quarta-feira, 22 de agosto de 2007

REUNIÕES ELEGANTES


O CASO DO DENTISTA

Todo o tempo eu me senti numa Roma, de Fellini, e não estranharia nem um pouco se Fiona Florence e Mastroianni irrompessem abraçados na sala imensa. Começou com Angelina, que declamou a poesia “Congresso no Polígono das Secas (ritmo senador; sotaque sulista)”, de João Cabral de Melo Neto. Depois, um torneio de mágicas, muito divertido e interessante.
O melhor veio, porém, quando se fez um sorteio para ver quem iria propor
um enigma relacionado com Shakespeare e suas personagens, sendo certo que todos ali estavam com suas histórias muito bem preparadas. Assim se divertem os intelectuais...
Eu não tinha história nenhuma, nem me incluíram no sorteio, pois ali me achava quase na condição de penetra.


Cartas

A sorteada foi uma escritora chamada Alice Ben-dov. Vou tentar reproduzir a história que ela contou, sobre um dentista do Leblon, cujo um dia recebeu uma carta anônima para lá de esquisita:

“Silvestre, você não passa de um dentista idiota, pois ignora sua própria história. Se desejar conhecê-la, almoce amanhã no Humphrey’s, exatamente à uma. Como você está familiarizado com Shakespeare, se olhar para baixo, saberá o porquê...


Tiago Lessone.”


Eis o que Silvestre pensou dessa carta:

“Sou idiota, como não, e muito obrigado por manifestar sua abalizada opinião. Ignoro a minha história? Almoçar à uma, no Humphrey’s? Ora, pois! Como conheço Shakespeare, só por isso, basta olhar para baixo... Para ver a rua?
Constatar o quê? Muito barulho por nada? Alguma Sorveteria do Hamlet, com picolés da Dinamarca, um Mercador de Bugigangas Importadas, ou o Rei Lear, com seus bolinhos de bacalhau e geladeiras de segunda mão?
Ou será a jaqueira do nosso playground?
Peço-lhe, querido bardo, a gentileza de informar ao senhor Tiago Lessone, seja ele quem for, que olhei para baixo e, para minha grande surpresa e desinformação, lá estavam os meus pés, em número de dois, calçando sapatos pretos de tamanho 42, assentados tranqüilamente no chão do meu consultório, e mais abaixo, uma jaqueira que faz o incomensurável favor de nunca ter dado nenhuma jaca.
Peço-lhe, mais, que informe ao Lessone que não tenho nenhum tempo, nem disposição, para comparecer ao Humphrey’s”.


Dias depois, o dentista recebeu outra carta:

“Silvestre, você não deu importância à minha carta e não compareceu ao Humphrey’s. Sua história não lhe interessa? Segunda chance, amanhã, no Humphrey’s, às 13 horas. Olha para baixo!

Tiago Lesst.”

Havia uma grande mudança, logo percebida pelo Silvestre, pois o sobrenome, Lessone, fora trocado por Lesst. Pela segunda vez ele decidiu não fazer nada. Houve, mais tarde, uma terceira carta, recomendando, igualmente, que ele comparecesse ao Humphrey’s, mas a assinatura mudara desta vez para Tiago Lessfirst. Tudo muito esquisito...


Lessone, Lesst ou Lessfirst?


Silvestre pensou longamente nos três sobrenomes do Tiago, entendeu o recado e decidiu comparecer ao Humphrey’s na hora sugerida pela terceira carta. Para sua grande surpresa e desapontamento, no restaurante encontrou sua mulher abraçada com um amante.
Silvestre não é homem de grandes explosões, mas acabou separando-se da mulher.


O enigma

- Por que Silvestre atendeu à terceira carta?, eis o enigma, arrematou Alice, dirigindo-se aos presentes.

Pelo regulamento, os convidados tinham 30 minutos para desvendar a história. Houve, no início, muito palpite, desorientação e manifestações equivocadas. Depois, todos permaneceram em silêncio, e tão longa foi a pausa que tive a impressão de que ninguém chegaria à solução.
Quando já se encerrava o prazo, entretanto, Susana de Malta, que é tradutora juramentada e mora na Aristides, apresentou a solução do enigma:

- A instrução de olhar para baixo tinha a ver com o sobrenome cambiante. Tiago “Lessone” é Tiago sem “one”; Tiago “Lesst” é Tiago sem “T”; e Tiago “Lessfirst” é Tiago sem a inicial. Três informações na mesma direção, pois Tiago sem a inicial é Iago. Sim, Iago, a personagem pérfida que insinua para Otelo que Desdêmona tem um romance secreto com Cássio. Na tragédia de Shakespeare, Otelo acredita na intriga e, possuído pelo demônio do ciúme, estrangula Desdêmona e se suicida.

- Entendemos muito bem, ou seja, uma recorrência shakespeariana como forma de alertar sobre a mulher. Silvestre só entendeu, afinal, porque conhecia a obra de Shakespeare, o que significa que cultura, entre outras finalidades, também serve para alertar maridos traídos.

- Serve muito,
observou Alice. Silvestre teve mais bom senso que Otelo. Quero dizer, foi menos radical...

- Só que no caso do Silvestre a denúncia era verdadeira, ao contrário do que ocorre na tragédia de Shakespeare.

- Mais uma agravante contra Otelo. Esse Humphrey’s deve ser um lugar elegante...

- Sim, os clientes fazem as reservas com antecedência, o que permitiu as cartas antecipadas do Tiago sem T para o dentista. E tem mais...O Tiago sem T, se não for o gerente responsável pelas reservas, tem acesso a elas, nesse restaurante.

E o Peloponeso?

Tudo se encerrou depois de algumas projeções coloridas do conjunto arqueológico de Epidauro, um santuário situado a nordeste do Peloponeso. Com efeito, uma tertúlia de intelectuais.
Mas o Peloponeso, para que lado fica mesmo o Peloponeso?

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