Sexta-feira, no Humphrey's
Voando de volta da Califórnia, sentei-me ao lado de uma senhora que estivera visitando amigos em San Diego. Irene, este o seu nome, aparentava cerca de cinquenta anos, uma pessoa de muita simpatia e fácil comunicação. Fiquei sabendo que atuava no ramo de distribuição de produtos cinematográficos, entendia de vinhos, gostava de música clássica e era tia do Pradinho, um colega do Santo Agostinho, cujo mérito, para mim, era ter sido um campeão no jogo de sinuca.
- O Pradinho abandonou uma carreira de juiz de direito para dedicar-se a um ramo do Budismo chamado de tradição Theravada. Creio que está morando em Anantapur, na Índia.
Quando lhe disse que um dos meus assuntos era análise de projetos, Irene mencionou uma proposta que recebera para ser sócia num empreendimento francês de exibição de filmes clássicos pela televisão paga.
- Se você quiser, disse-lhe eu, posso examinar o projeto, assim que chegarmos ao Rio de Janeiro.
Era um relatório simples e fácil de entender, que se baseava no número previsto de assinantes, com estimativas de custos e de receitas. Lembrei-me de Sean Forthwhite, da WED, quando percebi que foram supervalorizadas as estimativas positivas e ignorados os eventos adversos do projeto. Meu conselho foi para que descartasse a empreitada, e a consequência de tudo foi que nos tornamos amigos.
- Não deixa de ser novidade, uma amizade, assim tardia, aparecendo na vida de um solitário, como eu.
Lembro-me de que Irene mencionou certa vez que eu, com meus 36 anos, deveria pensar em me casar. Uma observação que contabilizei como do tipo social, dessas que se fazem para não deixar morrer a conversa, como quem emite observações sobre o tempo meteorológico ou sobre a corrupção na política.
Com alguns dias de antecedência, por iniciastiva dela, decidimos nos encontrar numa sexta-feira no Humphrey’s, para um jantar onde atualizaríamos a nossa conversa. Estava acertado que eu poderia chegar com um pouco de atraso, por causa de uma reunião que fazemos nas noites de sextas-feiras no departamento de Economia. Quando o dia chegou, a caminho da faculdade passei pela manhã numa casa de flores e escolhi para Irene uma dúzia de rosas, que um portador deveria levar ao restaurante, exatamente às 21 horas.
- Eu não sabia que aquele jantar mudaria a minha vida...
sábado, 28 de maio de 2011
quarta-feira, 25 de maio de 2011
FÍSICA QUÂNTICA E CULTURA
TRÊS QUARTAS PARA MESTRE MARK
Lembro-me de ter comparecido a um seminário sobre mecânica quântica no Instituto Santa Fé, na Califórnia. Um evento coordenado por Murray Gell-Mann, Prêmio Nobel de Física de 1969, descobridor do quark, partícula elementar que entra na composição dos prótons e nêutrons, os constituintes fundamentais dos núcleos atômicos. Assisti a todas as palestras, com real proveito. Os físicos da mecânica quântica gostam muito de discutir sobre determinismo e probabilidade, na hora de explicar os fenômenos observados:
(a) O determinismo é a corrente defendida por Einstein, contrária à ideia dominante de que o mundo subatômico é um reinado das probabilidades. Alguns dos artigos einsteinianos destinavam-se a demonstrar, com argumentos lógicos, que a mecânica quântica, como tem sido entendida, era inconsistente e estava longe de ser uma teoria completa. Postulava Einstein que seria possível substituí-la por outra teoria, clássica e determinística, na qual houvesse um número necessário de “variáveis escondidas”, que explicasse o mundo subatômico como o percebemos, assim probabilístico.
(b) Os físicos do seminário defendiam, todavia, a prevalência do acaso e da probabilidade e, ao fazê-lo, invocavam seguidamente uma recente confirmação experimental a que chamavam de “desigualdades de Bell”.
- Nesse assunto, Einstein não saiu vitorioso. Por enquanto, pelo menos...
Pensava-se que o átomo fosse indivisível, basta ver que este é o significado de “átomo” em grego. Descobriu-se depois que era formado de três partículas indivisíveis, elétrons, prótons e nêutrons. Sabe-se agora, pelos trabalhos do novaiorquino Gell-Mann, que prótons e nêutrons não são indivisíveis, mas formados por três quarks. Ele, um dos homens mais cultos da atualidade, explicou como surgiu a ideia de atribuir o nome “quark” à partícula que entra na composição do próton e do nêutron.
- Naquela ocasião, 1963, li no Finnegans Wake, de James Joyce, a frase “Three quarks for Muster Mark”, dirigida a um dono de bar. A palavra “quark” significa “pio da gaivota”, mas, no contexto de Joyce, pode-se admitir que tenha sido usada com o sentido de “quart”, uma medida de capacidade para líquidos, em cujo caso a frase tem o significado de “Três quartas para Mestre Mark”. Tive então a ideia de chamar a partícula descoberta por mim de “quark”, uma vez que tanto o próton quanto o nêutron são sempre formados por três quarks.
- Interessante...
- Então, nas minhas aulas posso dizer que a receita para fazer um próton ou um nêutron é “três quarks para Mestre Próton” ou “três quarks para Mestre Nêutron”.
Eis o elo entre James Joyce e a física. Ou seja, mecânica quântica também é cultura...
Lembro-me de ter comparecido a um seminário sobre mecânica quântica no Instituto Santa Fé, na Califórnia. Um evento coordenado por Murray Gell-Mann, Prêmio Nobel de Física de 1969, descobridor do quark, partícula elementar que entra na composição dos prótons e nêutrons, os constituintes fundamentais dos núcleos atômicos. Assisti a todas as palestras, com real proveito. Os físicos da mecânica quântica gostam muito de discutir sobre determinismo e probabilidade, na hora de explicar os fenômenos observados:
(a) O determinismo é a corrente defendida por Einstein, contrária à ideia dominante de que o mundo subatômico é um reinado das probabilidades. Alguns dos artigos einsteinianos destinavam-se a demonstrar, com argumentos lógicos, que a mecânica quântica, como tem sido entendida, era inconsistente e estava longe de ser uma teoria completa. Postulava Einstein que seria possível substituí-la por outra teoria, clássica e determinística, na qual houvesse um número necessário de “variáveis escondidas”, que explicasse o mundo subatômico como o percebemos, assim probabilístico.
(b) Os físicos do seminário defendiam, todavia, a prevalência do acaso e da probabilidade e, ao fazê-lo, invocavam seguidamente uma recente confirmação experimental a que chamavam de “desigualdades de Bell”.
- Nesse assunto, Einstein não saiu vitorioso. Por enquanto, pelo menos...
Pensava-se que o átomo fosse indivisível, basta ver que este é o significado de “átomo” em grego. Descobriu-se depois que era formado de três partículas indivisíveis, elétrons, prótons e nêutrons. Sabe-se agora, pelos trabalhos do novaiorquino Gell-Mann, que prótons e nêutrons não são indivisíveis, mas formados por três quarks. Ele, um dos homens mais cultos da atualidade, explicou como surgiu a ideia de atribuir o nome “quark” à partícula que entra na composição do próton e do nêutron.
- Naquela ocasião, 1963, li no Finnegans Wake, de James Joyce, a frase “Three quarks for Muster Mark”, dirigida a um dono de bar. A palavra “quark” significa “pio da gaivota”, mas, no contexto de Joyce, pode-se admitir que tenha sido usada com o sentido de “quart”, uma medida de capacidade para líquidos, em cujo caso a frase tem o significado de “Três quartas para Mestre Mark”. Tive então a ideia de chamar a partícula descoberta por mim de “quark”, uma vez que tanto o próton quanto o nêutron são sempre formados por três quarks.
- Interessante...
- Então, nas minhas aulas posso dizer que a receita para fazer um próton ou um nêutron é “três quarks para Mestre Próton” ou “três quarks para Mestre Nêutron”.
Eis o elo entre James Joyce e a física. Ou seja, mecânica quântica também é cultura...
sábado, 21 de maio de 2011
GIORDANO BRUNO (II)
MÁRTIR GENUÍNO DA CIÊNCIA
A ambição de Giordano Bruno era construir um embasamento filosófico que se coadunasse com as grandes descobertas científicas de seu tempo. Por sua intuição extraordinária, estava séculos adiante de seu tempo e é considerado um pioneiro da filosofia moderna, tendo influenciado Descartes, Espinosa e Leibniz.
Para ele, as ideias de Aristóteles deveriam ser abandonadas sempre que fossem incompatíveis com a realidade observada. Aos que estranhavam suas opiniões discordantes, perguntava:
- Quais são os fundamentos da certeza?
Quando o advertiam da incompatibilidade de suas ideias com o que se preconizava nas Escrituras, Giordano Bruno respondia que os textos religiosos não eram referências infalíveis ou obrigatórias, tanto que neles se omitiam completamente as Américas e seus povos, cuja existência dizia ser incompatível com o relato bíblico da Arca de Noé.
- A Biblia deve ser observada por seus ensinamentos religiosos, não por suas declarações sobre Astronomia.
Com pensamentos assim ousados, Giordano Bruno iria pagar um preço elevado, sobretudo porque, excelente orador, tinha capacidade para atrair e convencer multidões. Regressou à Itália para instalar-se em Veneza, convidado por um nobre chamado Giovanni Moncenigo, sem perceber que se tratava de uma armadilha. Foi preso e encarcerado pelo Santo Ofício, permanecendo sete anos sob tortura e humilhação, até ser levado a julgamento perante o Tribunal da Inquisição.
Em sua defesa, apelou para sua condição de filósofo, tal como Aristóteles e Platão, cujas ideias nem sempre coincidiam com o que se continha nos textos sagrados. O cardeal Roberto Bellarmino, consultor do Santo Ofício, propôs-lhe que se retratasse de suas ideias, para, desse modo, escapar da condenação. Bruno respondeu:
- Não tenho motivos para retratar-me.
O papa Clemente VIII não se conteve diante dessas palavras e determinou que as autoridades seculares cuidassem do seu caso, tratando-o de "forma tão misericordiosa quanto possível, evitando derramamento de sangue." Uma senha cheia de eufemismo, perversa e irônica, que significava morte na fogueira.
Alguns dias antes da execução, Giordano Bruno teria dito a seus carrascos:
- Essa sentença, pronunciada em nome do Deus da misericórdia, assusta mais a vocês do que a mim!
Queimado vivo, aos 52 anos de idade, em Roma, no Campo das Flores, no ano de 1600, com a boca amordaçada para que não pudesse dirigir-se à multidão, Giordano Bruno imolou-se em nome do livre-pensamento. Morreu sem olhar o crucifixo colocado à sua frente para infligir-lhe uma derradeira humilhação.
- Com ele, a filosofia começaria a libertar-se da religião, favorecendo o nascimento da ciência moderna.
Certa vez Maria Hoyle e eu trocamos impressões sobre as ideias, a importância, a motivação, a coragem e a dignidade de Giordano Bruno, que aceitou o sacrifício em nome da verdade. Um homem que ela gostaria de ter abraçado. Na solidão do seu gabinete, decidimos fazer um minuto de silêncio em sua homenagem, um ato de contrição e respeito, atrasado de 400 anos.
- Giordano Bruno, mártir genuíno da ciência.
A ambição de Giordano Bruno era construir um embasamento filosófico que se coadunasse com as grandes descobertas científicas de seu tempo. Por sua intuição extraordinária, estava séculos adiante de seu tempo e é considerado um pioneiro da filosofia moderna, tendo influenciado Descartes, Espinosa e Leibniz.
Para ele, as ideias de Aristóteles deveriam ser abandonadas sempre que fossem incompatíveis com a realidade observada. Aos que estranhavam suas opiniões discordantes, perguntava:
- Quais são os fundamentos da certeza?
Quando o advertiam da incompatibilidade de suas ideias com o que se preconizava nas Escrituras, Giordano Bruno respondia que os textos religiosos não eram referências infalíveis ou obrigatórias, tanto que neles se omitiam completamente as Américas e seus povos, cuja existência dizia ser incompatível com o relato bíblico da Arca de Noé.
- A Biblia deve ser observada por seus ensinamentos religiosos, não por suas declarações sobre Astronomia.
Com pensamentos assim ousados, Giordano Bruno iria pagar um preço elevado, sobretudo porque, excelente orador, tinha capacidade para atrair e convencer multidões. Regressou à Itália para instalar-se em Veneza, convidado por um nobre chamado Giovanni Moncenigo, sem perceber que se tratava de uma armadilha. Foi preso e encarcerado pelo Santo Ofício, permanecendo sete anos sob tortura e humilhação, até ser levado a julgamento perante o Tribunal da Inquisição.
Em sua defesa, apelou para sua condição de filósofo, tal como Aristóteles e Platão, cujas ideias nem sempre coincidiam com o que se continha nos textos sagrados. O cardeal Roberto Bellarmino, consultor do Santo Ofício, propôs-lhe que se retratasse de suas ideias, para, desse modo, escapar da condenação. Bruno respondeu:
- Não tenho motivos para retratar-me.
O papa Clemente VIII não se conteve diante dessas palavras e determinou que as autoridades seculares cuidassem do seu caso, tratando-o de "forma tão misericordiosa quanto possível, evitando derramamento de sangue." Uma senha cheia de eufemismo, perversa e irônica, que significava morte na fogueira.
Alguns dias antes da execução, Giordano Bruno teria dito a seus carrascos:
- Essa sentença, pronunciada em nome do Deus da misericórdia, assusta mais a vocês do que a mim!
Queimado vivo, aos 52 anos de idade, em Roma, no Campo das Flores, no ano de 1600, com a boca amordaçada para que não pudesse dirigir-se à multidão, Giordano Bruno imolou-se em nome do livre-pensamento. Morreu sem olhar o crucifixo colocado à sua frente para infligir-lhe uma derradeira humilhação.
- Com ele, a filosofia começaria a libertar-se da religião, favorecendo o nascimento da ciência moderna.
Certa vez Maria Hoyle e eu trocamos impressões sobre as ideias, a importância, a motivação, a coragem e a dignidade de Giordano Bruno, que aceitou o sacrifício em nome da verdade. Um homem que ela gostaria de ter abraçado. Na solidão do seu gabinete, decidimos fazer um minuto de silêncio em sua homenagem, um ato de contrição e respeito, atrasado de 400 anos.
- Giordano Bruno, mártir genuíno da ciência.
quarta-feira, 18 de maio de 2011
GIORDANO BRUNO (I)
RELIGIÃO E CIÊNCIA
Maria Hoyle aprovava minha iniciativa de mostrar aos alunos o lado humano dos físicos. Ela própria me deu informações sobre Empédocles, Hipácia, Madame Curie, Lavoisier... Assim estimulado, passei a comentar cada vez mais sobre fatos da vida dos cientistas, mostrando nas aulas seu sofrimento, idiossincrasias e excentricidades. Animava-me também a aceitação positiva por parte dos alunos.
Até que um dia cheguei a Giordano Bruno, o filósofo que se opôs à opressão da ciência pela religião. Uma história emocionante, que começou no século XIII, quando os intelectuais religiosos Tomás de Aquino e Alberto Magno fizeram uma combinação do aristotelismo com o cristianismo, a que se costuma chamar de "escolástica", formulando uma visão do mundo que deveria ser aceita por imposição da Igreja Católica. Aquela coisa de Terra imóvel, no centro do Universo, todos os astros girando à sua volta, com órbitas circulares e velocidades constantes.
- Pois Deus, perfeito, não admitiria senão órbitas perfeitas, como o círculo, e movimentos perfeitos, de velocidades constantes.
Roger Bacon
A primeira voz discordante foi a do franciscano Roger Bacon, de Oxford, que chegou a escrever:
- Se dependesse de mim, queimaria todos os livros de Aristóteles, cuja leitura é pura perda de tempo e só nos leva ao erro e à ignorância.
Roger Bacon descrevia o método científico como um ciclo repetido de observação, hipótese, experimentação e necessidade de verificação independente, acreditando que a ciência, construída mediante leis matemáticas, poderia resolver muitos problemas do homem, que, no futuro, seria capaz de deslocar-se em carros motorizados e, quem sabe, até voasse. Seus argumentos contra as ideias de Aristóteles foram reunidos nos livros Opus Majus, Opus Minor e Opus Tertium, que ingenuamente enviou ao papa Nicolau IV, belamente encadernados. Em vez de elogiado, Roger Bacon foi acusado de fabricar "novidades perigosas" e condenado a quatorze anos de prisão.
Giordano Bruno
Sorte ainda pior estava reservada para Giordano Bruno, um intelectual italiano que nasceu em Nola, no sul da Itália, e estudou no Convento Domicano de Nápoles, ordenando-se padre em 1572. Bruno sofreu influência das ideias de Lucrécio, que defendia o atomismo, contra os quatro elementos, de Empédocles, tanto quanto das ideias de Nicolau de Cusa, que, como Roger Bacon, se opunha ao sistema geocêntrico e defendia a prevalência dos cálculos matemáticos para descrição das verdades científicas.
Bruno perambulou pela França, Inglaterra, Suíça, Alemanha e Tchecoeslováquia, dando aulas de filosofia e tudo contestando, o que sempre acarretava reações exacerbadas que o obrigavam a fugir em busca de novos abrigos. Um dos primeiros copernicanos da Itália, Giordano rejeitou a teoria geocêntrica e pelas suas ideias avançadas colocou-se à frente de Copérnico, que, ao tirar a Terra do centro do Universo, continuou, não obstante, a admitir que o Universo era limitado por uma esfera de estrelas fixas, como preconizado vinte séculos antes por Aristóteles. Nas concepções de Giordano, o Universo seria infinito e povoado por milhares de sistemas solares, integrados por planetas, muitos dos quais com vida inteligente.
- Deus e o Universo são uma única e mesma coisa. Tudo é Deus, e Deus está em todas as coisas.
Na Inglaterra, Giordano Bruno foi apresentado por John Florio a Shakespeare, que teria aludido às suas ideias no Hamlet, Cena II do Segundo Ato, quando o príncipe da Dinamarca exclama:
- Oh, Deus! Eu poderia estar encerrado numa casca de noz e, ainda assim, considerar-me rei do espaço infinito, se a mim não me coubesse ter tantos pesadelos.
Maria Hoyle aprovava minha iniciativa de mostrar aos alunos o lado humano dos físicos. Ela própria me deu informações sobre Empédocles, Hipácia, Madame Curie, Lavoisier... Assim estimulado, passei a comentar cada vez mais sobre fatos da vida dos cientistas, mostrando nas aulas seu sofrimento, idiossincrasias e excentricidades. Animava-me também a aceitação positiva por parte dos alunos.
Até que um dia cheguei a Giordano Bruno, o filósofo que se opôs à opressão da ciência pela religião. Uma história emocionante, que começou no século XIII, quando os intelectuais religiosos Tomás de Aquino e Alberto Magno fizeram uma combinação do aristotelismo com o cristianismo, a que se costuma chamar de "escolástica", formulando uma visão do mundo que deveria ser aceita por imposição da Igreja Católica. Aquela coisa de Terra imóvel, no centro do Universo, todos os astros girando à sua volta, com órbitas circulares e velocidades constantes.
- Pois Deus, perfeito, não admitiria senão órbitas perfeitas, como o círculo, e movimentos perfeitos, de velocidades constantes.
Roger Bacon
A primeira voz discordante foi a do franciscano Roger Bacon, de Oxford, que chegou a escrever:
- Se dependesse de mim, queimaria todos os livros de Aristóteles, cuja leitura é pura perda de tempo e só nos leva ao erro e à ignorância.
Roger Bacon descrevia o método científico como um ciclo repetido de observação, hipótese, experimentação e necessidade de verificação independente, acreditando que a ciência, construída mediante leis matemáticas, poderia resolver muitos problemas do homem, que, no futuro, seria capaz de deslocar-se em carros motorizados e, quem sabe, até voasse. Seus argumentos contra as ideias de Aristóteles foram reunidos nos livros Opus Majus, Opus Minor e Opus Tertium, que ingenuamente enviou ao papa Nicolau IV, belamente encadernados. Em vez de elogiado, Roger Bacon foi acusado de fabricar "novidades perigosas" e condenado a quatorze anos de prisão.
Giordano Bruno
Sorte ainda pior estava reservada para Giordano Bruno, um intelectual italiano que nasceu em Nola, no sul da Itália, e estudou no Convento Domicano de Nápoles, ordenando-se padre em 1572. Bruno sofreu influência das ideias de Lucrécio, que defendia o atomismo, contra os quatro elementos, de Empédocles, tanto quanto das ideias de Nicolau de Cusa, que, como Roger Bacon, se opunha ao sistema geocêntrico e defendia a prevalência dos cálculos matemáticos para descrição das verdades científicas.
Bruno perambulou pela França, Inglaterra, Suíça, Alemanha e Tchecoeslováquia, dando aulas de filosofia e tudo contestando, o que sempre acarretava reações exacerbadas que o obrigavam a fugir em busca de novos abrigos. Um dos primeiros copernicanos da Itália, Giordano rejeitou a teoria geocêntrica e pelas suas ideias avançadas colocou-se à frente de Copérnico, que, ao tirar a Terra do centro do Universo, continuou, não obstante, a admitir que o Universo era limitado por uma esfera de estrelas fixas, como preconizado vinte séculos antes por Aristóteles. Nas concepções de Giordano, o Universo seria infinito e povoado por milhares de sistemas solares, integrados por planetas, muitos dos quais com vida inteligente.
- Deus e o Universo são uma única e mesma coisa. Tudo é Deus, e Deus está em todas as coisas.
Na Inglaterra, Giordano Bruno foi apresentado por John Florio a Shakespeare, que teria aludido às suas ideias no Hamlet, Cena II do Segundo Ato, quando o príncipe da Dinamarca exclama:
- Oh, Deus! Eu poderia estar encerrado numa casca de noz e, ainda assim, considerar-me rei do espaço infinito, se a mim não me coubesse ter tantos pesadelos.
sábado, 14 de maio de 2011
OU ISTO OU AQUILO
NO REINO DAS PERPLEXIDADES
Nosso assunto, meu e de Maria Hoyle, era mecânica quântica, um ramo da física que gera dúvidas e suscita grandes polêmicas em termos de interpretação e entendimento, mas nunca em termos de resultados, que são sempre precisos e inquestionáveis. O maior expoente nesse campo do conhecimento, o físico dinamarquês Niels Bohr, foi autor de um enunciado que se tornou célebre, mais ou menos na linha do que se segue:
- Qualquer um que não se choque com a Mecânica Quântica é porque não conseguiu entendê-la.
Nossa lógica, a da realidade das coisas que são percebidas e a da necessidade de uma causa para explicar os fenômenos (tudo a ver com Aristóteles), não funciona no mundo das partículas subatômicas, exatamente onde prevalecem o muito pequeno e o muito veloz.
- Vejo um carro andando à velocidade de 60 quilômetros por hora como tal porque é relativamente grande e relativamente lento.
Mas a lógica do realismo e da causalidade soçobra quando se trata de partículas subatômicas, que são diminutas e se deslocam a velocidades anormalmente elevadas. Por exemplo, a luz é formada por fótons, que são partículas sem massa, mas com energia, emitidas pelos elétrons. Mas, serão mesmo partículas? Lembre-se que o ambiente agora é o subatômico...
- Sim, disse Isaac Newton, são partículas, como grãos de areia, tanto que a luz ultravioleta, de alta energia, incidindo sobre um metal, desloca elétrons e produz o efeito fotoelétrico. Só uma partícula desloca outra partícula, como uma bola de bilhar chocando-se contra outra.
- Não!, retrucou Huyghens, a luz é uma onda, ou seja, uma linha sinuosa, como se fosse uma cobra, indo para cima e para baixo, configurando o que os matemáticos chamam de senoide. Pois, argumentava Huyghens, um raio de luz incidindo sobre um anteparo com dupla fenda (duas fendas próximas) passa pelas duas fendas, tanto que o observador vê um padrão senoidal de incidência da luz numa tela receptora, colocada para além do anteparo. Só uma linha poderia realizar essa façanha, a de passar ao mesmo tempo em dois lugares diferentes.
Quem estava com a razão, já que uma cobra nada tem a ver com um grão de areia? Isso mesmo, quem estava com a razão, Newton ou Huyghens?
- Ambos!, gritou Einstein, num dos seus célebres artigos de 1905. Pois a luz ora é partícula, ora onda.
- Como?
- Quem define se a luz é onda ou partícula é o observador. Na experiência do efeito fotoelétrico, o observador, com seu aparato, está preparado para ver partícula; desse modo verá a luz comportando-se como partícula. Na experiência da dupla fenda, o aparato é para ver a luz como onda. Não dá outra: a luz é vista funcionando como onda.
As surpresas não terminam nesse ponto. A tese de doutorado de Louis de Broglie, apresentada na França em 1924, tornou-se a mais famosa de todos os tempos, contribuindo decisivamente para o desenvolvimento da mecânica quântica, ao postular que toda a matéria, e não apenas a luz, tem um comportamento dual onda-partícula.
- Prótons, elétrons, nêutrons, mésons, tudo, absolutamente tudo, ora é partícula, ora é onda.
Como se a natureza, nos seus fundamentos, tivesse dois modelos (quem sabe não tenha mais de dois!?), dos quais apenas um se apresenta ao observador. Quando átomos e moléculas se reúnem para formar os corpos, com as velocidades civilizadas com as quais estes se nos apresentam, aí então tudo se torna um modelo só, a partir do qual construímos nossa lógica.
- E tem mais, acrescentou Niels Bohr, quem vê partícula, não vê onda; quem vê onda, não vê partícula. A ninguém é dado ver uma coisa e outra ao mesmo tempo.
Alguns físicos dizem jocosamente que há duas histórias, correndo paralelamente, das quais somente uma é percebida. Outros, no exagero, desconfiam de que são muitas histórias simultâneas, não apenas duas. Numa delas nasci com o talento de Mozart e, em outra, joguei futebol como Pelé.
- Numa de minhas vidas, o degas aqui acertou na sena acumulada, não tenho disso nenhuma dúvida!
Cecília Meireles
A afimação de que partícula e onda se excluem reciprocamente à percepção do observador configura o famoso Princípio da Complementaridade, da mecânica quântica. Uma coisa ou outra, nunca as duas. Neste ponto posso adicionar à física meu modesto conhecimento de poesia, que esta, quem sabe, também faz parte da mecânica quântica. Pois esse Princípio da Complementaridade, de Niels Bohr, poderia tranquilamente chamar-se de Princípio de Cecília Meireles, que não precisou de nenhum experimento fotoelétrico, nem de dupla fenda alguma, para estabelecer o que sempre há de prevalecer:
- Ou isto ou aquilo!
Nosso assunto, meu e de Maria Hoyle, era mecânica quântica, um ramo da física que gera dúvidas e suscita grandes polêmicas em termos de interpretação e entendimento, mas nunca em termos de resultados, que são sempre precisos e inquestionáveis. O maior expoente nesse campo do conhecimento, o físico dinamarquês Niels Bohr, foi autor de um enunciado que se tornou célebre, mais ou menos na linha do que se segue:
- Qualquer um que não se choque com a Mecânica Quântica é porque não conseguiu entendê-la.
Nossa lógica, a da realidade das coisas que são percebidas e a da necessidade de uma causa para explicar os fenômenos (tudo a ver com Aristóteles), não funciona no mundo das partículas subatômicas, exatamente onde prevalecem o muito pequeno e o muito veloz.
- Vejo um carro andando à velocidade de 60 quilômetros por hora como tal porque é relativamente grande e relativamente lento.
Mas a lógica do realismo e da causalidade soçobra quando se trata de partículas subatômicas, que são diminutas e se deslocam a velocidades anormalmente elevadas. Por exemplo, a luz é formada por fótons, que são partículas sem massa, mas com energia, emitidas pelos elétrons. Mas, serão mesmo partículas? Lembre-se que o ambiente agora é o subatômico...
- Sim, disse Isaac Newton, são partículas, como grãos de areia, tanto que a luz ultravioleta, de alta energia, incidindo sobre um metal, desloca elétrons e produz o efeito fotoelétrico. Só uma partícula desloca outra partícula, como uma bola de bilhar chocando-se contra outra.
- Não!, retrucou Huyghens, a luz é uma onda, ou seja, uma linha sinuosa, como se fosse uma cobra, indo para cima e para baixo, configurando o que os matemáticos chamam de senoide. Pois, argumentava Huyghens, um raio de luz incidindo sobre um anteparo com dupla fenda (duas fendas próximas) passa pelas duas fendas, tanto que o observador vê um padrão senoidal de incidência da luz numa tela receptora, colocada para além do anteparo. Só uma linha poderia realizar essa façanha, a de passar ao mesmo tempo em dois lugares diferentes.
Quem estava com a razão, já que uma cobra nada tem a ver com um grão de areia? Isso mesmo, quem estava com a razão, Newton ou Huyghens?
- Ambos!, gritou Einstein, num dos seus célebres artigos de 1905. Pois a luz ora é partícula, ora onda.
- Como?
- Quem define se a luz é onda ou partícula é o observador. Na experiência do efeito fotoelétrico, o observador, com seu aparato, está preparado para ver partícula; desse modo verá a luz comportando-se como partícula. Na experiência da dupla fenda, o aparato é para ver a luz como onda. Não dá outra: a luz é vista funcionando como onda.
As surpresas não terminam nesse ponto. A tese de doutorado de Louis de Broglie, apresentada na França em 1924, tornou-se a mais famosa de todos os tempos, contribuindo decisivamente para o desenvolvimento da mecânica quântica, ao postular que toda a matéria, e não apenas a luz, tem um comportamento dual onda-partícula.
- Prótons, elétrons, nêutrons, mésons, tudo, absolutamente tudo, ora é partícula, ora é onda.
Como se a natureza, nos seus fundamentos, tivesse dois modelos (quem sabe não tenha mais de dois!?), dos quais apenas um se apresenta ao observador. Quando átomos e moléculas se reúnem para formar os corpos, com as velocidades civilizadas com as quais estes se nos apresentam, aí então tudo se torna um modelo só, a partir do qual construímos nossa lógica.
- E tem mais, acrescentou Niels Bohr, quem vê partícula, não vê onda; quem vê onda, não vê partícula. A ninguém é dado ver uma coisa e outra ao mesmo tempo.
Alguns físicos dizem jocosamente que há duas histórias, correndo paralelamente, das quais somente uma é percebida. Outros, no exagero, desconfiam de que são muitas histórias simultâneas, não apenas duas. Numa delas nasci com o talento de Mozart e, em outra, joguei futebol como Pelé.
- Numa de minhas vidas, o degas aqui acertou na sena acumulada, não tenho disso nenhuma dúvida!
Cecília Meireles
A afimação de que partícula e onda se excluem reciprocamente à percepção do observador configura o famoso Princípio da Complementaridade, da mecânica quântica. Uma coisa ou outra, nunca as duas. Neste ponto posso adicionar à física meu modesto conhecimento de poesia, que esta, quem sabe, também faz parte da mecânica quântica. Pois esse Princípio da Complementaridade, de Niels Bohr, poderia tranquilamente chamar-se de Princípio de Cecília Meireles, que não precisou de nenhum experimento fotoelétrico, nem de dupla fenda alguma, para estabelecer o que sempre há de prevalecer:
- Ou isto ou aquilo!
quarta-feira, 11 de maio de 2011
AS DUAS FACES DE JANO
O BEM E O MAL
Fui designado assistente de Maria Hoyle, titular da cadeira de mecânica quântica, e me tornei seu sucessor quando se aposentou, vinte meses depois. Uma perda muito grande para o nosso departamento, ela que no século passado havia conquistado um PhD de física pela Colgate University, de Hamilton, e se tornou assistente de Shimon Malin, autor de a “A Natureza Ama Esconder-se”, livro que associa os pensamentos de Platão aos fundamentos da mecânica quântica.
A esse respeito, Maria Hoyle costumava me dizer:
- Está tudo no Timeu, que é o relato de Platão sobre a criação e estrutura do Universo.
Mantinha, atrás de si, um quadro com um texto do “Discurso Sobre o Método’, tão grande era sua admiração por René Descartes:
“Não me cabe, de fato, aceitar como verdadeira nenhuma coisa que eu não conheça evidentemente como tal; devo dividir cada uma das dificuldades em tantas partes quanto possível e necessário para resolvê-las; hei de conduzir os meus pensamentos de forma organizada, começando pelos objetos mais simples, segundo uma ordem de precedência de uns em relação aos outros; ao final, encerrarei cada estudo ou pesquisa com enumerações completas e revisões gerais, para ter certeza de que nada foi omitido. Enfim, como máxima fundamental, hei de procurar sempre vencer antes a mim do que à fortuna, modificar antes os meus desejos do que a ordem do mundo.”
Entre 1629 e 1649 Descartes viveu na Holanda, ao abrigo das perseguições religiosas, pautando-se pelo lema de Ovídio: “vive bem quem vive escondido”. Temia demonstrar que apoiava o sistema heliocêntrico, temeroso de um castigo semelhante ao que foi aplicado a Galileu. Quando lhe perguntavam sobre sua opinião, Descartes respondia de maneira ambígua:
- A Terra decerto não se move, mas é movida.
Não foi molestado e morreu de pneumonia, quando tinha cinquenta e quatro anos. Fora contratado para dar aulas para a rainha Cristina, da Suécia, que tinha o hábito de ouvir suas lições às cinco horas da manhã. Acabou sucumbindo às baixas temperaturas das madrugadas de Estocolmo.
À parte sua importância na minha formação, primeiro na condição de aluno, depois como seu assistente, Hoyle foi para mim um paradigma de cientista responsável, preocupada com a formação dos seus alunos e com evitar o uso inadequado da ciência.
- Pois, queira ou não, nós, profissionais de física, somos todos cientistas.
Dizia que o deus Jano, com suas duas faces voltadas para lados opostos, o passado e o futuro, pode ser invocado para simbolizar que a ciência tem sido utilizada tanto para o bem quanto para o mal. Uma das faces de Jano terá visto, antes, o químico alemão Fritz Haber, um expoente do século XX, como um paladino da humanidade, por ter criado em 1909 um processo de produção de amônia para fertilizantes, sem o qual não haveria alimentos suficientes para as necessidades do mundo. Não fosse pelos fertilizantes nitrogenados, a população mundial não teria alcançado senão cinquenta por cento dos seus níveis atuais, por falta de alimentos.
- Por esta razão, Haber ganhou merecidamente o Prêmio Nobel de Química, em 1918.
A outra face de Jano pôde contemplar depois, do lado oposto, que o mesmo Fritz Haber inaugurou a guerra química, usando gás cloro contra os inimigos, o que foi feito pela primeira vez na Batalha de Ypres, na Bélgica, em 22 de abril de 1915, ele próprio a conduzir as operações, a serviço dos alemães.
- Era o início de uma crônica de extermínio que, só na Primeira Guerra Mundial, registra a morte de mais de cem mil soldados, explicava Maria Doyle. Sua mulher, Clara Haber, que também era cientista, suicidou-se com um tiro no peito, em protesto contra a atuação do marido no front da guerra química.
Os fertilizantes, que ajudam a vida, e a guerra química, que serve à morte, nasceram, pois, pelas mãos do mesmo cientista. Antes, o Prêmio Nobel e depois, o remorso de ter provocado tanta dor e o suicídio da mulher querida. As duas faces de Jano. Em 1927, em carta a um amigo, Fritz Haber fez a seguinte confissão:
- Estou lutando, cada vez mais depauperado, contra meus quatro inimigos: a insônia, as reivindicações financeiras da minha segunda esposa, Charlotte Nathan, minha preocupação com o futuro e a sensação de haver cometido graves erros em minha vida.
Fui designado assistente de Maria Hoyle, titular da cadeira de mecânica quântica, e me tornei seu sucessor quando se aposentou, vinte meses depois. Uma perda muito grande para o nosso departamento, ela que no século passado havia conquistado um PhD de física pela Colgate University, de Hamilton, e se tornou assistente de Shimon Malin, autor de a “A Natureza Ama Esconder-se”, livro que associa os pensamentos de Platão aos fundamentos da mecânica quântica.
A esse respeito, Maria Hoyle costumava me dizer:
- Está tudo no Timeu, que é o relato de Platão sobre a criação e estrutura do Universo.
Mantinha, atrás de si, um quadro com um texto do “Discurso Sobre o Método’, tão grande era sua admiração por René Descartes:
“Não me cabe, de fato, aceitar como verdadeira nenhuma coisa que eu não conheça evidentemente como tal; devo dividir cada uma das dificuldades em tantas partes quanto possível e necessário para resolvê-las; hei de conduzir os meus pensamentos de forma organizada, começando pelos objetos mais simples, segundo uma ordem de precedência de uns em relação aos outros; ao final, encerrarei cada estudo ou pesquisa com enumerações completas e revisões gerais, para ter certeza de que nada foi omitido. Enfim, como máxima fundamental, hei de procurar sempre vencer antes a mim do que à fortuna, modificar antes os meus desejos do que a ordem do mundo.”
Entre 1629 e 1649 Descartes viveu na Holanda, ao abrigo das perseguições religiosas, pautando-se pelo lema de Ovídio: “vive bem quem vive escondido”. Temia demonstrar que apoiava o sistema heliocêntrico, temeroso de um castigo semelhante ao que foi aplicado a Galileu. Quando lhe perguntavam sobre sua opinião, Descartes respondia de maneira ambígua:
- A Terra decerto não se move, mas é movida.
Não foi molestado e morreu de pneumonia, quando tinha cinquenta e quatro anos. Fora contratado para dar aulas para a rainha Cristina, da Suécia, que tinha o hábito de ouvir suas lições às cinco horas da manhã. Acabou sucumbindo às baixas temperaturas das madrugadas de Estocolmo.
À parte sua importância na minha formação, primeiro na condição de aluno, depois como seu assistente, Hoyle foi para mim um paradigma de cientista responsável, preocupada com a formação dos seus alunos e com evitar o uso inadequado da ciência.
- Pois, queira ou não, nós, profissionais de física, somos todos cientistas.
Dizia que o deus Jano, com suas duas faces voltadas para lados opostos, o passado e o futuro, pode ser invocado para simbolizar que a ciência tem sido utilizada tanto para o bem quanto para o mal. Uma das faces de Jano terá visto, antes, o químico alemão Fritz Haber, um expoente do século XX, como um paladino da humanidade, por ter criado em 1909 um processo de produção de amônia para fertilizantes, sem o qual não haveria alimentos suficientes para as necessidades do mundo. Não fosse pelos fertilizantes nitrogenados, a população mundial não teria alcançado senão cinquenta por cento dos seus níveis atuais, por falta de alimentos.
- Por esta razão, Haber ganhou merecidamente o Prêmio Nobel de Química, em 1918.
A outra face de Jano pôde contemplar depois, do lado oposto, que o mesmo Fritz Haber inaugurou a guerra química, usando gás cloro contra os inimigos, o que foi feito pela primeira vez na Batalha de Ypres, na Bélgica, em 22 de abril de 1915, ele próprio a conduzir as operações, a serviço dos alemães.
- Era o início de uma crônica de extermínio que, só na Primeira Guerra Mundial, registra a morte de mais de cem mil soldados, explicava Maria Doyle. Sua mulher, Clara Haber, que também era cientista, suicidou-se com um tiro no peito, em protesto contra a atuação do marido no front da guerra química.
Os fertilizantes, que ajudam a vida, e a guerra química, que serve à morte, nasceram, pois, pelas mãos do mesmo cientista. Antes, o Prêmio Nobel e depois, o remorso de ter provocado tanta dor e o suicídio da mulher querida. As duas faces de Jano. Em 1927, em carta a um amigo, Fritz Haber fez a seguinte confissão:
- Estou lutando, cada vez mais depauperado, contra meus quatro inimigos: a insônia, as reivindicações financeiras da minha segunda esposa, Charlotte Nathan, minha preocupação com o futuro e a sensação de haver cometido graves erros em minha vida.
Assinar:
Postagens (Atom)