Uma certeza que me acompanha existência afora, nem sei exatamente por quê, é a de que todo mundo acaba fazendo alguma poesia, nem que seja umazinha só, mirrada e solitária. No meu caso, isso é meio complicado porque não tenho nenhuma afirmação abrangente a fazer, nem para os amigos, nem sobretudo para a humanidade.
Tenho cara de sósia
Sobreveio, porém, o incidente vivido à porta do motel, que preciso contar desde o começo. Confesso constrangidamente que tenho cara de sósia, do tipo mais genérico e vulgar, tantas vezes já me confundiram com outras pessoas. Nunca, porém, o mal-entendido veio com tanto fervor e destempero.
Saíamos do motel, quando uma desconhecida, irrompendo do nada, deu um empurrão em May e dirigiu-se a mim de maneira extravagante e agressiva.
- Pensa que a coisa vai ficar assim, seu cretino? Me deixando por essa aí? Não adianta tirar a barba, nem o bigode, que eu te reconheço debaixo de qualquer disfarce, mesmo fantasiado de satanás ou de vice-rei da Catalunha! Eu irei atrás de você até as profundezas do inferno!
De um lado, uma mulher equivocada, plena de fúria e desespero, e, do outro, eu, um homem desconcertado, sem saber o que fazer, nem como reagir.
- Mas quem é a senhora?
- Não sabe quem sou eu, essa é boa, muito boa! E, além de tudo, me chamando de senhora! Você sempre me chamou de minha cachorrinha, não se lembra não, seu cretino?
Cada vez mais desorientado, a custo me desvencilhei da megera, um pesadelo vociferante, que finalmente se afastou, sempre aos gritos, desaparecendo numa curva da Niemeyer. Exausto e humilhado, tive então outra surpresa: May, na confusão, havia abandonado o local, seguindo de táxi para o Leblon.
Um tribunal chamado May
À perplexidade daquele momento juntou-se a decepção dos dias que se seguiram. May se recusou a atender os meus telefonemas. Não sei se doeu mais a separação ou se a lógica absurda na qual se baseou. Senti semanas a fio uma terrível sensação de impotência, a de um inocente condenado por causa de um lamentável mal-entendido, inerme e inerte diante de um tribunal chamado May, a mulher que eu amava. Que ouviu uma acusação contra mim, de nenhum fundamento, me julgou e me condenou, sem sequer me conceder a generosidade de me ouvir.
Apesar disso, ou, quem sabe, exatamente por isso, eu sentia muita falta dela. Afinal, May não tinha culpa de ignorar a minha inocência. Foi então que fiz a poesia, cumprindo o destino de ser poeta por um dia. Poesia tem de ser mostrada, imaginei, ou deve ir para a lata do lixo. Foi por isso que pensei em ir ao Museu, chamar pela May e depor-lhe o meu amor. Uma declaração seguida de uma declamação, de acordo com um teatro que cheguei a ensaiar.
O que declarar:
"Fiz uma poesia para você, os primeiros versos da minha vida. Versos ruins, sem dúvida, o que não tem nenhuma importância, nem consequência. Porque não sou poeta, May, mas um homem confessando o seu amor."
O que declamar:
Sempre demora, mas passa.
A banda passa na praça,
Tocando com muita graça.
A uva demora, mas passa.
Passa boi, passa boiada,
Passarinho, passarada.
O aluno se vira e passa,
O filme passa no paço,
E, do pascácio que passa,
Não fica nem a carcaça.
Mas você, aqui no peito,
Agarrada como traça,
Impassante, impassada,
Só você é que não passa."
Horror ao vexame
Não era simples, todavia. Para ir ao Museu eu teria de arrostar e vencer todas as minhas resistências. O que não aconteceu, pois, tudo aferido e sopesado, prevaleceu o meu recato. Ir ao Museu, de poesia em punho, onde já se viu, ora essa! Galileu Galilei afirmou que a Natureza tem horror ao vácuo; pois eu, o que tenho é o horror do vexame.
- E, convenhamos, os meus versos, sabe-se lá, como os meus versos são ridículos!
Um comentário:
Meu caríiissimo professor, escritor
e poeta! Sim senhor! Tanto ouro escondido, por quê? Passei uns dias
ausente e quando volto encontro um manancial de coisas boas para ler!
Que maravilha, Remo, gostei de todas as postagens que fizeste. Que fôlego, hein?! Voltaste cheio
de inspiração. Embora tenhas dito
que teus versos são "ridículos",devo dizer que não concordo, absolutamente!
Parabéns!
Um grande abraço (estava com saudades!)
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