sábado, 16 de janeiro de 2010

DOCE ARROZ AMARGO

Premonições, maná e bolsa de valores

Qualquer pessoa normal entende a lógica da contabilidade, pois o grande Luca Paciolo, criador das partidas dobradas, era um homem positivamente menos complicado do que o professor Kakaze. Para começar, a terminologia é simples e direta. Não se cogita de nenhum logaritmo, nem de derivada, mas do ativo disponível. O passivo circulante ocupa o lugar das equações trigonométricas e das integrais indefinidas, e não há espaço para inequações de nenhuma natureza, sendo certo, com justa razão, que os dois pratos da balança deverão permanecer em rigorosa paridade.
Fora isso, basta ter um pouco de organização, para não misturar informações, e de paciência, para consultar tabelas, como quem vai ao dicionário.

- Ah, vale também um pouco de bom senso, para nunca somar o que deve ser subtraído, pois essa inversão implica um erro multiplicado por dois.


- Fora da contabilidade também.

Logo percebi que a atividade estava a meu alcance e, incapaz de viver das palavras cruzadas, decidi trabalhar como contador. Botei banca de guarda-livros, apenas ciente dos prolegômenos contábeis, e nesse mister, entre borradores e diários, muito me valeu o aforismo de Sparafucile de Pococô:

- O dinheiro é bolsípeto, pois, se sair de um bolso, entra necessariamente em outro bolso.

- Bolsípeto?

- Movido por uma força de natureza centrípeta, como aquela que a gente estuda na Física. Seria até melhor dizer "bolsímpeto".

No início faturava pouco, cobrando um salário mínimo por cliente. Depois, perdida a inocência, passei a exigir honorários cada vez mais elevados, certo de que os clientes não teriam como me opor nenhuma resistência. Impor o preço, na cartilha dos bem-sucedidos, implica um decisivo salto de qualidade...

Eu e a bolsa de valores

Foi, então, que entrei para a classe dos milionários de gabinete, quando gloriosamente me pus a especular na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, à sombra da Comissão de Valores Mobiliários, estimulado pela Fazenda, aplaudido, e muito, pelo Planejamento e conven
ientemente documentado pela Associação Nacional dos Analistas dos Mercados de Capitais. Ah, nunca me esqueça de dizer que naquela época tudo o que se amealhava nesse mercado gozava de isenção do imposto de renda.

- Um incentivo providencial, muito justo e conveniente...

Bolsa de Valores do Rio de Janeiro

Minha técnica era a de adquirir barato, e a termo, na adinamia do mercado, e enfiar caro, e à vista, nas fases de euforia. Em outras palavras, comprar quando todos queriam vender e vender quando decidiam voltar às compras, movidos pela ambição de violar princípios termodinâmicos e criar o moto contínuo de primeira espécie. Quem não se lembra de 1971, quando as pessoas trocavam suas casas por ações? O Plano Cruzado, esquecer quem há de?

- Eu, na outra ponta, vendia ações a mancheias...

Se é verdade que se pode perder muito (ou, o que dá no mesmo, ganhar milhões num dia e vê-los desaparecer no dia seguinte), o esperto geralmente se dá bem, muito bem, pois a Bolsa, convenientemente utilizada, pode ensejar um retorno muito superior ao esforço despendido.

- Um jogo desproporcional, desequilibrado, a favor dos... equipados.

- Engana-se o cruzadista que entender
, na vida real que existe cá fora do diagrama, que maná é apenas o alimento que Deus mandou em forma de chuva para socorro dos israelitas no deserto...

Arroz doce

Consumado o êxito das minhas especulações, desapareci completamente dos pregões, pois especular é atividade de gente pobre. Ou melhor, de gente ainda pobre. Comprei um apartamento de três andares, mais cobertura, na Avenida Vieira Souto, uma ilha em Cabo Frio e uma centena de salas nos melhores edifícios da Avenida Rio Branco. Passei a acionista majoritário de algumas empresas sólidas e rentáveis, engajadas em negócios de fertilizantes, bebidas e metalurgia, que meus prepostos administram com redobrado zelo e eficiência, na pressuposição e temor de que posso demiti-los a qualquer momento.

- Fiquei rico porque fui incapaz de aprender Matemática...


Do meu escritório, de frente para o pôster de Silvana Mangano, depois da surra na chuva e molhada de 18 anos, contemplo com nostalgia a obra de 13 quilômetros a cuja construção não tive acesso por não ter entendido a distribuição de Gauss, eis o meu fracasso mais retumbante.

- Não me despojarei, porém, do mérito de tê-las antevisto, Silvana e a ponte, tamanhas, nas minhas premonições de adolescente...

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