A grande dor das coisas que passaram
Marisa era realmente bonita.
- Você é especialista em paradoxos, hein?
- Eu poderia ter comentado alguma coisa sobre Zenão de Eleia, o paradoxo das noites escuras, o paradoxo hidrostático e o paradoxo de Fermi.
- De fato?
- Na hora nada disso me ocorreu, esse o preço do improviso.
Também gostava de Bandeira, Fernando Pessoa, Adélia Prado e Cecília Meireles. Fora certa vez a Itabira, só para pisar na terra de Drummond, e pretendia viajar a Divinópolis, para conhecer Adélia Prado.
-Então você gosta de poesia muito mais do que eu. Você é ligada à literatura?
-Profissionalmente, não. Sou formada em contabilidade.
Na continuação do diálogo, fiquei sabendo que precisava estudar sobre matemática financeira, pois os alemães a queriam no departamento de projetos. Respondi que podia ajudar. Impossível não se encantar com uma mulher assim bonita, alegre, cativante. Foi desse modo que tudo começou entre nós.
- Por sorteio, disse-me algumas vezes.
Ligou-me logo na manhã seguinte, e passamos a estudar no seu apartamento de Ipanema, duas horas em três dias da semana. May era uma intelectual fulgurante, e Laura, não menos intelectual, era contida e recatada. Tinham, em comum, o bom hábito de frequentar teatros e de ler livros complicados. Diferentemente delas, Marisa não era intelectual na acepção do termo, embora gostasse exageradamente de poesia.
Foi um namoro divertido, que misturava cálculos financeiros e leitura de versos da Divina Comédia, Pessoa, João Cabral, Lorca, Rimbaud, Paul Valéry. Isto, sim, é que era um paradoxo, dois profissionais da área técnica a invocarem versos dos poetas nos melhores momentos de seu quotidiano.
Reciprocávamos nossos conhecimentos sobre poesia. Certa vez, molhados da garoa que nos surpreendeu numa caminhada pelo Jardim de Alá, lembro-me de ter-lhe dito um verso de Manoel de Barros:
- Você é uma dona que me orvalha sanguemente.
Respondeu-me, para meu espanto, com outro verso de Manoel de Barros:
- Você enverda jia nas auroras e magnifica moscas!
Não conhecia Dante Milano, o poeta escondido, nem Carlos Pena Júnior, o jovem dos bares de Recife. Mas foi ela quem me mostrou a poesia “Serenata”, do peruano Manuel Scorza:
Ibamos a vivir toda la vida juntos.
Ibamos a morir toda la muerte juntos.
Adiós.
No sé si sabes lo que quiere decir adiós.
Adiós quiere decir ya no mirarse nunca, vivir entre otras gentes, reírse de otras cosas, morirse de otras penas.
Adiós es separarse, entendes?, separarse, olvidando, como traje inútil, la juventud.
Ibamos a hacer tantas cosas juntos!
Ahora tenemos otras citas.
Estrellas diferentes nos alumbran en noches diferentes.
La lluvia que te moja me deja seco a mí.
Está bien: adiós.
Contra el viento el poeta nada puede.
A la hora en que parten los adioses, el poeta sólo puede pedirle a las golondrinas que vuelen sin cesar sobre tu sueño.
Scorza, que morreu em 1983 em um acidente aéreo, em Madri, eu o sabia como autor de romances, como “Bom Dia para os Defuntos”, e me surpreendi ao conhecer esse seu admirável lado poético. Vi-me representado na poesia, pois sempre supus, em relação às mulheres que conheci, que “íbamos a vivir toda la vida juntos, íbamos a morir toda la muerte juntos”, mas tudo acabou no “adiós”, e não pude mirá-las nunca mais.
Um dia Marisa encantou-se com "Calligrammes", de Apollinaire, um livro raro que eu havia comprado em Paris, numa das minhas viagens com Cecília.
- Para você, disse eu, estendendo-lhe o livro.
- Carlinhos, eu te amo.
Marisa também gostava de ressaltar que Rubem Braga era da opinião de que um dos mais belos versos da língua portuguesa fora escrito por Camões com usar apenas sete palavras corriqueiras do idioma, “a grande dor das coisas que passaram”.
Lembro-me de ter dito que gostava muito de um verso de Drummond, “o hábito de sofrer, que tanto me diverte, é doce herança itabirana”, que diz tudo com palavras igualmente banais.
- Temos agora a opinião do Rubem Braga e a minha. Falta a sua, Marisa.
- Fico com o verso de Cora Coralina em que o milho se autodefine: “sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece”.
(1) A grande dor das coisas que passaram.
(2) O hábito de sofrer, que tanto me diverte, é doce herança itabirana.
(3) Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece.
Rubem Braga tem toda a prioridade, claro.
sábado, 30 de abril de 2011
quarta-feira, 27 de abril de 2011
SALVO PELO MANUEL BANDEIRA
MARISA
A festa ia ganhando em febrilidade. Valentina Ruas imitou Elisete Cardoso, e um rapaz de nome Paquito cantou “Toreador, en garde”, da Carmem, de Bizet.
Até que houve o sorteio de Marisa, chamada a explicar a diferença entre “contradição” e "paradoxo". Parecia preparada, restando-me a impressão de que a brincadeira não era tão improvisada como anunciado. "Contradição", disse com desembaraço, é um conflito entre duas ou mais informações, não interessa de onde partam. O conceito é óbvio, e não me cabe constrangê-los com exemplos do tipo: "se alguém disse que viu Jonas ontem em Copacabana, entra em contradição com a informação de que o referido só regressará da Etiópia na semana que vem."
- No paradoxo, prosseguiu, o que há é a concorrência, num dado evento, de duas condições incompatíveis do ponto de vista lógico: é um paradoxo fabricar veículos cada vez mais rápidos para utilizar no trânsito cada vez mais congestionado, como também é um paradoxo querer morar no Complexo do Alemão para fugir dos traficantes de drogas.
- Ou escolher a profissão de professor para enriquecer, observou Karl P., fazendo uma divertida mesura na minha direção.
Marisa recebeu muitos aplausos e manifestações que aprovavam seu desempenho. Era muito bonita, e isso também ajudava.
Eu também?
Por não conhecer ninguém, salvo meu influente parceiro da praia, não me supunha registrado na burocracia da festa. Daí minha surpresa quando também fui sorteado.
- Sua tarefa é ocupar o microfone por cinco minutos, disse-me Karl P.
Não tive como me esquivar da incumbência, assim inesperada, e quase fui vencido pela perplexidade. Estava nervoso e hesitante, principalmente porque a festa era de elevado nível intelectual, e os sorteados que me precederam haviam se saído muito bem. Salvou-me naquele momento a ideia, que felizmente me ocorreu, de recitar "Desencanto", de Manuel Bandeira:
"Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
- Eu faço versos como quem morre."
Fui aplaudido mais do que merecia, por mera gentileza, embora seja justo observar que me safara com aceitável dignidade. Não poderia mais dizer que a poesia nunca me servira ou que tenha me faltado, quando dela necessitei.
No encerramento da festa, houve distribuição de prêmios, e os que haviam sido sorteados recebemos das mãos de Karl P. um litro de uísque da sua coleção de doze anos. Foi naquele momento que conversei com Marisa pela primeira vez .
A festa ia ganhando em febrilidade. Valentina Ruas imitou Elisete Cardoso, e um rapaz de nome Paquito cantou “Toreador, en garde”, da Carmem, de Bizet.
Até que houve o sorteio de Marisa, chamada a explicar a diferença entre “contradição” e "paradoxo". Parecia preparada, restando-me a impressão de que a brincadeira não era tão improvisada como anunciado. "Contradição", disse com desembaraço, é um conflito entre duas ou mais informações, não interessa de onde partam. O conceito é óbvio, e não me cabe constrangê-los com exemplos do tipo: "se alguém disse que viu Jonas ontem em Copacabana, entra em contradição com a informação de que o referido só regressará da Etiópia na semana que vem."
- No paradoxo, prosseguiu, o que há é a concorrência, num dado evento, de duas condições incompatíveis do ponto de vista lógico: é um paradoxo fabricar veículos cada vez mais rápidos para utilizar no trânsito cada vez mais congestionado, como também é um paradoxo querer morar no Complexo do Alemão para fugir dos traficantes de drogas.
- Ou escolher a profissão de professor para enriquecer, observou Karl P., fazendo uma divertida mesura na minha direção.
Marisa recebeu muitos aplausos e manifestações que aprovavam seu desempenho. Era muito bonita, e isso também ajudava.
Eu também?
Por não conhecer ninguém, salvo meu influente parceiro da praia, não me supunha registrado na burocracia da festa. Daí minha surpresa quando também fui sorteado.
- Sua tarefa é ocupar o microfone por cinco minutos, disse-me Karl P.
Não tive como me esquivar da incumbência, assim inesperada, e quase fui vencido pela perplexidade. Estava nervoso e hesitante, principalmente porque a festa era de elevado nível intelectual, e os sorteados que me precederam haviam se saído muito bem. Salvou-me naquele momento a ideia, que felizmente me ocorreu, de recitar "Desencanto", de Manuel Bandeira:
"Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
- Eu faço versos como quem morre."
Fui aplaudido mais do que merecia, por mera gentileza, embora seja justo observar que me safara com aceitável dignidade. Não poderia mais dizer que a poesia nunca me servira ou que tenha me faltado, quando dela necessitei.
No encerramento da festa, houve distribuição de prêmios, e os que haviam sido sorteados recebemos das mãos de Karl P. um litro de uísque da sua coleção de doze anos. Foi naquele momento que conversei com Marisa pela primeira vez .
sábado, 23 de abril de 2011
Cora Coralina
ORAÇÃO DO MILHO
(Fui o angu pesado e constante do escravo na escuridão do eito.)
Sou a farinha econômica do proletário.
Sou a polenta do imigrante e a miga dos que começam a vida em terra estranha.
Alimento dos porcos e do triste mu de carga.
O que me planta não levanta comércio, nem avantaja dinheiro.
Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paióis.
Sou o cocho abastecido donde rumina o gado.
Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece.
Sou o cacarejo alegre das poedeiras à volta dos seus ninhos.
Sou a pobreza vegetal, agradecida a Vós, Senhor, que me fizestes necessário e humilde.
Sou o milho.
Milharal
As bandeiras altaneiras
vão-se abrindo em formação.
Pendões ao vento.
Extravasão da libido vegetal.
Procissão fálica, pagã.
Um sentido genésico domina o milharal.
Flor masculina erótica, libidinosa,
polinizando, fecundando
a florada adolescente das bonecas.
Cora Coralina (1889-1985)
(Fui o angu pesado e constante do escravo na escuridão do eito.)
...
Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante. Sou a farinha econômica do proletário.
Sou a polenta do imigrante e a miga dos que começam a vida em terra estranha.
Alimento dos porcos e do triste mu de carga.
O que me planta não levanta comércio, nem avantaja dinheiro.
Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paióis.
Sou o cocho abastecido donde rumina o gado.
Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece.
Sou o cacarejo alegre das poedeiras à volta dos seus ninhos.
Sou a pobreza vegetal, agradecida a Vós, Senhor, que me fizestes necessário e humilde.
Sou o milho.
Milharal
As bandeiras altaneiras
vão-se abrindo em formação.
Pendões ao vento.
Extravasão da libido vegetal.
Procissão fálica, pagã.
Um sentido genésico domina o milharal.
Flor masculina erótica, libidinosa,
polinizando, fecundando
a florada adolescente das bonecas.
...
(Bonecas verdes, vestidas de noiva, afrodisíacas, nupciais...)Cora Coralina (1889-1985)
quarta-feira, 20 de abril de 2011
Adélia Prado
Amor Feinho
Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado é igual fé, não teologa mais.
Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa e saudade roxa e branca, da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é: eu sou homem e você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão, o que ele tem é esperança:
- Eu quero amor feinho.
Adélia Prado (13 de dezembro de 1935)
Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado é igual fé, não teologa mais.
Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa e saudade roxa e branca, da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é: eu sou homem e você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão, o que ele tem é esperança:
- Eu quero amor feinho.
Adélia Prado (13 de dezembro de 1935)
sábado, 16 de abril de 2011
DE VOLTA A UMA VIDA NORMAL
UMA FESTA DE ALEMÃES
Fazer um doutorado de física e dar aulas de economia pode parecer muita carga, e é, mas os departamentos, de física e de economia, foram muito flexíveis comigo, de modo que pude cumprir razoavelmente todos os compromissos. Saía pouco e, mais, fiquei o tempo todo sem namorada.
O lado afetivo não se resolve unilateralmente, como no caso do profissional, onde em tese você decide tudo sozinho. A realização afetiva exige completude recíproca, um pré-requesito que multiplica as dificuldades a serem vencidas, por envolver um cotejo de duas personalidades, cada uma com seus recursos de adaptação, que, na hora de construir uma parceria, podem se somar ou se opor.
Em outras palavras, eu teria de encontrar alguém que se harmonizasse comigo, de meia-completude compatível, que, somando-se à minha própria meia-completude, se completasse comigo. Complicado?
- Sem dúvida, embora, apenas, o óbvio racionalizado.
E Laura? Certa vez, cheguei a pensar em visitá-la em Londres, mas acabei desistindo, por achar que deveria ser dela a iniciativa de sugerir que a visitasse. Seja como for, aos poucos deixamos de nos comunicar, o que era um modo tácito, e recíproco, de dar a perceber que uma retomada do nosso namoro já não nos servia, nem nos interessava.
- Fomos vencidos pela distância, cada qual dando prioridade à sua carreira.
Minha vida amorosa era, pois, um dos meus assuntos não resolvidos. Quando terminei o curso de física, com diploma de doutor, recebi convite do Departamento de Física para ser professor assistente, subordinado a Maria Hoyle. Chegara onde queria, após cumprir meu doutorado com notas excelentes, para além do fato de que granjeara no Departamento de Economia o prestígio de ser um bom professor. Os cursos que lá ministrava corriam sem dificuldade, mais ou menos no automático, exigindo de mim pouco mais do que ministrar as aulas, por serem assuntos do meu domínio, sem demandar grande esforço de planejamento ou de preparação.
- Valia-me a experiência da WED.
Podia agora levar uma vida normal, com horas de lazer suficientes. Até que houve uma festa na Gávea, à qual compareci a convite de Karl P, diretor da GDE, meu conhecido do vôlei de Ipanema. Os alemães costumavam reunir gente alegre e bonita, naquele salão imenso. Muita febrilidade. De repente, os convidados passaram a ser sorteados para a brincadeira de cumprir tarefas, quando todos se divertiam com o desconcerto e o improviso de cada um.
O primeiro sorteio indicou um careca barbudo e muito engraçado, todo vestido de preto, que depois fiquei sabendo ser o chefe dos matemáticos da GDE. Sua tarefa era contar uma história maluca, que lhe viesse à cabeça naquele instante. O cujo não se constrangeu, improvisando uma história que não fazia nenhum sentido:
“Quando tocou a vez do quinto postulado, declarei que por um ponto do plano, fora de uma reta, pode-se traçar uma paralela a essa reta, e somente uma.
- Como assim, Romualdo?, estranhou Henry Power, Junior, dirigindo-se a mim de forma pouco delicada. Por um ponto exterior a uma reta, não podemos traçar nenhuma paralela a esta reta, na geometria de Riemann, ou podemos traçar uma infinidade de paralelas a essa reta, na geometria de Lobachevski.
Depois, a questão foi sobre os afluentes do Solimões. Mencionei o Javari, o Jutaí, o Juruá, o Purus e o Japurá. Mais não sabia.
- Você se esqueceu do Içá, disse-me o Power, Junior.
Foi então que pensei: estou num filme do Godard ou num enredo do Jorge Luís Borges, quem sabe num safári com a Elsa Martinelli, e não num exame vestibular. Além disso, nada sei sobre o teorema de Green, e esse cara vai me empurrar o que não quero comprar, ao perceber que sou um otário, desuniformizado, mas de carteirinha. Se aqui permaneço, ele me perguntará sobre o esternoclidomastoídeo. Por isso, fui me levantando, meio sem graça, com a intenção de escafeder-me porta afora.
- What are you doing?
- Preciso me recolher ao futuro, Junior.”
O careca foi aplaudido com entusiamo e ainda ensaiou uns passos de dança, antes de colocar na cabeça uma peruca vermelha, que sacou do bolso do paletó. Divertia-me com tudo aquilo, desacostumado que estava com as reuniões sociais e seus torneios.
- O que eu não não podia supor é que a festa seria muito importante na minha história.
Fazer um doutorado de física e dar aulas de economia pode parecer muita carga, e é, mas os departamentos, de física e de economia, foram muito flexíveis comigo, de modo que pude cumprir razoavelmente todos os compromissos. Saía pouco e, mais, fiquei o tempo todo sem namorada.
O lado afetivo não se resolve unilateralmente, como no caso do profissional, onde em tese você decide tudo sozinho. A realização afetiva exige completude recíproca, um pré-requesito que multiplica as dificuldades a serem vencidas, por envolver um cotejo de duas personalidades, cada uma com seus recursos de adaptação, que, na hora de construir uma parceria, podem se somar ou se opor.
Em outras palavras, eu teria de encontrar alguém que se harmonizasse comigo, de meia-completude compatível, que, somando-se à minha própria meia-completude, se completasse comigo. Complicado?
- Sem dúvida, embora, apenas, o óbvio racionalizado.
E Laura? Certa vez, cheguei a pensar em visitá-la em Londres, mas acabei desistindo, por achar que deveria ser dela a iniciativa de sugerir que a visitasse. Seja como for, aos poucos deixamos de nos comunicar, o que era um modo tácito, e recíproco, de dar a perceber que uma retomada do nosso namoro já não nos servia, nem nos interessava.
- Fomos vencidos pela distância, cada qual dando prioridade à sua carreira.
Minha vida amorosa era, pois, um dos meus assuntos não resolvidos. Quando terminei o curso de física, com diploma de doutor, recebi convite do Departamento de Física para ser professor assistente, subordinado a Maria Hoyle. Chegara onde queria, após cumprir meu doutorado com notas excelentes, para além do fato de que granjeara no Departamento de Economia o prestígio de ser um bom professor. Os cursos que lá ministrava corriam sem dificuldade, mais ou menos no automático, exigindo de mim pouco mais do que ministrar as aulas, por serem assuntos do meu domínio, sem demandar grande esforço de planejamento ou de preparação.
- Valia-me a experiência da WED.
Podia agora levar uma vida normal, com horas de lazer suficientes. Até que houve uma festa na Gávea, à qual compareci a convite de Karl P, diretor da GDE, meu conhecido do vôlei de Ipanema. Os alemães costumavam reunir gente alegre e bonita, naquele salão imenso. Muita febrilidade. De repente, os convidados passaram a ser sorteados para a brincadeira de cumprir tarefas, quando todos se divertiam com o desconcerto e o improviso de cada um.
O primeiro sorteio indicou um careca barbudo e muito engraçado, todo vestido de preto, que depois fiquei sabendo ser o chefe dos matemáticos da GDE. Sua tarefa era contar uma história maluca, que lhe viesse à cabeça naquele instante. O cujo não se constrangeu, improvisando uma história que não fazia nenhum sentido:
“Quando tocou a vez do quinto postulado, declarei que por um ponto do plano, fora de uma reta, pode-se traçar uma paralela a essa reta, e somente uma.
- Como assim, Romualdo?, estranhou Henry Power, Junior, dirigindo-se a mim de forma pouco delicada. Por um ponto exterior a uma reta, não podemos traçar nenhuma paralela a esta reta, na geometria de Riemann, ou podemos traçar uma infinidade de paralelas a essa reta, na geometria de Lobachevski.
Depois, a questão foi sobre os afluentes do Solimões. Mencionei o Javari, o Jutaí, o Juruá, o Purus e o Japurá. Mais não sabia.
- Você se esqueceu do Içá, disse-me o Power, Junior.
Foi então que pensei: estou num filme do Godard ou num enredo do Jorge Luís Borges, quem sabe num safári com a Elsa Martinelli, e não num exame vestibular. Além disso, nada sei sobre o teorema de Green, e esse cara vai me empurrar o que não quero comprar, ao perceber que sou um otário, desuniformizado, mas de carteirinha. Se aqui permaneço, ele me perguntará sobre o esternoclidomastoídeo. Por isso, fui me levantando, meio sem graça, com a intenção de escafeder-me porta afora.
- What are you doing?
- Preciso me recolher ao futuro, Junior.”
O careca foi aplaudido com entusiamo e ainda ensaiou uns passos de dança, antes de colocar na cabeça uma peruca vermelha, que sacou do bolso do paletó. Divertia-me com tudo aquilo, desacostumado que estava com as reuniões sociais e seus torneios.
- O que eu não não podia supor é que a festa seria muito importante na minha história.
quarta-feira, 13 de abril de 2011
QUEM SABE ESTAVA SONHANDO?
O Kurtis, ora, o Kurtis!
De Sitter veio à minha sala, numa manhã de segunda-feira.
- Acho que tenho uma novidade boa para você. O Departamento de Economia quer que você dê aulas sobre decisões em regime de incerteza e sobre gerência de contratos, durante este semestre.
- Como? Decisões em regime de incerteza?
- E contratos empresariais, mas não se assuste. O professor Kurtis pediu demissão no ano passado, e o Departamento de Economia encontra-se numa emergência, pois não encontrou nenhum substituto no mercado.
- Kurtis? Eram cadeiras do Kurtis? Nem imagino por que fui lembrado...
- Porque tem experiência em decisões em regime de incerteza e em negociações contratuais.
- Como assim? Como me descobriram?
- Não há outros nomes além do seu, pois esse assunto é muito recente no país. O Kurtis assistiu a uma palestra que você deu em Buenos Aires e indicou-o para substituto, além do fato de sua aula de candidato ter sido considerada excepcional pelos professores da banca.
Em estado de perplexidade, não sabia como reagir, nem o que responder.
- Bem... É que...
- Você será muito bem remunerado.
- Não estava pensando nessa questão, mas na responsabilidade de que estarei investido. Embora razoável conhecedor do assunto, isto é, da parte operacional, falta-me experiência para assumir um compromisso dessa envergadura e magnitude.
- Você tem talento para a missão. Quanto à experiência, não se preocupe, pois ela virá com a prática. Faça como D´Alembert, vá em frente que a fé virá depois.
- Nesse caso...
- Suas aulas terão início dentro de duas semanas. Previno-o, porém, de que não será fácil acumular o doutorado de física com essa carga adicional de trabalho.
No Departamento de Economia, o professor-chefe Estênio Florão tornou a proposta ainda mais abrangente. Se eu fosse bem avaliado naquele primeiro semestre, poderia ser efetivado como professor titular, já no semestre seguinte.
- Sabemos da sua competência nesse assunto, pelos textos que você produziu sobre os métodos de Bailey e de Lenzi, computação contínua de juros, declínios hiperbólicos e raízes perdidas de Descartes. Que nos foram trazidos por um economista da WED, que fez um mestrado conosco. Além disso, veio a recomendação do Kurtis, e os professores da banca de física gostaram da sua aula. Decidimos apostar em você...
- Está claro que não terei de abandonar o curso de física...
- Claríssimo.
Voltei a casa ainda perplexo, consultando-me dos pés à cabeça para ter certeza de que não estava sonhando. Dar aulas remuneradas na Economia e desenvolver minhas idéias sobre incorporação de financiamentos, avaliação dos projetos de investimento com base no perfil de lucro e orientação das decisões tomadas em regime de incerteza. Ah, a estratégia da competência negocial... Sem abandonar a física, isso mesmo, sem abandonar a física. Era encarar a nova situação com naturalidade, pois, inesperada embora, não passava de uma etapa, facilitadora, do caminho que escolhera para mim.
De Sitter veio à minha sala, numa manhã de segunda-feira.
- Acho que tenho uma novidade boa para você. O Departamento de Economia quer que você dê aulas sobre decisões em regime de incerteza e sobre gerência de contratos, durante este semestre.
- Como? Decisões em regime de incerteza?
- E contratos empresariais, mas não se assuste. O professor Kurtis pediu demissão no ano passado, e o Departamento de Economia encontra-se numa emergência, pois não encontrou nenhum substituto no mercado.
- Kurtis? Eram cadeiras do Kurtis? Nem imagino por que fui lembrado...
- Porque tem experiência em decisões em regime de incerteza e em negociações contratuais.
- Como assim? Como me descobriram?
- Não há outros nomes além do seu, pois esse assunto é muito recente no país. O Kurtis assistiu a uma palestra que você deu em Buenos Aires e indicou-o para substituto, além do fato de sua aula de candidato ter sido considerada excepcional pelos professores da banca.
Em estado de perplexidade, não sabia como reagir, nem o que responder.
- Bem... É que...
- Você será muito bem remunerado.
- Não estava pensando nessa questão, mas na responsabilidade de que estarei investido. Embora razoável conhecedor do assunto, isto é, da parte operacional, falta-me experiência para assumir um compromisso dessa envergadura e magnitude.
- Você tem talento para a missão. Quanto à experiência, não se preocupe, pois ela virá com a prática. Faça como D´Alembert, vá em frente que a fé virá depois.
- Nesse caso...
- Suas aulas terão início dentro de duas semanas. Previno-o, porém, de que não será fácil acumular o doutorado de física com essa carga adicional de trabalho.
No Departamento de Economia, o professor-chefe Estênio Florão tornou a proposta ainda mais abrangente. Se eu fosse bem avaliado naquele primeiro semestre, poderia ser efetivado como professor titular, já no semestre seguinte.
- Sabemos da sua competência nesse assunto, pelos textos que você produziu sobre os métodos de Bailey e de Lenzi, computação contínua de juros, declínios hiperbólicos e raízes perdidas de Descartes. Que nos foram trazidos por um economista da WED, que fez um mestrado conosco. Além disso, veio a recomendação do Kurtis, e os professores da banca de física gostaram da sua aula. Decidimos apostar em você...
- Está claro que não terei de abandonar o curso de física...
- Claríssimo.
Voltei a casa ainda perplexo, consultando-me dos pés à cabeça para ter certeza de que não estava sonhando. Dar aulas remuneradas na Economia e desenvolver minhas idéias sobre incorporação de financiamentos, avaliação dos projetos de investimento com base no perfil de lucro e orientação das decisões tomadas em regime de incerteza. Ah, a estratégia da competência negocial... Sem abandonar a física, isso mesmo, sem abandonar a física. Era encarar a nova situação com naturalidade, pois, inesperada embora, não passava de uma etapa, facilitadora, do caminho que escolhera para mim.
sábado, 9 de abril de 2011
A GENTE NUNCA SABE
A IDADE DOS FÍSICOS
Não obstante o entusiasmo pela minha nova carreira, incomodava-me o fato de ser bem mais velho que meus colegas. Quem sabe já tivesse passado do ponto? Decidi certa vez pesquisar sobre a idade produtiva de Newton, Einstein, Maxwell, Bohr, Heisenberg e Gödel, alguns dos fundadores da ciência moderna.
- O resultado foi constatar a precocidade dos iluminados da ciência.
Os principais trabalhos de Isaac Newton foram concluídos antes dos 25 anos, uma boa parte no tempo em que ficou isolado em Woolsthorpe, uma vila rural, ao abrigo da peste que assolou a Inglaterra em 1665 e obrigou ao fechamento da Universidade de Cambridge. Não sem razão, 1665 é chamado de o "anus miraculous" de Newton.
- A peste grassando, avassaladora, e Newton, numa boa, navegando no seu "anus miraculous" e formulando a Lei da Gravitação Universal : tudo se passa como se matéria atraísse matéria, na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias.
Albert Einstein apresentou em 1905, o "anus miraculous" que lhe coube, as teorias sobre a natureza dual da luz, sobre o efeito fotoelétrico, sobre o movimento browniano e sobre a relatividade especial. Tinha então 26 anos. Mesmo tendo de exercer um trabalho burocrático, o de examinar uma e outra proposta na seção de patentes da Suíça, Einstein reformulou as noções de espaço e tempo e pautou uma nova era para a ciência. James Clerk Maxwell, cujas equações uniram a eletricidade ao magnetismo e à ótica, foi considerado gênio aos 24 anos; Werner Heisenberg estabeleceu o princípio da incerteza com 26 anos; Niels Bohr ganhou a medalha de ouro da Academia de Ciências da Dinamarca aos 22 anos, por seus trabalhos sobre tensão superficial da água, muito antes de enunciar o princípio da complementaridade; Kurt Gödel abalou os alicerces da matemática quando tinha apenas 25 anos, provando que há verdades matemáticas que não podem ser demonstradas e, de outro lado, que na matemática não é possível garantir a consistência de um conjunto de postulados escolhidos arbitrariamente.
- Todos jovens, mal saídos da adolescência.
Constatei, porém, uma primeira e gloriosa exceção, ao examinar o caso de Erwin Schrödinger, descobridor de que o comportamento do elétron pode ser explicado por uma equação de onda, que o situa em diferentes posições no espaço. Ao mesmo tempo! O elétron, ou qualquer outra partícula quântica, é percebido não como um “ponto material” dotado de uma posição definida em cada instante, mas como uma entidade matemática chamada “função de onda”. Muito complicado e, não obstante, essa equação é uma das grandes vitórias da inteligência humana. Pois bem, Schrödinger formulou essa teoria em 1926, quando tinha 39 anos, e esse fato podia ser um argumento a meu favor, que só seria físico aos 33 anos.
Descobri posteriormente outra exceção: Max Planck tinha 41 anos quando descobriu a Constante de Planck e propôs a Teoria da Radiação.
- Duas exceções para mim já configuram uma sub-regra, e isso me deu um pouco de alento, conforto e esperança.
Um amigo me perguntou se eu tinha pretensão de ser um Bohr, um Einstein ou, considerando a minha idade, um Schrödinger ou um Planck, pois estranhou essa pesquisa sobre as idades dos gênios.
- Acho que você está querendo ganhar um Prêmio Nobel!
Informei-lhe que meu desejo era ser um bom professor de física. Quanto ao Prêmio Nobel, respondi à ironia dando-lhe a mesma resposta de Edith Pastoril, a nonagenária da Antero de Quental, quando lhe perguntam se acha possível receber uma proposta de casamento:
- Por que não? A gente nunca sabe...
Não obstante o entusiasmo pela minha nova carreira, incomodava-me o fato de ser bem mais velho que meus colegas. Quem sabe já tivesse passado do ponto? Decidi certa vez pesquisar sobre a idade produtiva de Newton, Einstein, Maxwell, Bohr, Heisenberg e Gödel, alguns dos fundadores da ciência moderna.
- O resultado foi constatar a precocidade dos iluminados da ciência.
Os principais trabalhos de Isaac Newton foram concluídos antes dos 25 anos, uma boa parte no tempo em que ficou isolado em Woolsthorpe, uma vila rural, ao abrigo da peste que assolou a Inglaterra em 1665 e obrigou ao fechamento da Universidade de Cambridge. Não sem razão, 1665 é chamado de o "anus miraculous" de Newton.
- A peste grassando, avassaladora, e Newton, numa boa, navegando no seu "anus miraculous" e formulando a Lei da Gravitação Universal : tudo se passa como se matéria atraísse matéria, na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias.
Albert Einstein apresentou em 1905, o "anus miraculous" que lhe coube, as teorias sobre a natureza dual da luz, sobre o efeito fotoelétrico, sobre o movimento browniano e sobre a relatividade especial. Tinha então 26 anos. Mesmo tendo de exercer um trabalho burocrático, o de examinar uma e outra proposta na seção de patentes da Suíça, Einstein reformulou as noções de espaço e tempo e pautou uma nova era para a ciência. James Clerk Maxwell, cujas equações uniram a eletricidade ao magnetismo e à ótica, foi considerado gênio aos 24 anos; Werner Heisenberg estabeleceu o princípio da incerteza com 26 anos; Niels Bohr ganhou a medalha de ouro da Academia de Ciências da Dinamarca aos 22 anos, por seus trabalhos sobre tensão superficial da água, muito antes de enunciar o princípio da complementaridade; Kurt Gödel abalou os alicerces da matemática quando tinha apenas 25 anos, provando que há verdades matemáticas que não podem ser demonstradas e, de outro lado, que na matemática não é possível garantir a consistência de um conjunto de postulados escolhidos arbitrariamente.
- Todos jovens, mal saídos da adolescência.
Constatei, porém, uma primeira e gloriosa exceção, ao examinar o caso de Erwin Schrödinger, descobridor de que o comportamento do elétron pode ser explicado por uma equação de onda, que o situa em diferentes posições no espaço. Ao mesmo tempo! O elétron, ou qualquer outra partícula quântica, é percebido não como um “ponto material” dotado de uma posição definida em cada instante, mas como uma entidade matemática chamada “função de onda”. Muito complicado e, não obstante, essa equação é uma das grandes vitórias da inteligência humana. Pois bem, Schrödinger formulou essa teoria em 1926, quando tinha 39 anos, e esse fato podia ser um argumento a meu favor, que só seria físico aos 33 anos.
Descobri posteriormente outra exceção: Max Planck tinha 41 anos quando descobriu a Constante de Planck e propôs a Teoria da Radiação.
- Duas exceções para mim já configuram uma sub-regra, e isso me deu um pouco de alento, conforto e esperança.
Um amigo me perguntou se eu tinha pretensão de ser um Bohr, um Einstein ou, considerando a minha idade, um Schrödinger ou um Planck, pois estranhou essa pesquisa sobre as idades dos gênios.
- Acho que você está querendo ganhar um Prêmio Nobel!
Informei-lhe que meu desejo era ser um bom professor de física. Quanto ao Prêmio Nobel, respondi à ironia dando-lhe a mesma resposta de Edith Pastoril, a nonagenária da Antero de Quental, quando lhe perguntam se acha possível receber uma proposta de casamento:
- Por que não? A gente nunca sabe...
sábado, 2 de abril de 2011
UMA ESCADA PARA O INFINITO
BOLA NA ARQUIBANCADA
Foram três anos de exclusiva dedicação à física, o que também exigiu de mim o estudo da matemática avançada. Ótimo, muito ótimo, pois esta é uma ferramenta que me servirá pelo resto da vida. A física, que não tem assuntos irrelevantes, abrange desde as partículas subatômicas até o Universo incomensurável. Entender um processo elétrico, a formação de uma onda sonora, a dinâmica dos fluidos, a refração da luz, a expansão térmica, a indução eletromagnética, exprimir por meio de equações a órbita de um planeta, medir o tamanho de uma galáxia, descrever matematicamente o comportamento dos gases, saber como relacionar trabalho e energia ou calcular a velocidade de escape de um projétil, conhecer eletricidade, acústica, relatividade, termodinâmica, mecânica quântica, teoria das cordas, teoria dos campos, tudo isso é fascinante, servindo à curiosidade do homem estarrecido diante da grandiosidade do Universo.
- A tarefa dos físicos é buscar sempre um novo patamar de conhecimento, de onde empreenderá nova ascensão, até o patamar seguinte. Patamares infinitos, eis que a obra científica nunca será dada como concluída.
Deu-se mal quem assim não entendeu. Até o início do século XX, os físicos confiavam na sua capacidade de observação e dispunham de um conjunto de leis, a mecânica clássica de Newton, que, conforme se supunha, explicava perfeitamente o Universo. Mecânica, calor, eletricidade, magnetismo, ótica e acústica tinham sido objeto de estudos bem-sucedidos, gerando euforia e superestimação dos êxitos alcançados. Tanto que, em 27 de abril de 1900, o conceituado físico escocês Lorde Kelvin, muito conhecido por haver introduzido o conceito de temperatura absoluta, enviou uma carta às autoridades britânicas informando que a física já conhecia praticamente tudo o que havia de importante no Universo. Aos físicos do futuro caberia, de fato, descobrir os pormenores complementares de uma estrutura perfeitamente conhecida, não mais que isso.
- Bola na arquibancada.
- Max Planck descobriu, ainda em 1900, que a energia se apresenta na forma de pacotes (os quanta);
- com sua relatividade especial, já em 1905, Einstein provou que, em termos de espaço e tempo, tudo depende do referencial considerado, o que coloca em xeque as nossas observações, e, com a relatividade geral, em 1915, reformou a teoria newtoniana, cuja lei da gravitação apenas quantifica corretamente o que Newton percebera como uma atração entre corpos materiais;
- o próprio Einstein, naquele "anus miraculous” de 1905, reconheceu a natureza dual da luz, que é, ao mesmo tempo, onda e partícula, sem saber que estava pavimentando caminho para o trânsito da mecânica quântica, a qual se rege pela indeterminação e pela complementaridade e na qual o determinismo de Aristóteles cede lugar ao acaso das probabilidades;
- Ernest Rutherford descobriu em 1911 que o átomo tem um núcleo cheio de prótons, carregados positivamente;
- Werner Heisenberg constatou em 1927 que as partículas subatômicas não podem ter momento e posição definidos simultaneamente, ferindo a reputação da nossa capacidade de observação;
- Em 1928 Niels Bohr percebeu a coexistência de duas descrições diferentes para um mesmo fenômeno físico, que David Bohm mais tarde chamou de ordem implicada e ordem explicada;
- Murray Gell -Mann em 1950 descobriu os “quarks”, que se unem para formar nêutrons, prótons e mésons;
- Richard Feynman juntou relatividade e mecânica quântica, no início da segunda metade do século XX.
- que dizer, finalmente, da nova cosmologia, que surgiu após a constatação de que o Universo nasceu de um Big Bang? Dos buracos negros, consumidores de informações? Da matéria escura e da energia escura, que ninguém nunca viu, mas juntas respondem por noventa e seis por cento do conteúdo do Universo?
Eu estudava até a exaustão, pois tinha a intenção de entender tudo isso. E, na solidão ambiciosa, refletia pretensiosamente:
- Quero ser um observador qualificado do espetáculo soberano do Universo.
Foram três anos de exclusiva dedicação à física, o que também exigiu de mim o estudo da matemática avançada. Ótimo, muito ótimo, pois esta é uma ferramenta que me servirá pelo resto da vida. A física, que não tem assuntos irrelevantes, abrange desde as partículas subatômicas até o Universo incomensurável. Entender um processo elétrico, a formação de uma onda sonora, a dinâmica dos fluidos, a refração da luz, a expansão térmica, a indução eletromagnética, exprimir por meio de equações a órbita de um planeta, medir o tamanho de uma galáxia, descrever matematicamente o comportamento dos gases, saber como relacionar trabalho e energia ou calcular a velocidade de escape de um projétil, conhecer eletricidade, acústica, relatividade, termodinâmica, mecânica quântica, teoria das cordas, teoria dos campos, tudo isso é fascinante, servindo à curiosidade do homem estarrecido diante da grandiosidade do Universo.
- A tarefa dos físicos é buscar sempre um novo patamar de conhecimento, de onde empreenderá nova ascensão, até o patamar seguinte. Patamares infinitos, eis que a obra científica nunca será dada como concluída.
Deu-se mal quem assim não entendeu. Até o início do século XX, os físicos confiavam na sua capacidade de observação e dispunham de um conjunto de leis, a mecânica clássica de Newton, que, conforme se supunha, explicava perfeitamente o Universo. Mecânica, calor, eletricidade, magnetismo, ótica e acústica tinham sido objeto de estudos bem-sucedidos, gerando euforia e superestimação dos êxitos alcançados. Tanto que, em 27 de abril de 1900, o conceituado físico escocês Lorde Kelvin, muito conhecido por haver introduzido o conceito de temperatura absoluta, enviou uma carta às autoridades britânicas informando que a física já conhecia praticamente tudo o que havia de importante no Universo. Aos físicos do futuro caberia, de fato, descobrir os pormenores complementares de uma estrutura perfeitamente conhecida, não mais que isso.
- Bola na arquibancada.
Kelvin
Kelvin morreu poucos anos depois, sem perceber a extensão do seu equívoco, que se pode avaliar pelos eventos a seguir:
- Max Planck descobriu, ainda em 1900, que a energia se apresenta na forma de pacotes (os quanta);
- com sua relatividade especial, já em 1905, Einstein provou que, em termos de espaço e tempo, tudo depende do referencial considerado, o que coloca em xeque as nossas observações, e, com a relatividade geral, em 1915, reformou a teoria newtoniana, cuja lei da gravitação apenas quantifica corretamente o que Newton percebera como uma atração entre corpos materiais;
- o próprio Einstein, naquele "anus miraculous” de 1905, reconheceu a natureza dual da luz, que é, ao mesmo tempo, onda e partícula, sem saber que estava pavimentando caminho para o trânsito da mecânica quântica, a qual se rege pela indeterminação e pela complementaridade e na qual o determinismo de Aristóteles cede lugar ao acaso das probabilidades;
- Ernest Rutherford descobriu em 1911 que o átomo tem um núcleo cheio de prótons, carregados positivamente;
- Werner Heisenberg constatou em 1927 que as partículas subatômicas não podem ter momento e posição definidos simultaneamente, ferindo a reputação da nossa capacidade de observação;
- Em 1928 Niels Bohr percebeu a coexistência de duas descrições diferentes para um mesmo fenômeno físico, que David Bohm mais tarde chamou de ordem implicada e ordem explicada;
- Murray Gell -Mann em 1950 descobriu os “quarks”, que se unem para formar nêutrons, prótons e mésons;
- Richard Feynman juntou relatividade e mecânica quântica, no início da segunda metade do século XX.
- que dizer, finalmente, da nova cosmologia, que surgiu após a constatação de que o Universo nasceu de um Big Bang? Dos buracos negros, consumidores de informações? Da matéria escura e da energia escura, que ninguém nunca viu, mas juntas respondem por noventa e seis por cento do conteúdo do Universo?
Eu estudava até a exaustão, pois tinha a intenção de entender tudo isso. E, na solidão ambiciosa, refletia pretensiosamente:
- Quero ser um observador qualificado do espetáculo soberano do Universo.
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