A ECONOMIA, IDIOTA!
Na infância, lá nas profundezas de Minas Gerais, o advogado Zé Flores foi uma vítima constante dos cães de rua, que sobre ele avançavam sem nenhuma motivação, nem constrangimento. Lembra-se de que tinha de andar pela cidade com muito cuidado, mas nem sempre conseguia escapar das mordidas dos vira-latas, o que explica as cicatrizes que carrega em ambas as pernas. Outras crianças, mesmo que estivessem com ele, nunca eram molestadas, muito menos os adultos.
- Por que só avançam em mim?
- Os cães sentem o cheiro do seu medo, dizia-lhe o pai.
Até hoje, decorridos tantos anos, o advogado sente calafrios quando passa perto de um cachorro. Daí o seu desespero, quando, há oito meses, Dona Clarinha comprou o apartamento do terceiro andar. Ela veio com dezesseis cães! Dizem que é milionária e tem cento e cinquenta cachorros, entre grandes e pequenos, que ficam concentrados no sítio de Guapimirim, pelas bandas de Teresópolis. Lá, num canil que é coisa de cinema, um veterinário de dedicação exclusiva consulta diariamente a saúde dos animais, que, além disso, têm à sua disposição os serviços de dois tratadores profissionais. Junto de si, onde quer que esteja, a mulher tem sempre dezesseis cães, dos quais doze são substituídos a cada mês, enquanto os preferidos Tartufo, Michael Jordan, Branquinha e Almodóvar constituem a parte fixa da cachorrada. Quando descia para passear, Dona Clarinha era seguida por uma fila indiana de vira-latas, puxada pelo Tarturfo.
Se um dos animais saía da fila ou se atrasava, era prontamente admoestado pela dona:
- Vê se te emenda Branquinha!
- Vai ficar de castigo, Riquelme!
- Você não me engana, não, Rigoletto!
Era irritante aguardar que os dezesseis cachorros deixassem o elevador ou que desobstruíssem a saída de serviço. Sem contar o medo do Zé de que algum deles avançasse sobre suas pernas. Decidiu levar a questão ao síndico, que, embora também incomodado com o fato inusitado, não viu na convenção do condomínio nenhum dispositivo que pudesse ser usado contra Dona Clarinha.
Modus in rebus, retrucou Zé Flores, que tinha um inesgotável repertório de frases latinas. Podemos discutir o assunto no âmbito do artigo 31 da convenção. Veja aqui: “Alterações deste regulamento serão acolhidas, em Assembleia Geral, sempre que tiverem o apoio de dois terços dos condôminos em dia com suas obrigações condominiais”.
- Ótima ideia!
Convocada a reunião, Dona Clarinha afirmou que tinha lido a convenção do condomínio antes de comprar o apartamento. Nenhuma restrição a cães, que não eram sequer mencionados em nenhum lugar do texto.
- Estou amparada pela convenção do condomínio!
- Engana-se, disse o síndico. A senhora não leu o artigo 31.
- Li, sim, e o artigo não faz nenhuma menção a cachorro.
- A convenção pressupunha a existência de moradores convencionais, com perdão do trocadilho. Não sendo o caso, recorre-se ao artigo 31.
Nesse ponto José Flores entrou na discussão, pronto para colocar seu plano em ação.
- Dona Coisinha...
- Dona Coisinha, não senhor. Dona Clarinha!
- Eu disse Dona Clarinha, a senhora é que me entendeu mal. Outro dia fui hostilizado pelo Michael Jackson...
- Michael Jordan.
- Seus cachorros são imundos e fedorentos e infestam o edifício de pulgas!
- Como ousa dizer isso? Dou banho nos dezesseis cachorros pelo menos uma vez por dia!
- Aí está o que queríamos saber. Seus dezesseis cachorros acarretam um colossal desperdício de água. Por isso é que a conta de água do condomínio é tão alta. Um absurdo, total e definitivo!
Colocada a matéria em votação, só a dona votou pelos cachorros. Clarinha, que teve sessenta dias de prazo para sumir com os animais, decidiu vender o apartamento e mudou-se resignadamente, levando a cachorrada para longe.
- Foi assim a grande vitória de Zé Flores sobre os cachorros.
- Bastou mexer com o bolso dos eleitores, explicou ele.
- Funcionou.
- Funciona sempre. Pois, conforme disse James Carville, guru eleitoral de Bill Clinton, o que decide as votações é a economia. A economia, idiota!
quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012
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