sábado, 2 de janeiro de 2010

SOLILÓQUIO

Aguardando uma tertúlia literária

Chego muito antes das 14 horas e acomodo-me na primeira fila. Lembro-me de ter trazido as crônicas do Machado de Assis e aproveito para ler sobre o velho Senado, pois conhecer a alma das instituições sempre me comove e emociona.

Machado de Assis

"Paranhos costumava falar com moderação e pausa; firmava os dedos, erguia-se para o gesto lento e sóbrio, ou então para chamar os punhos da camisa, e sua voz ia saindo meditada e colorida. Naquele dia, porém, a ânsia de produzir a defesa era tal, que as primeiras palavras foram antes bradadas que ditas:

- Não à vaidade, senhor presidente...

Daí a um instante, a voz tornava ao diapasão habitual, e o discurso continuou como nos outros dias. Eram nove horas da noite, quando ele acabou; estava como no princípio, nenhum sinal de fadiga, nem dele nem do auditório, que o aplaudiu."

Bardo Sereno

Dez minutos passados, talvez mais, absorvido pelo texto do Machado só agora percebo que a sala está lotada. Há muitas pessoas em pé. Ainda faltam 20 minutos para o início da sessão, uma eternidade. Subitamente um homem levanta-se no meio da plateia e toma a palavra:

- Meu nome é Bardo Sereno. Nada tenho a ver com este evento, mero circunstante e metediço que sou por aqui, mas gostaria que os senhores ouvissem o meu texto.

Bardo Sereno

Um constrangimento prolongado, até que o velhinho da bengala se manifestou:

- Texto, que texto?

- Um pequeno solilóquio, mediante o qual apresento a minha capacidade.

- Solilóquio... O que é isso?

- Um monólogo dramático de caráter literário, onde a personagem verbaliza o seu pensamento.

- Manda lá o solilóquio, se de fato pequeno.

- Aí vai... Maldo, escarneço, degringolo, hiperbolizo, descuro, prevarico, infernizo e obscureço, sem que ninguém se dê conta da iniquidade que represento. Tergiverso, ocultamente, e como! Posso rir de todos os discursos sobre o método, extrair a raiz cúbica do infinito, iluminar buracos negros e consolar girafas escandalizadas, eis alguns dos meus mais frequentes e divertidos passatempos. Posso evitar o assassinato de Lincoln, impedir o terremoto de Lisboa,
apagar o incêndio de Roma, absolver Giordano Bruno e Galileu Galilei, decidir sobre o Santo Graal, conferir os cálculos de Eratóstenes e reabrir a Academia de Platão, dela excluindo os que não saibam matemática, e somente estes. Que mais, isso mesmo, que mais? Sou capaz de conversar com Cervantes, convencer o indeciso Pilatos de que a democracia direta é muito complicada, conter os arroubos de Napoleão ou salvá-lo de Waterloo, dar ouvidos a Beethoven, atirar longe a cicuta de Sócrates e comprar trigais diretamente de Van Gogh. Uma pechincha, senhores, uma pechincha!

- Muito bem!

- Maravilhoso!

- Valeu, Bardo Sereno!

- Sinceramente... Eu não esperava críticas, assim, tão construtivas.
Obrigado, obrigado a todos!

Pier Angeli

- Saiba, Pier Angeli, que amanhã será tarde demais.

Muito curioso esse Bardo Sereno, mas prefiro que ninguém mais se anime para uma segunda exibição. Não tenho disposição, nem paciência, para ser plateia dos ASP, autores sem público. Pelo menos aqui. Não mesmo, não mesmo. Pois, como caixa de banco indefeso e desqualificado, sou obrigado a ouvir todo dia o gerente da conta dos aposentados, que tem um discurso parecido com o desse Bardo Sereno para relatar suas inesgotáveis proezas e capacidades. É o doutor Pacheco, um velhinho que fala rumeno sem sotaque, conhece armas e brasões, é PHD em geografia política, foi campeão de tênis, derrotou o Petrossian com xeque-mate de cavalo e sobreviveu 40 dias no deserto. Ah, antes que me esqueça, protagonizou o Cyrano de Bergerac, namorou a Pier Angeli e deu aulas particulares para Norberto Bobbio.

- Solilóquio, so - li - ló - quio...

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