou pela cerveja inglesa fabricada com malte pouco torrado. Achar a palavra salvadora, a que não descruza e se conforma no diagrama, é modesta e solitária vitória, sem direito a aplauso nem recompensa, é verdade, mas não recebo nenhuma censura, nem vaias, nos meus fracassos cruzadísticos, tão vastos e numerosos.
Bancário
Amigos não tenho, tampouco assunto, guarda-chuva ou retrospecto, e ninguém ouviu história de minha boca, nem curta, nem comprida. Sou escasso, por assim dizer, e não é sem razão que poucos hão de saber que sou bancário e, portanto, um cidadão modestamente remunerado. Gostaria de ter sido algo melhor, até tentei, mas o que me tocou foi exatamente caixa de banco, e isso há de me bastar. Não tenho, e até desconheço quais sejam, as relevantes qualidades que justificam os saldos milionários e as exuberantes mulheres dos homens que não são, como eu, desnecessários.
Se tivesse uma oportunidade de recomeçar, tentaria a carreira de professor, quem sabe de literatura ou, principalmente, de física. Eu me imagino na sala de aula demonstrando de maneira competente que, em face dos princípios da termodinâmica e das irreversibilidades envolvidas nas trocas de calor entre corpos quentes e corpos frios, o crescimento da entropia será a causa da morte do universo, daqui a alguns bilhões de anos. Dar essa aula é a minha fantasia colorida, de realização improvável, claro, muito claro, mas nem por isso menos colorida.
Concurso
Uma saída para mim seria passar em algum concurso. Infelizmente, porém, não passa em concurso um homem como eu, só e desnecessário. Não que os concursos sejam fraudados, isso não. É que para se dar bem em concurso é necessário que o homem não seja só, nem desnecessário. Reconheço a contundente circularidade do que acabo de afirmar, necessário não ser desnecessário, mas a circularidade pode ser inevitável, como a do matemático que estabelece o conceito de probabilidade tomando por base os casos prováveis que reconhece no âmbito de todos os casos possíveis e igualmente prováveis, ou seja, define probabilidade em função da... probabilidade.
Dissipando mal-entendidos
Mas há o lado bom de ser desnecessário, bastando dizer que não tenho de dar espinafrada, nem gorjeta, nem mole, nem bandeira, nem uma de inteligente, nem bons-dias ou cotoveladas.
O homem desnecessário chama-se, por exemplo, Hebdomadário de Oliveira, que é esse o meu nome, exatamente esse. Sou, nesse particular, um homem comprovadamente só, por absoluta fata de outro Hebdomadário.
Trago a certidão de nascimento sempre comigo, para aquelas pessoas que não acreditam que alguém possa ser, dos Oliveiras, o Hebdomadário. Sempre que requerido, essa certidão dissipa o mal-entendido de forma competente e definitiva. Hebdomadário de Oliveira, sim, senhor, veja aqui, nascido em Barro Verde, no dia 3 de janeiro de 1969.
(Do livro “O Homem Horizontal”)
quarta-feira, 28 de setembro de 2011
sábado, 24 de setembro de 2011
O NOVO DEQUINHA (parte 5/5)
Epílogo
Abraham Lincoln, que de lenhador chegou a presidente dos Estados Unidos, disse certa vez que há sempre um lugar disponível no topo. A Bíblia, que fala mais alto, afirma, porém, que, dos muitos requisitados, poucos serão os escolhidos.
Veio, com efeito, o 15 de dezembro.
Desde cedo na Gávea, os rapazes estavam apreensivos, mas cheios de esperança. Após tantos meses de sacrifícios, tudo ficaria definido: o começo da glória ou o fim das ilusões. O primeiro a ser chamado foi o Juan, que entrou na sala do treinador e voltou logo depois, na maior alegria. Na sequência, Fabiano, Pirita, Aluísio e Serginho.
Segundo o Carijó, Dedeu foi avisado pelo auxiliar técnico:
- Sua entrevista será com a psicóloga, doutora Emengarda, não com o treinador.
Soube então que não seria aproveitado, pois o Flamengo decidira contratar na Bahia um lateral que despontava como um dos grandes nomes da nova geração de jogadores. Que ele dissesse que deixava o Flamengo por razões pessoais. E não se abatesse: havia muitas profissões dignas, e nem todos podiam ser jogadores de futebol. Djavan tentou ser jogador, hoje é cantor e compositor de renome internacional. Júlio Iglésias, Paulo César Sarraceni, Miele, o prefeito César Maia. Aníbal Machado fez o primeiro gol do Atlético Mineiro, antes de escrever o genial conto "Viagem aos Seios de Duília". Um exemplo ainda melhor: Breno, o Breno Mello, não conseguiu jogar no Fluminense, mas foi o protagonista de "Orfeu do Carnaval", um filme de Marcel Camus, premiado em Cannes. Tancredo Neves chegou a Presidente!
- E tem mais. O Flamengo vai lhe dar um documento. Não uma carta de recomendação, que isso não é possível, mas um nada-consta, atestando que nenhum fato foi registrado no clube em desabono de sua conduta em dez meses de estágio no departamento de futebol. Não deixa de ser uma credencial, nestes tempos bicudos de prevaricação e desonestidade.
Nicanor
No dia seguinte os jornais anunciaram o acidente que vitimou o jovem Dedeu, que saíra da Gávea sem falar com ninguém, portando um nada-consta, no qual não constava nada.
Em nota oficial, o Flamengo lamentou a perda do jogador, que estava sendo cuidadosamente preparado para assumir a posição de lateral direito do time profissional. Na Serra do Mendanha, Nicanor, bêbado, sujo, caído na sarjeta, é agora um homem derrotado. Os embates da vida impediram-no de ser um novo Domingos da Guia, uma injustiça irreparável. Depois, injustiça maior, um ônibus tirou a vida do filho, o seu querido Dedeu, que no Flamengo todos consideravam tão bom quanto o Leandro.
Essa é a história do novo Dequinha. Falta acrescentar que Carijó, o maior amigo de Dedeu e por acaso sobrinho da doutora Emengarda, abriga a secreta convicção de que a morte do companheiro não foi acidental:
- Ele me disse várias vezes que não poderia continuar vivendo, se não fosse contratado pelo Flamengo.
(Fim)
Abraham Lincoln, que de lenhador chegou a presidente dos Estados Unidos, disse certa vez que há sempre um lugar disponível no topo. A Bíblia, que fala mais alto, afirma, porém, que, dos muitos requisitados, poucos serão os escolhidos.
Veio, com efeito, o 15 de dezembro.
Desde cedo na Gávea, os rapazes estavam apreensivos, mas cheios de esperança. Após tantos meses de sacrifícios, tudo ficaria definido: o começo da glória ou o fim das ilusões. O primeiro a ser chamado foi o Juan, que entrou na sala do treinador e voltou logo depois, na maior alegria. Na sequência, Fabiano, Pirita, Aluísio e Serginho.
Segundo o Carijó, Dedeu foi avisado pelo auxiliar técnico:
- Sua entrevista será com a psicóloga, doutora Emengarda, não com o treinador.
Soube então que não seria aproveitado, pois o Flamengo decidira contratar na Bahia um lateral que despontava como um dos grandes nomes da nova geração de jogadores. Que ele dissesse que deixava o Flamengo por razões pessoais. E não se abatesse: havia muitas profissões dignas, e nem todos podiam ser jogadores de futebol. Djavan tentou ser jogador, hoje é cantor e compositor de renome internacional. Júlio Iglésias, Paulo César Sarraceni, Miele, o prefeito César Maia. Aníbal Machado fez o primeiro gol do Atlético Mineiro, antes de escrever o genial conto "Viagem aos Seios de Duília". Um exemplo ainda melhor: Breno, o Breno Mello, não conseguiu jogar no Fluminense, mas foi o protagonista de "Orfeu do Carnaval", um filme de Marcel Camus, premiado em Cannes. Tancredo Neves chegou a Presidente!
- E tem mais. O Flamengo vai lhe dar um documento. Não uma carta de recomendação, que isso não é possível, mas um nada-consta, atestando que nenhum fato foi registrado no clube em desabono de sua conduta em dez meses de estágio no departamento de futebol. Não deixa de ser uma credencial, nestes tempos bicudos de prevaricação e desonestidade.
Nicanor
No dia seguinte os jornais anunciaram o acidente que vitimou o jovem Dedeu, que saíra da Gávea sem falar com ninguém, portando um nada-consta, no qual não constava nada.
Em nota oficial, o Flamengo lamentou a perda do jogador, que estava sendo cuidadosamente preparado para assumir a posição de lateral direito do time profissional. Na Serra do Mendanha, Nicanor, bêbado, sujo, caído na sarjeta, é agora um homem derrotado. Os embates da vida impediram-no de ser um novo Domingos da Guia, uma injustiça irreparável. Depois, injustiça maior, um ônibus tirou a vida do filho, o seu querido Dedeu, que no Flamengo todos consideravam tão bom quanto o Leandro.
Essa é a história do novo Dequinha. Falta acrescentar que Carijó, o maior amigo de Dedeu e por acaso sobrinho da doutora Emengarda, abriga a secreta convicção de que a morte do companheiro não foi acidental:
- Ele me disse várias vezes que não poderia continuar vivendo, se não fosse contratado pelo Flamengo.
(Fim)
quarta-feira, 21 de setembro de 2011
O NOVO DEQUINHA (parte 4/5)
UM ÍDOLO EM ELABORAÇÃO
Em casa, Nicanor não escondia sua impaciência. Queria uma definição, e positiva, sobre a situação do filho no Flamengo. Dedeu, temeroso, não tinha coragem de dar-lhe nenhuma esperança. Conhecia muito bem as idiossincrasias do pai, sua propensão tanto para o entusiasmo quanto, principalmente, para a decepção. Por isso o levava com muito cuidado.
Um dia, porém, Carijó apareceu na Serra do Mendanha e achou de inventar aquela mentira lamentável:
-Seu Nicanor, o professor Carlinhos elogiou muito o Dedeu. Acha que ele se parece muito com o Leandro.
Era de se ver a alegria do Nicanor, transbordando de satisfação, a antever o futuro glorioso do filho. A vizinhança logo soube da façanha. Era só esperar, e o veriam no Maracanã, marcando, apoiando, cruzando a bola certeira, venenosa, na cabeça do centro-avante, a quem só caberia testar a bola para dentro do gol.
- A fotografia nos jornais, o assédio dos torcedores, a Europa de olho no menino.
Afirmava para todos que Carlinhos era palavra garantida. Jogador de categoria, que era chamado de Violino, não botava a cabeça na bola para não despentear o cabelo. Ele a buscava com o pé, recolhendo-a lá no alto, pois era no gramado que a bola tinha de ser forçada a transitar. Carlinhos em campo, certeza de time organizado. Como técnico, então, nem se fala, pois deu dois campeonatos brasileiros ao Flamengo.
- Quer ser campeão? Basta contratar o Carlinhos. Pois esse Carlinhos, sim, esse é que entende de futebol.
Desde esse dia, todos, ali na Grota, passaram a considerar que Dedeu já era um jogador do Flamengo. Era apontado como um exemplo a ser seguido e chegou a ser citado pelo Padre Pestana num daqueles sermões cheios de parábolas e de samaritanos. Certa feita a tia do Gordurinha convidou-o para comer um bolo de limão, repartindo-o com Janira, sua filha mais nova:
- Fiz este bolo, o preferido dela, pensando em vocês dois.
Dedeu tinha bom controle de bola, agilidade, grande força de vontade e tudo fazia com rigorosa disciplina tática, pois não se sentia em condições de fracassar.
Viu progredir o Fabiano, o Juan, o Bruno e Carijó, à proporção que também progredia e ficava cada vez mais confiante. Uma vez fez num treino uma jogada espetacular, que todos elogiaram, até o Paulo César, que, pouco derramado, nunca se abria.
- Isso, garoto! Você está mostrando que conhece todas as mumunhas e prosopopéias.
Passou a achar que não seria degolado, e, sim, escolhido. Sonhar não custava nada, por que então não sonhar? Era só esperar a definição do elenco. Aos mais pobres, como ele, além de lanche, vale-transporte e assistência médica, o Flamengo proporcionava escola, ajuda de custo e alojamento no Morro da Viúva. Em certos casos, até alugava um apartamento para a família na Zona Sul, para evitar os grandes deslocamentos do jogador.
Embora sem se manifestar abertamente, o tácito Dedeu aos poucos passou a compartilhar o entusiasmo do Nicanor. Já não o refreava como anteriormente, nem se constrangia mais, quando o pai puxava os vivas e pagava intermináveis rodadas de cachaça no Derru Bar, nos domingos ensolarados do Largo da Carniça.
- Viva Dedeu, o futuro ídolo do Flamengo!
(continua)
Em casa, Nicanor não escondia sua impaciência. Queria uma definição, e positiva, sobre a situação do filho no Flamengo. Dedeu, temeroso, não tinha coragem de dar-lhe nenhuma esperança. Conhecia muito bem as idiossincrasias do pai, sua propensão tanto para o entusiasmo quanto, principalmente, para a decepção. Por isso o levava com muito cuidado.
Um dia, porém, Carijó apareceu na Serra do Mendanha e achou de inventar aquela mentira lamentável:
-Seu Nicanor, o professor Carlinhos elogiou muito o Dedeu. Acha que ele se parece muito com o Leandro.
Era de se ver a alegria do Nicanor, transbordando de satisfação, a antever o futuro glorioso do filho. A vizinhança logo soube da façanha. Era só esperar, e o veriam no Maracanã, marcando, apoiando, cruzando a bola certeira, venenosa, na cabeça do centro-avante, a quem só caberia testar a bola para dentro do gol.
- A fotografia nos jornais, o assédio dos torcedores, a Europa de olho no menino.
Afirmava para todos que Carlinhos era palavra garantida. Jogador de categoria, que era chamado de Violino, não botava a cabeça na bola para não despentear o cabelo. Ele a buscava com o pé, recolhendo-a lá no alto, pois era no gramado que a bola tinha de ser forçada a transitar. Carlinhos em campo, certeza de time organizado. Como técnico, então, nem se fala, pois deu dois campeonatos brasileiros ao Flamengo.
- Quer ser campeão? Basta contratar o Carlinhos. Pois esse Carlinhos, sim, esse é que entende de futebol.
Desde esse dia, todos, ali na Grota, passaram a considerar que Dedeu já era um jogador do Flamengo. Era apontado como um exemplo a ser seguido e chegou a ser citado pelo Padre Pestana num daqueles sermões cheios de parábolas e de samaritanos. Certa feita a tia do Gordurinha convidou-o para comer um bolo de limão, repartindo-o com Janira, sua filha mais nova:
- Fiz este bolo, o preferido dela, pensando em vocês dois.
Dedeu tinha bom controle de bola, agilidade, grande força de vontade e tudo fazia com rigorosa disciplina tática, pois não se sentia em condições de fracassar.
Viu progredir o Fabiano, o Juan, o Bruno e Carijó, à proporção que também progredia e ficava cada vez mais confiante. Uma vez fez num treino uma jogada espetacular, que todos elogiaram, até o Paulo César, que, pouco derramado, nunca se abria.
- Isso, garoto! Você está mostrando que conhece todas as mumunhas e prosopopéias.
Passou a achar que não seria degolado, e, sim, escolhido. Sonhar não custava nada, por que então não sonhar? Era só esperar a definição do elenco. Aos mais pobres, como ele, além de lanche, vale-transporte e assistência médica, o Flamengo proporcionava escola, ajuda de custo e alojamento no Morro da Viúva. Em certos casos, até alugava um apartamento para a família na Zona Sul, para evitar os grandes deslocamentos do jogador.
Embora sem se manifestar abertamente, o tácito Dedeu aos poucos passou a compartilhar o entusiasmo do Nicanor. Já não o refreava como anteriormente, nem se constrangia mais, quando o pai puxava os vivas e pagava intermináveis rodadas de cachaça no Derru Bar, nos domingos ensolarados do Largo da Carniça.
- Viva Dedeu, o futuro ídolo do Flamengo!
(continua)
sábado, 17 de setembro de 2011
O NOVO DEQUINHA (parte 3/5)
OS TREINAMENTOS
A vida de Dedeu passou a ser exclusivamente o futebol, pois Nicanor fazia questão da total dedicação do filho aos treinamentos. Sentia remorso, pois o ônus de bancá-lo no Flamengo, com aquele desperdício de dinheiro em passagens de ônibus e de trem, assoberbava a vida do pai.
Gostava da Gávea. Aquele gramado lhe parecia abençoado, pois pisava onde pisaram semideuses, Zico, Zizinho, Fausto, Leônidas e Dida. Uma história de êxitos e de consagrações, que começavam exatamente ali.
-E Friendereich? O Friendereich também jogou no Flamengo, não jogou?
- Jogou em 1917 e em 1935.
O certo é que aos poucos Dedeu foi se entusiasmando com a idéia de que poderia se tornar, de fato, um jogador profissional. Terminados os exercícios, ele se demorava para ver o treinamento dos profissionais. Muito se encantava com o desempenho do Romário, que batia na bola de frente, de lado, de calcanhar, de ombro, de nuca e até de costas. O craque, notando aquele interesse, passou a conversar com ele, a dar-lhe esperança, a incentivá-lo. O Dedeu, no carro bonito, todo prosa, ao lado do ídolo, quando certa vez Romário lhe deu uma carona até a Central do Brasil.
- O Flamengo é o sonho de todo jogador.
Na sua turma, a da batalha, a amizade era com o Fabiano, o Juan, o Athirson, o Carijó e o Bruno, que, aliás, é filho do Raul Quadros, naquela ocasião um frequentador constante do chope da Gávea. Tinham todos a mesma ambição, a de jogar profissionalmente pelo Flamengo.
Eles se animavam mutuamente, elogiavam-se, protegiam-se, exorcizando o fantasma da degola, a angustiante síndrome do 15 de dezembro. Carijó fingia tranqüilidade quando escalava, com voz empostada de locutor, o sistema defensivo do Flamengo no ano 2000.
- Carlos Alberto, Dedeu, Fabiano, Juan e Athirson, com Carijó na cabeça da área.
- Cabeça de quê?
- Cabeça da área.
Uma conversa frequente era sobre o que fazer com o dinheiro do primeiro contrato. A maioria pensava numa casa para a mãe, mas havia os que eram pelo carro do ano. O Suélio, um baixinho cheio de marra, o que queria mesmo era casar com a Isiane. Dedeu, que nunca se imaginou possuindo carro nenhum, nem mesmo de segunda mão, dizia que seu desejo era comprar um apartamento para os pais, lá para os lados de Realengo ou, quem sabe, da Tijuca. E vinha o Carijó, sempre ele, com alguma tirada extravagante.
- Vou comprar uma casa e um carro. Mas antes quero ir a um restaurante lá de Bonsucesso, o "Sustança Real", e pedir dois filés com batatas fritas. O primeiro é para matar a fome.
- E o outro?
- De sobremesa, ora essa!
Certa vez, num domingo, houve um jogo-treino com um time de Petrópolis, e Dedeu entrou no segundo tempo. Foi uma festa, com todos se saindo muito bem. Dedeu, que chegou a fazer um gol de falta, foi muito elogiado pelo treinador. Melhor que tudo, Nicanor assistiu ao jogo no meio de uma pequena torcida.
- Vai, Dedeu! Isso, Dedeu!
- Esse Dedeu é o novo Dequinha!
Mas tinham de esperar o 15 de dezembro, sem outro recurso. Pois os técnicos, muito profissionais, não antecipavam nenhuma opinião, exacerbando a dúvida e aflição de cada um.
(continua)
A vida de Dedeu passou a ser exclusivamente o futebol, pois Nicanor fazia questão da total dedicação do filho aos treinamentos. Sentia remorso, pois o ônus de bancá-lo no Flamengo, com aquele desperdício de dinheiro em passagens de ônibus e de trem, assoberbava a vida do pai.
Gostava da Gávea. Aquele gramado lhe parecia abençoado, pois pisava onde pisaram semideuses, Zico, Zizinho, Fausto, Leônidas e Dida. Uma história de êxitos e de consagrações, que começavam exatamente ali.
-E Friendereich? O Friendereich também jogou no Flamengo, não jogou?
- Jogou em 1917 e em 1935.
O certo é que aos poucos Dedeu foi se entusiasmando com a idéia de que poderia se tornar, de fato, um jogador profissional. Terminados os exercícios, ele se demorava para ver o treinamento dos profissionais. Muito se encantava com o desempenho do Romário, que batia na bola de frente, de lado, de calcanhar, de ombro, de nuca e até de costas. O craque, notando aquele interesse, passou a conversar com ele, a dar-lhe esperança, a incentivá-lo. O Dedeu, no carro bonito, todo prosa, ao lado do ídolo, quando certa vez Romário lhe deu uma carona até a Central do Brasil.
- O Flamengo é o sonho de todo jogador.
Na sua turma, a da batalha, a amizade era com o Fabiano, o Juan, o Athirson, o Carijó e o Bruno, que, aliás, é filho do Raul Quadros, naquela ocasião um frequentador constante do chope da Gávea. Tinham todos a mesma ambição, a de jogar profissionalmente pelo Flamengo.
Eles se animavam mutuamente, elogiavam-se, protegiam-se, exorcizando o fantasma da degola, a angustiante síndrome do 15 de dezembro. Carijó fingia tranqüilidade quando escalava, com voz empostada de locutor, o sistema defensivo do Flamengo no ano 2000.
- Carlos Alberto, Dedeu, Fabiano, Juan e Athirson, com Carijó na cabeça da área.
- Cabeça de quê?
- Cabeça da área.
Uma conversa frequente era sobre o que fazer com o dinheiro do primeiro contrato. A maioria pensava numa casa para a mãe, mas havia os que eram pelo carro do ano. O Suélio, um baixinho cheio de marra, o que queria mesmo era casar com a Isiane. Dedeu, que nunca se imaginou possuindo carro nenhum, nem mesmo de segunda mão, dizia que seu desejo era comprar um apartamento para os pais, lá para os lados de Realengo ou, quem sabe, da Tijuca. E vinha o Carijó, sempre ele, com alguma tirada extravagante.
- Vou comprar uma casa e um carro. Mas antes quero ir a um restaurante lá de Bonsucesso, o "Sustança Real", e pedir dois filés com batatas fritas. O primeiro é para matar a fome.
- E o outro?
- De sobremesa, ora essa!
Certa vez, num domingo, houve um jogo-treino com um time de Petrópolis, e Dedeu entrou no segundo tempo. Foi uma festa, com todos se saindo muito bem. Dedeu, que chegou a fazer um gol de falta, foi muito elogiado pelo treinador. Melhor que tudo, Nicanor assistiu ao jogo no meio de uma pequena torcida.
- Vai, Dedeu! Isso, Dedeu!
- Esse Dedeu é o novo Dequinha!
Mas tinham de esperar o 15 de dezembro, sem outro recurso. Pois os técnicos, muito profissionais, não antecipavam nenhuma opinião, exacerbando a dúvida e aflição de cada um.
(continua)
quarta-feira, 14 de setembro de 2011
O NOVO DEQUINHA (parte 2/5)
Dedeu
Nicanor e Dedeu saíram cedo da Serra do Mendanha, caminhando até a estação de Bangu, para pegar o primeiro trem da manhã. Na Gávea, o treino dos juvenis começaria às nove. Enquanto o trem corria, e o subúrbio ia pulando para trás, Nicanor rememorava os grandes nomes do Flamengo: Fausto, Leônidas, Domingos, Zizinho, Bria, Biguá, Jaime de Almeida, Doutor Rúbis, Lico, Dida, Mozer, Aldair, Júnior, Evaristo, Dequinha, Pirilo, Almir, Joel, Carpegiani, Vevé, Raul, Índio, Sinforiano Garcia, Rondinelli, Benitez, Adílio,Tita, Andrade, Leandro. Zico, Zico, Zico. O Mário Venâncio, Deus é que sabe do Mário...
- Chegou a vez do Dedeu.
Dedeu trazia debaixo do braço a chuteira novinha em folha, uma extravagância que, embora necessária, enforcou a família no crediário insuportável. Olhava assustado para o pai, pois tinha medo de desapontá-lo. A bem da verdade, daria tudo para não estar naquela situação, obrigado a uma glória a ser conquistada a pontapés.
- Eu fui um zagueiro tão bom como Domingos da Guia, disse Nicanor, quando o trem parou na Central.
Já no ônibus, consultou mais uma vez o bolso do macacão, assegurando-se de que não havia esquecido o bilhete do doutor Oest. Quando saltaram perto do Miguel Couto, Nicanor deu um forte abraço em Dedeu e apontou-lhe a porta do Flamengo. Deixou-o seguir sozinho e permaneceu estacado, observando o passo cambaleante do filho em direção à imortalidade.
Dedeu exibiu o bilhete, e o porteiro girou a borboleta, deixando-o passar Gávea adentro. De longe, Nicanor acompanhou aquela coreografia de sonho: o dia mais importante da sua vida.
A Lagoa, bem pertinho, e no alto o Cristo Redentor. Aquela gente alegre e barulhenta que buscava as piscinas ou se dirigia às quadras, os vestiários, os bares, os cuidados médicos, o gramado tão bem cuidado por um exército de profissionais, tudo o fascinava. Jamais sonhara estar num ambiente assim, ele, do subúrbio remoto, respirando aquele ar de Zona Sul.
- Jogando no Flamengo!
Aceito com cordialidade, integrou-se facilmente ao grupo, onde prevaleciam a camaradagem e o respeito, pois todos tinham o mesmo ideal, que era fazer do futebol a sua profissão. Dedeu foi logo fazendo amizade com o Carijó, que era bem-humorado e extrovertido.
- Quero ser jogador de futebol para não ser prefeito, dizia-lhe o novo amigo.
- Essa eu não entendi.
- Quem não pode cumprir esse fundamento, faz melhor se desistir de jogar futebol, preconizava o treinador.
(continua)
Nicanor e Dedeu saíram cedo da Serra do Mendanha, caminhando até a estação de Bangu, para pegar o primeiro trem da manhã. Na Gávea, o treino dos juvenis começaria às nove. Enquanto o trem corria, e o subúrbio ia pulando para trás, Nicanor rememorava os grandes nomes do Flamengo: Fausto, Leônidas, Domingos, Zizinho, Bria, Biguá, Jaime de Almeida, Doutor Rúbis, Lico, Dida, Mozer, Aldair, Júnior, Evaristo, Dequinha, Pirilo, Almir, Joel, Carpegiani, Vevé, Raul, Índio, Sinforiano Garcia, Rondinelli, Benitez, Adílio,Tita, Andrade, Leandro. Zico, Zico, Zico. O Mário Venâncio, Deus é que sabe do Mário...
- Chegou a vez do Dedeu.
Dedeu trazia debaixo do braço a chuteira novinha em folha, uma extravagância que, embora necessária, enforcou a família no crediário insuportável. Olhava assustado para o pai, pois tinha medo de desapontá-lo. A bem da verdade, daria tudo para não estar naquela situação, obrigado a uma glória a ser conquistada a pontapés.
- Eu fui um zagueiro tão bom como Domingos da Guia, disse Nicanor, quando o trem parou na Central.
Já no ônibus, consultou mais uma vez o bolso do macacão, assegurando-se de que não havia esquecido o bilhete do doutor Oest. Quando saltaram perto do Miguel Couto, Nicanor deu um forte abraço em Dedeu e apontou-lhe a porta do Flamengo. Deixou-o seguir sozinho e permaneceu estacado, observando o passo cambaleante do filho em direção à imortalidade.
Dedeu exibiu o bilhete, e o porteiro girou a borboleta, deixando-o passar Gávea adentro. De longe, Nicanor acompanhou aquela coreografia de sonho: o dia mais importante da sua vida.
A Lagoa, bem pertinho, e no alto o Cristo Redentor. Aquela gente alegre e barulhenta que buscava as piscinas ou se dirigia às quadras, os vestiários, os bares, os cuidados médicos, o gramado tão bem cuidado por um exército de profissionais, tudo o fascinava. Jamais sonhara estar num ambiente assim, ele, do subúrbio remoto, respirando aquele ar de Zona Sul.
- Jogando no Flamengo!
Aceito com cordialidade, integrou-se facilmente ao grupo, onde prevaleciam a camaradagem e o respeito, pois todos tinham o mesmo ideal, que era fazer do futebol a sua profissão. Dedeu foi logo fazendo amizade com o Carijó, que era bem-humorado e extrovertido.
- Quero ser jogador de futebol para não ser prefeito, dizia-lhe o novo amigo.
- Essa eu não entendi.
- Meu pai deseja que eu seja prefeito. Ou, então, jogador de futebol. Escolhi ser jogador, pois acho muito ruim sair por aí pedindo voto e me gabando de competência. E tem mais...
- Mais o quê?
- O que não falta é mulher bonita na área...
Dedeu não teve nenhuma dificuldade para adaptar-se às rotinas de treinamento, diárias e exaustivas. Paulo César, que precisava de um lateral, imediatamente submeteu-o a exercícios físicos especiais. Depois, os treinos técnicos exaustivos, para chutar com qualquer das pernas ou para centrar de modo que a bola descaísse em folha-seca, numa trajetória feita de intersecções de parábolas que se sucediam e se interpenetravam, o mesmo efeito mágico que Didi usou, em 1957, para derrotar os peruanos no Maracanã. Quando o time perdesse a bola, teria de voltar, em alta velocidade e pelo meio, para ocupar a posição do zagueiro que lhe dava cobertura na lateral.
- Mais o quê?
- O que não falta é mulher bonita na área...
Dedeu não teve nenhuma dificuldade para adaptar-se às rotinas de treinamento, diárias e exaustivas. Paulo César, que precisava de um lateral, imediatamente submeteu-o a exercícios físicos especiais. Depois, os treinos técnicos exaustivos, para chutar com qualquer das pernas ou para centrar de modo que a bola descaísse em folha-seca, numa trajetória feita de intersecções de parábolas que se sucediam e se interpenetravam, o mesmo efeito mágico que Didi usou, em 1957, para derrotar os peruanos no Maracanã. Quando o time perdesse a bola, teria de voltar, em alta velocidade e pelo meio, para ocupar a posição do zagueiro que lhe dava cobertura na lateral.
(continua)
sábado, 10 de setembro de 2011
O NOVO DEQUINHA (parte 1/5)
A Gávea
Tudo se discutia: a beleza de Grace Kelly, a arte de gastar um milhão de dólares, o Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, de Borges, a melhor maneira de recusar um convite de casamento ou o ritual dos peixes que se suicidam. Aprendi, exatamente lá, que Immanuel Kant nunca se casou, que a mãe de Johannes Kepler, uma bruxa, quase acabou na fogueira, que há 159 litros num barril de petróleo, que é muito fácil avaliar um Renoir, grande foi a importância de Hermes Trimegisto e de Avicena no desenvolvimento da ciência...
- Poucos sabem que o produtor de Matar ou Morrer, Stanley Krammer, foi o diretor de A Nau dos Insensatos.
- Cultura inútil da melhor qualidade...
O mais comum no chope da Gávea eram, todavia, as histórias sobre futebol. A saga dos nossos heróis, na sua miserável condição humana, no gramado ou fora dele:
- Você sabia que Marcos Carneiro de Mendonça era historiador, que Leônidas da Silva inaugurava sapatarias, fazendo discursos redigidos por José Maria Scassa, e que Fausto, a Maravilha Negra, só corria metade do jogo, porque era tuberculoso?
- Ubirajara, o negro mais bonito do Brasil, fazia gols de tiro de meta, mas só quando o vento ajudava. Filho do Tião, aquele da linha de 1946: Adilson, Tião, Pirilo, Perácio e Vevé...
- Jair da Rosa Pinto, o Jajá de Barra Mansa, teve a camisa queimada após o cinco a dois acachapante.
- Macaé, aquele da Miguel Lemos, não compactuava com o regime capitalista de produção e por isso jamais trabalhou. Foi zagueiro do time de aspirantes do Botafogo, campeão de 1943, e dono do cachorro Biriba.
No caso geral essas crônicas envolvem ídolos, como se vê. Vou contar, porém, uma história sobre alguém mais modesto, o filho do Nicanor, tudo a ver com a legião de desfavorecidos que enxergam no futebol uma oportunidade de ascensão social.
Nicanor
Um presidente do Flamengo não é um presidente qualquer, mas uma personalidade mítica, com poderes mágicos, conduzindo as multidões para o bem ou para o mal, a vaia, o aplauso, a resignação, a euforia, a indignação, as vitórias e as derrotas. No caso do Pedro Oest, muito mais para as vitórias, os aplausos, a euforia. Pascoal D'Angelo conheceu-o muito bem. Não gostava absolutamente de interferir no trabalho dos profissionais do clube, que têm seus critérios de escolha e um planejado ritual para o aproveitamento de jovens jogadores para o infantil, o infanto-juvenil, o juvenil, os juniores e os profissionais.
Tudo começa pelos olheiros, que se distribuem, anônimos, pelo interior, pelos subúrbios e pelas praias. O convite deve partir oficialmente do Flamengo ao desapercebido jogador distinguido pela recomendação do olheiro. A situação inversa, com o Flamengo procurado pelo candidato ou por seus amigos e parentes, é constrangedora, sob todos os aspectos. Pois jogador oferecido, que não foi submetido à prévia, insuspeita e competente observação profissional, é normalmente jogador sem as qualidades exigidas para integrar os elencos rubro-negros. Zizinho e Garrincha, que respectivamente se ofereceram ao Flamengo e ao Botafogo, são gloriosas exceções que existem para nutrir a alma passionária do torcedor, alimentando-lhe irreversivelmente a fantasia.
No entanto, Pedro Oest teve muita pena do Nicanor, quando este implorava uma oportunidade para o Dedeu. E pensou: "a nação rubro-negra me perdoará mais esta, eu que já errei tanto pelo Flamengo." Ali mesmo, de pé, apoiando-se no balcão da portaria, redigiu o bilhete endereçado ao técnico dos juvenis:
"Caro, Paulo César, o portador é Dedeu, o novo Dequinha. Teste todas as suas qualidades. Se aprovar, integre-o ao elenco. Um abraço, Pedro Oest."
(continua)
Tudo se discutia: a beleza de Grace Kelly, a arte de gastar um milhão de dólares, o Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, de Borges, a melhor maneira de recusar um convite de casamento ou o ritual dos peixes que se suicidam. Aprendi, exatamente lá, que Immanuel Kant nunca se casou, que a mãe de Johannes Kepler, uma bruxa, quase acabou na fogueira, que há 159 litros num barril de petróleo, que é muito fácil avaliar um Renoir, grande foi a importância de Hermes Trimegisto e de Avicena no desenvolvimento da ciência...
- Poucos sabem que o produtor de Matar ou Morrer, Stanley Krammer, foi o diretor de A Nau dos Insensatos.
- Cultura inútil da melhor qualidade...
O mais comum no chope da Gávea eram, todavia, as histórias sobre futebol. A saga dos nossos heróis, na sua miserável condição humana, no gramado ou fora dele:
- Você sabia que Marcos Carneiro de Mendonça era historiador, que Leônidas da Silva inaugurava sapatarias, fazendo discursos redigidos por José Maria Scassa, e que Fausto, a Maravilha Negra, só corria metade do jogo, porque era tuberculoso?
- Ubirajara, o negro mais bonito do Brasil, fazia gols de tiro de meta, mas só quando o vento ajudava. Filho do Tião, aquele da linha de 1946: Adilson, Tião, Pirilo, Perácio e Vevé...
- Jair da Rosa Pinto, o Jajá de Barra Mansa, teve a camisa queimada após o cinco a dois acachapante.
- Macaé, aquele da Miguel Lemos, não compactuava com o regime capitalista de produção e por isso jamais trabalhou. Foi zagueiro do time de aspirantes do Botafogo, campeão de 1943, e dono do cachorro Biriba.
Biguá, Bria e Jaime
- Biguá foi o melhor de todos os jogadores, que não haja sobre isso nenhuma dúvida: culpado de um gol, deitou-se no gramado e comeu a grama...
No caso geral essas crônicas envolvem ídolos, como se vê. Vou contar, porém, uma história sobre alguém mais modesto, o filho do Nicanor, tudo a ver com a legião de desfavorecidos que enxergam no futebol uma oportunidade de ascensão social.
Nicanor
Um presidente do Flamengo não é um presidente qualquer, mas uma personalidade mítica, com poderes mágicos, conduzindo as multidões para o bem ou para o mal, a vaia, o aplauso, a resignação, a euforia, a indignação, as vitórias e as derrotas. No caso do Pedro Oest, muito mais para as vitórias, os aplausos, a euforia. Pascoal D'Angelo conheceu-o muito bem. Não gostava absolutamente de interferir no trabalho dos profissionais do clube, que têm seus critérios de escolha e um planejado ritual para o aproveitamento de jovens jogadores para o infantil, o infanto-juvenil, o juvenil, os juniores e os profissionais.
Tudo começa pelos olheiros, que se distribuem, anônimos, pelo interior, pelos subúrbios e pelas praias. O convite deve partir oficialmente do Flamengo ao desapercebido jogador distinguido pela recomendação do olheiro. A situação inversa, com o Flamengo procurado pelo candidato ou por seus amigos e parentes, é constrangedora, sob todos os aspectos. Pois jogador oferecido, que não foi submetido à prévia, insuspeita e competente observação profissional, é normalmente jogador sem as qualidades exigidas para integrar os elencos rubro-negros. Zizinho e Garrincha, que respectivamente se ofereceram ao Flamengo e ao Botafogo, são gloriosas exceções que existem para nutrir a alma passionária do torcedor, alimentando-lhe irreversivelmente a fantasia.
No entanto, Pedro Oest teve muita pena do Nicanor, quando este implorava uma oportunidade para o Dedeu. E pensou: "a nação rubro-negra me perdoará mais esta, eu que já errei tanto pelo Flamengo." Ali mesmo, de pé, apoiando-se no balcão da portaria, redigiu o bilhete endereçado ao técnico dos juvenis:
"Caro, Paulo César, o portador é Dedeu, o novo Dequinha. Teste todas as suas qualidades. Se aprovar, integre-o ao elenco. Um abraço, Pedro Oest."
(continua)
quarta-feira, 7 de setembro de 2011
A ESCOLHA (parte 4/4)
Show me the money
Igreja de Santa Luzia
Continuei pelo resto das férias a minha carreira de dissipador, pois poupar não era preciso, trabalhava num projeto bem-sucedido, granjeara um excelente conceito, ninguém disputava o meu lugar e esperava não testemunhar mais crime nenhum. Para dizer numa palavra: dois mil dólares já não faziam importância no meu orçamento. Por isso quase viajei para Teófilo Otoni sem buscar as ações. Mas o acaso me aproximou novamente da Vale, à qual acabei retornando, pois fui convidado pelo doutor Eurico para almoçar no Clube Militar, que fica a uma centena de metros da mineradora.
Uma cautela atualizada
Nada do que me sucedera anteriormente pode ser comparado ao que me esperava: recebi das mãos do chefe do departamento de acionistas uma cautela atualizada que me fazia possuidor de 73.500 ações preferenciais ao portador da mui leal e digna Companhia Vale do Rio Doce.
A cautela que eu entregara era de 1947 e fazia jus, ao longo de mais de vinte anos de esquecimento, a vastíssimas bonificações, que não haviam sido entregues por serem títulos ao portador, cujo a Vale não tivera como identificar.
Fui levado à presença do presidente da companhia, que fez questão de me conhecer, pois eu era um dos seus principais acionistas.
Inicialmente eu havia estimado que minha herança era de 500 dólares. Na festa do doutor Eurico, depois, esse valor saltara para 2 mil dólares. Fazendo mentalmente os cálculos com base em 73.500 ações, considerada a cotação de 41 dólares por unidade, saí do encontro com o presidente certo de que herdara cerca de três milhões de dólares!
Felizmente, mais uma vez eu estava enganado: o papel já estava com cotação acima de cem dólares por ação. Autorizei a venda e, 48 horas depois, recebi um cheque de pouco mais de 7,5 milhões de dólares.
Sou, desse modo, um milionário acidental. Graças à generosa escolha que fizeram para mim os que partilharam comigo o espólio do tio Dilermando.
Pedi demissão do meu emprego diretamente ao doutor Eurico, a quem sempre haverei de tributar minhas melhores homenagens, pelo grande senso empresarial e pela justiça com que distribuía os dividendos do seu projeto vitorioso.
Minha fortuna, não sei como, tornou-se conhecida de muita gente. Doutor Eusébio, o inventariante, procurou-me para dizer que havia convencido os herdeiros a aceitar minha sugestão de rever a partilha dos bens do Dilermando. A Cidinha me escreveu para informar que estava disposta a casar-se comigo, ela que brigara com o jogador, o qual, a bem da verdade, não era lá essas coisas e já passara para o time reserva. O irmão do juiz assassinado, que por acaso se tornara o gerente da minha loja de aparelhos de televisão, deslocou-se lá de Maceió e me propôs uma sociedade para criação de uma cadeia de lojas de eletrodomésticos no Nordeste. Até um alemão, representando uma companhia geofísica de Frankfurt Am Main, tentou vender-me interesses de participação num contrato de exploração de petróleo na Guatemala.
Escolhas profissionais
Movimento, porém, foi o que decidi evitar. Comprei vinte apartamentos de luxo na Zona Sul do Rio de Janeiro e entreguei sua administração a uma empresa idônea que deposita os rendimentos líquidos na minha conta bancária, cujo gerente exclusivo os vai aplicando segundo modernos critérios de escolha e gerenciamento de portfólios. Que funcionam muito bem, técnicas de Cambridge e de Oxford, sei lá.
- Pois eu, forçoso é reconhecer com humildade, costumo me sair melhor quando outros escolhem por mim.
(fim)
Dinheiro no bolso, férias excelentes. A nota triste foi a morte de um amigo querido, cuja missa de sétimo dia iria ser na igreja de Santa Luzia. Foi então que me lembrei das ações da Vale, cuja sede ficava perto da igreja. Assisti à missa com a cautela indesejada no bolso do paletó.
No departamento de acionistas me instruíram para retornar dentro de uma semana e assim receber o papel na forma desejada pelo mercado.
No departamento de acionistas me instruíram para retornar dentro de uma semana e assim receber o papel na forma desejada pelo mercado.
Igreja de Santa Luzia
Continuei pelo resto das férias a minha carreira de dissipador, pois poupar não era preciso, trabalhava num projeto bem-sucedido, granjeara um excelente conceito, ninguém disputava o meu lugar e esperava não testemunhar mais crime nenhum. Para dizer numa palavra: dois mil dólares já não faziam importância no meu orçamento. Por isso quase viajei para Teófilo Otoni sem buscar as ações. Mas o acaso me aproximou novamente da Vale, à qual acabei retornando, pois fui convidado pelo doutor Eurico para almoçar no Clube Militar, que fica a uma centena de metros da mineradora.
Uma cautela atualizada
Nada do que me sucedera anteriormente pode ser comparado ao que me esperava: recebi das mãos do chefe do departamento de acionistas uma cautela atualizada que me fazia possuidor de 73.500 ações preferenciais ao portador da mui leal e digna Companhia Vale do Rio Doce.
A cautela que eu entregara era de 1947 e fazia jus, ao longo de mais de vinte anos de esquecimento, a vastíssimas bonificações, que não haviam sido entregues por serem títulos ao portador, cujo a Vale não tivera como identificar.
Fui levado à presença do presidente da companhia, que fez questão de me conhecer, pois eu era um dos seus principais acionistas.
Inicialmente eu havia estimado que minha herança era de 500 dólares. Na festa do doutor Eurico, depois, esse valor saltara para 2 mil dólares. Fazendo mentalmente os cálculos com base em 73.500 ações, considerada a cotação de 41 dólares por unidade, saí do encontro com o presidente certo de que herdara cerca de três milhões de dólares!
Felizmente, mais uma vez eu estava enganado: o papel já estava com cotação acima de cem dólares por ação. Autorizei a venda e, 48 horas depois, recebi um cheque de pouco mais de 7,5 milhões de dólares.
Sou, desse modo, um milionário acidental. Graças à generosa escolha que fizeram para mim os que partilharam comigo o espólio do tio Dilermando.
Pedi demissão do meu emprego diretamente ao doutor Eurico, a quem sempre haverei de tributar minhas melhores homenagens, pelo grande senso empresarial e pela justiça com que distribuía os dividendos do seu projeto vitorioso.
Minha fortuna, não sei como, tornou-se conhecida de muita gente. Doutor Eusébio, o inventariante, procurou-me para dizer que havia convencido os herdeiros a aceitar minha sugestão de rever a partilha dos bens do Dilermando. A Cidinha me escreveu para informar que estava disposta a casar-se comigo, ela que brigara com o jogador, o qual, a bem da verdade, não era lá essas coisas e já passara para o time reserva. O irmão do juiz assassinado, que por acaso se tornara o gerente da minha loja de aparelhos de televisão, deslocou-se lá de Maceió e me propôs uma sociedade para criação de uma cadeia de lojas de eletrodomésticos no Nordeste. Até um alemão, representando uma companhia geofísica de Frankfurt Am Main, tentou vender-me interesses de participação num contrato de exploração de petróleo na Guatemala.
Escolhas profissionais
Movimento, porém, foi o que decidi evitar. Comprei vinte apartamentos de luxo na Zona Sul do Rio de Janeiro e entreguei sua administração a uma empresa idônea que deposita os rendimentos líquidos na minha conta bancária, cujo gerente exclusivo os vai aplicando segundo modernos critérios de escolha e gerenciamento de portfólios. Que funcionam muito bem, técnicas de Cambridge e de Oxford, sei lá.
- Pois eu, forçoso é reconhecer com humildade, costumo me sair melhor quando outros escolhem por mim.
(fim)
sábado, 3 de setembro de 2011
A ESCOLHA (parte 3/4)
Hawthorne me alcançou
Fora da efervescência da fábrica, não mais que um alabama, eu tinha atribuições periféricas e modestas. Mesmo assim eu me senti engajado no projeto, um pequenino vetor ajudando na composição da resultante. Estava disposto a suar a camisa.
Eram duas dezenas de títulos a serem defendidos. Visitava os médicos e farmácias de diversas cidades, distribuía amostras dos remédios e recitava seus usos e propriedades. Para cada um dos vinte produtos, a posologia, as reações adversas, as contra-indicações e os procedimentos recomendados em casos de superdosagem. Nunca me esquecerei do produto mais indicado para a profilaxia e tratamento dos distúrbios circulatórios periféricos, vertigem, zumbido, nistagmo, náuseas e vômitos. Ou do creme a ser usado nas manifestações cutâneas decorrentes de sifílis, tuberculose e infecções fúngicas, bacterianas ou viróticas.
- Se o caso for de prisão de ventre, temos a solução: supositório de glicerina.
Cautela obsoleta
Inicialmente couberam-me Araçatuba, Birigüi, Lins e adjacências, no interior de São Paulo. Atuei depois em Teresópolis, Magé, Guapimirim e na região que começa em Petrópolis e se estende até Leopoldina. Coloquei força na coisa e me dei bem. Na festa anual da companhia, que se celebrava no feriado de 7 de setembro, fui chamado ao Rio de Janeiro pelo doutor Eurico, o vice-presidente da companhia, que elogiou o meu trabalho com inesperada veemência. As vendas nas cidades onde eu atuava, antes infensas aos nossos produtos, alcançaram níveis que excediam todas as expectativas.
A diretoria decidira contemplar-me com duas mil ações da companhia.
- Um prêmio pela sua produtividade, disse-me o doutor Eurico. Se nossas ações já fossem negociadas no mercado, estariam bastante valorizadas com essa avassaladora alta dos papéis em bolsa.
Naquele momento lembrei-me das 49 ações da Vale. O vice-presidente me informou que na véspera o meu papel estivera cotado a 41 dólares. Ou seja, podia vendê-las por cerca de dois mil dólares, uma achega nada desimportante ao meu orçamento de caixeiro-viajante.
Foi por isso que no dia seguinte procurei uma corretora de valores no centro da cidade. Lauro Chometon atendeu-me com muita cortesia e profissionalismo, mas jogou um balde de água fria nas minhas pretensões de realizar o capital: a cautela das minhas ações estava desatualizada, e eu teria de levá-la ao departamento de acionistas da Vale, ali na rua Santa Luzia, para trocá-la por outra que fosse aceita pelo mercado. Não o fiz, pois viajei imediatamente para trabalhar a praça que compreendia Muriaé, Governador Valadares, Teófilo Otoni, Vitória da Conquista e arredores. Foram seis meses de trabalho duro, mas profícuo. Graças ao meu desempenho, as vendas na região subiram quase trezentos por cento.
Ostentação autorizada
Eu recebia seguidos telegramas de congratulações do doutor Eurico, que me recomendou que me hospedasse no melhor hotel de cada cidade visitada. Sentia-me alcançado pela experiência de Hawthorne, pois auferia um tratamento à altura do meu rendimento. Recebendo uma generosa diária que em muito ultrapassava as minhas necessidades, assumi uma vida de ostentação autorizada, tinha amigos importantes e era assediado por moças ricas e bonitas. Confesso que cheguei a bendizer o fato de haver sido arrolado para testemunhar o assassinato do juiz, pois aquela gerência dos aparelhos de televisão só tinha servido para retardar o meu encontro com a bem-aventurança. Comissões cada vez maiores eram depositadas na minha conta bancária no Rio de Janeiro. Eu antevia, no 7 de setembro seguinte, o doutor Eurico a me entregar mais ações da companhia, que guardaria como troféu junto da cautela da Vale, dado que não tinha como negociá-las, nem disso tinha a menor necessidade.
Carro do ano
Com menos de trinta anos ninguém pensa no futuro: confesso que tinha ouvido falar em letras imobiliárias ou coisa parecida, mas só muito depois tomei conhecimento da existência de cadernetas de poupança, que rendiam juros e correções monetárias. Nada disso se situava no meu horizonte, nem tinha relação com os meus procedimentos.
- Pela primeira vez posso frequentar os melhores clubes, comer nos bons restaurantes e, se me der vontade, dirigir um carro do ano, foi o que pensei quando voava para merecidas férias no Rio de Janeiro. É verdade que também pensava na Elisinha.
(continua)
Fora da efervescência da fábrica, não mais que um alabama, eu tinha atribuições periféricas e modestas. Mesmo assim eu me senti engajado no projeto, um pequenino vetor ajudando na composição da resultante. Estava disposto a suar a camisa.
Eram duas dezenas de títulos a serem defendidos. Visitava os médicos e farmácias de diversas cidades, distribuía amostras dos remédios e recitava seus usos e propriedades. Para cada um dos vinte produtos, a posologia, as reações adversas, as contra-indicações e os procedimentos recomendados em casos de superdosagem. Nunca me esquecerei do produto mais indicado para a profilaxia e tratamento dos distúrbios circulatórios periféricos, vertigem, zumbido, nistagmo, náuseas e vômitos. Ou do creme a ser usado nas manifestações cutâneas decorrentes de sifílis, tuberculose e infecções fúngicas, bacterianas ou viróticas.
- Se o caso for de prisão de ventre, temos a solução: supositório de glicerina.
Cautela obsoleta
Inicialmente couberam-me Araçatuba, Birigüi, Lins e adjacências, no interior de São Paulo. Atuei depois em Teresópolis, Magé, Guapimirim e na região que começa em Petrópolis e se estende até Leopoldina. Coloquei força na coisa e me dei bem. Na festa anual da companhia, que se celebrava no feriado de 7 de setembro, fui chamado ao Rio de Janeiro pelo doutor Eurico, o vice-presidente da companhia, que elogiou o meu trabalho com inesperada veemência. As vendas nas cidades onde eu atuava, antes infensas aos nossos produtos, alcançaram níveis que excediam todas as expectativas.
A diretoria decidira contemplar-me com duas mil ações da companhia.
- Um prêmio pela sua produtividade, disse-me o doutor Eurico. Se nossas ações já fossem negociadas no mercado, estariam bastante valorizadas com essa avassaladora alta dos papéis em bolsa.
Naquele momento lembrei-me das 49 ações da Vale. O vice-presidente me informou que na véspera o meu papel estivera cotado a 41 dólares. Ou seja, podia vendê-las por cerca de dois mil dólares, uma achega nada desimportante ao meu orçamento de caixeiro-viajante.
Foi por isso que no dia seguinte procurei uma corretora de valores no centro da cidade. Lauro Chometon atendeu-me com muita cortesia e profissionalismo, mas jogou um balde de água fria nas minhas pretensões de realizar o capital: a cautela das minhas ações estava desatualizada, e eu teria de levá-la ao departamento de acionistas da Vale, ali na rua Santa Luzia, para trocá-la por outra que fosse aceita pelo mercado. Não o fiz, pois viajei imediatamente para trabalhar a praça que compreendia Muriaé, Governador Valadares, Teófilo Otoni, Vitória da Conquista e arredores. Foram seis meses de trabalho duro, mas profícuo. Graças ao meu desempenho, as vendas na região subiram quase trezentos por cento.
Ostentação autorizada
Eu recebia seguidos telegramas de congratulações do doutor Eurico, que me recomendou que me hospedasse no melhor hotel de cada cidade visitada. Sentia-me alcançado pela experiência de Hawthorne, pois auferia um tratamento à altura do meu rendimento. Recebendo uma generosa diária que em muito ultrapassava as minhas necessidades, assumi uma vida de ostentação autorizada, tinha amigos importantes e era assediado por moças ricas e bonitas. Confesso que cheguei a bendizer o fato de haver sido arrolado para testemunhar o assassinato do juiz, pois aquela gerência dos aparelhos de televisão só tinha servido para retardar o meu encontro com a bem-aventurança. Comissões cada vez maiores eram depositadas na minha conta bancária no Rio de Janeiro. Eu antevia, no 7 de setembro seguinte, o doutor Eurico a me entregar mais ações da companhia, que guardaria como troféu junto da cautela da Vale, dado que não tinha como negociá-las, nem disso tinha a menor necessidade.
Carro do ano
Com menos de trinta anos ninguém pensa no futuro: confesso que tinha ouvido falar em letras imobiliárias ou coisa parecida, mas só muito depois tomei conhecimento da existência de cadernetas de poupança, que rendiam juros e correções monetárias. Nada disso se situava no meu horizonte, nem tinha relação com os meus procedimentos.
- Pela primeira vez posso frequentar os melhores clubes, comer nos bons restaurantes e, se me der vontade, dirigir um carro do ano, foi o que pensei quando voava para merecidas férias no Rio de Janeiro. É verdade que também pensava na Elisinha.
(continua)
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