NO MEIO DOS NHAMBIQUARAS
Outro dia, ao cruzar a Cinelândia, reencontrei o Ramiro, gênio capaz de uma Capela Sistina ou de uma Teoria da Relatividade. Não mudara quase nada, o sorriso que mais parecia uma hipotenusa, naquela cara trigonométrica e proparoxítona. Engenheiro suma cum laudae da turma de 1966, adquirira grande experiência construindo túneis e viadutos e trabalhou, depois, na construção da... ponte Rio-Niterói. Bingo! Eu, lá atrás, entendia alguma coisa de futuro...
- Diga-me, indaguei, você usou os conhecimentos do professor Kakaze, os 1.512.000 agrupamentos, o cálculo das probabilidades e a distribuição de Gauss?
- Não, nada disso foi necessário.
A obra havia dispensado a parte mateológica da sua inexcedível competência. Usara apenas ferragem, cimento, brita um, brita dois, brita três, tabelas, ábacos, thumb rules...
- O quê?
- Thumb rules, isso que se chama de "chutes"...
- Pombas!
Terminada a ponte, Ramiro engajou-se no desenvolvimento de campos de petróleo nas costas britânicas do Mar do Norte. Assentamento de plataformas e construção de sistemas flutuantes de produção, projetos que se justificam quando os preços do petróleo estão elevados, como agora.
- Está de férias?, perguntei-lhe, já em tom de despedida.
- Não, voltei de vez. Estou desempregado, mas decidido a conseguir uma ocupação sem grandes tardanças. Concorri ao cargo de engenheiro de manutenção numa fábrica de computadores em Maria da Graça, mas fui recusado no teste. Não soube responder o nome que se dá à unidade de elastância.
- É daraf, comentei, usando meus conhecimentos de palavras cruzadas. O daraf é o inverso do farad, que, por sua vez, é a unidade prática de capacitância.
- Estou, porém, na iminência de conseguir um emprego de oito salários mínimos, mais sobreaviso e periculosidade, numa hidrelétrica no norte de Mato Grosso, junto da reserva indígena dos nhambiquaras. Uma passagem de avião por ano, ida e volta, para visitar o Rio de Janeiro. Vou usar toda a minha experiência na construção de barragens, sem nenhuma agressão ao meio ambiente ou aos processos ecológicos essenciais.
Profissionais de mercado
Não consigo imaginar o Ramiro senão brilhando, o giz em riste, sob os aplausos entusiasmados do professor Kakaze. Mas essa questão dos nhambiquaras me desconcertou, desestabilizando as minhas memórias. Dos quais, nhambiquaras, sei, apenas e cruzadisticamente, que gostam de aaru, que é um bolo no qual se misturam carne de tatu e farinha de mandioca.
- Meu caro pitecantropo, o binômio de Newton é até citado nas poesias do Fernando Pessoa.
Será que o Ramiro brilhava mesmo ou não passava de uma das minhas fantasias? O professor Kakaze citou realmente o Fernando Pessoa?
Veio então a ideia. É verdade que eu nunca dera importância à poesia e conhecia, se tanto, o Mal Secreto e alguns trechos bem condoreiros do Navio Negreiro. Seja como for, fui à livraria e comprei as obras completas de Fernando Pessoa, o poeta que, em sonhos, sonhos criou. Logo na introdução, fiquei sabendo que foi um homem do comércio, autor de textos para dirigentes de empresas, publicados na Revista de Comércio e Contabilidade, de Lisboa, e de uma vasta Teoria e Prática do Comércio.
- Um profissional de mercado, exatamente como eu!
Li toda obra e encontrei o poema em Álvaro de Campos:
“O Binômio de Newton é tão belo como a Vênus de Milo. Players e observadores
Um exemplo de player: Vittorio Gassman, o homem que desfrutou o doce arroz amargo... Outros players: Costa e Silva, Rembrandt e Ramiro. Eles entendem de álgebras e metáforas e movem a história, para o bem ou para o mal, o êxito ou o infortúnio. Tentei ser player também, mas não passei de um mero observador. Resta-me o consolo de que, sem observadores, este universo não faria nenhum sentido.
sábado, 23 de janeiro de 2010
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