TÉDIO
Oito anos são suficientes para qualquer pessoa mudar, do primeiro ao último átomo, inexorável e definitivamente. Pois é, assim foi. Ao fim e ao cabo, Cecília e eu éramos outros, não outros quaisquer e ocasionais, mas outros consumados, consumadíssimos.
Nossas conquistas profissionais e materiais aos poucos passaram a não representar mais que uma higiene, a não nos garantir nenhum prazer nem estabilidade: uma higiene que de certo modo até nos desunia. Além disso, os prazeres da cama vão diminuindo lenta e progressivamente, e tenho para mim que não há comunhão de almas e união estável que não sejam garantidas a golpes de paixão e de volúpia.
Tédio, quem sabe o tédio não seja exatamente isso?
No início, lá atrás, eu queria um filho, mas Cecília me dissuadiu, pois filhos não se compatibilizavam com a dinâmica dos negócios, que sempre se opõem à normalidade da vida familiar. Bastava ver que éramos obrigados a constantes viagens ou a compromissos intermináveis e exaustivos. Recentemente, porém, ela mudou de ideia, e foi a minha vez de vetar a iniciativa. Ela, uma mulher especialmente inteligente, não se deu conta da irresponsabilidade que seria gerar um filho num casamento que definhava, anódino e desaquecido.
- Devemos continuar pensando com calma sobre esse assunto, Cecília. Vivemos num ritmo muito profissional, que teria de se alterar de forma importante antes de introduzir mais alguém no nosso espaço.
Progressão é progressão, e um dia o custo ultrapassa o benefício. Pois é, Cecília me veio com aquela história de Montgomery Clift e Shelley Winters, um amor que teve de fenecer para ensejar outro amor, maior e renovado; eu merecia, assim também, encontrar a minha Elizabeth Taylor, pois a mim não me faltavam os atributos para um merecido lugar ao sol.
Foi assim, civilizadamente assim, que ela me comunicou que nosso casamento já não lhe interessava. Eu me esquivei de produzir uma ironia, a de lembrar que nessa história do lugar ao sol o personagem de Montgomery Clift terminou sendo arrastado para a cadeira elétrica.
Achei, isto sim, que estava sendo protegido pela sorte, pois separar-me era tudo o que então desejava e, pelo que conheço de mim, se minha tivesse sido a iniciativa, mais um remorso teria para administrar.
Ela ficou com a nossa casa no Itanhangá, o único bem material que tínhamos em comum, e me compensou com dinheiro bastante para um apartamento no Leblon.
- Pode ficar com a minha parte.
- Claro que não, Carlinhos.
Uma derradeira convivência ainda nos tocou, sem nenhuma animosidade ou irritação. Que nem fariam sentido na nossa história, da qual a separação foi apenas um capítulo necessário.
Estranho, porém, foi continuar transitando mais quarenta dias pelos caminhos da casa, pois nenhum cenário permanece neutro, nem impune, em face de um amor exaurido. Até a arte perde o sentido, as cores se esmaecem e, para dizer a verdade, nunca vi a menor graça naquela cortina da sala de visitas, lilás, isso mesmo, lilás, e em momento algum estive de acordo com a moldura que ela escolheu para o Böcklin que arrematamos no leilão da Bartolomeu Mitre.
Não soube mais da Cecília, que alguns meses depois do nosso último contato vendeu a casa do Itanhangá e mudou-se para Paris. Nem mesmo um telefonema ou um protocolar cartão de despedida. Pois um deixou de existir para o outro, aquele estágio na relação entre duas pessoas que, para Otávio Paz, poderia chamar-se de nenhumação.
Ou melhor, nenhumação recíproca, que é a arte de inexistir daqui para lá e de lá para cá...
quarta-feira, 28 de janeiro de 2009
domingo, 25 de janeiro de 2009
A IMAGEM DO UNIVERSO (11/n)
ARISTÓTELES
Muitos consideram Aristóteles (384-324 a. C.) o primeiro gênio universal, sendo certo que seus trabalhos pautaram o rumo da ciência, desde seu tempo até meados da era moderna. Para além da Lógica (por ele criada), Ética, Moral, Retórica, Metafísica, Política e Linguística, Aristóteles deixou muitos trabalhos em ciência (incluindo Física, Meteorologia e Biologia), retomando o estudo da natureza e o curso do desenvolvimento científico que se iniciara com os pré-socráticos.
Tinha interesse por tudo, a julgar pela sua extraordinária coleção de livros, ele que foi apontado como a segunda pessoa na História a ter uma biblioteca (após Eurípedes).
Em 335 a. C., Aristóteles fundou o Liceu, um centro de estudos onde ministrou aulas para alunos (lições esotéricas) e conferências para o público em geral (lições exotéricas), num período de dez anos.
Aristóteles rejeitou a descrição da matéria por meio de átomos, feita por Leucipo e Demócrito, e assumiu os quatro elementos primordiais de Empédocles: terra, água, ar e fogo. Cada um destes elementos procura o seu lugar natural no Universo, o que explica todo movimento no mundo:
- corpos feitos de terra caem na Terra;
- as bolhas ascendem da Terra;
- a chuva cai do céu, deslocando-se, através dos córregos, para os rios e finalmente para o mar;
- o fogo se ergue para o ar.
O Universo de Aristóteles
Seu trabalho cosmológico, "Sobre os Céus", de 350 a. C., foi aceito por mais de 18 séculos, até o advento dos trabalhos de Copérnico, no século XVI. A Terra, esférica e "imperfeita", estava situada no centro do Universo, imóvel, circundada por 11 esferas concêntricas, feitas de um "quinto elemento" inalterável, uma substância perfeitamente transparente conhecida como "quintessência" ou "éter" .
As três primeiras esferas contêm água, ar e fogo. As outras oito esferas "seguram" os corpos celestes conhecidos na época: a Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter, Saturno e as estrelas. As estrelas são fixas, não se movem. Cada uma dessas esferas concêntricas é movimentada por um deus. Esse Universo sempre existiu e existirá, permanecendo inalterado, por toda a eternidade. Depois da esfera das estrelas, vinha a parte imaterial do Universo, configurando o domínio espiritual.
A física concerne apenas ao mundo sub-lunar, espaço do movimento e da corrupção.
Provas da redondeza da Terra
Aristóteles propôs quatro provas observacionais de que a Terra era uma esfera:
- os navios desaparecem lentamente no horizonte.
- durante os eclipses lunares a sombra lançada sobre a Lua pela Terra parece circular.
- à medida que uma pessoa viaja para o norte, as estrelas polares se colocam cada vez mais alto no céu e outras estrelas vão se tornando visíveis ao longo do horizonte. Isto só pode acontecer se a Terra for esférica.
- elefantes são encontrados tanto na Índia, que se situa a leste, como no Marrocos, a oeste. Logo, as duas regiões estão a uma distância razoável, ou seja, na superfície de uma esfera de tamanho moderado.
Terra imóvel
- Por que você acha que a Terra é imóvel?, perguntaram a Aristóteles.
- Porque, se a Terra se movesse, um corpo atirado verticalmente para cima não cairia no mesmo ponto de onde partiu, mas num outro ponto que ocuparia o seu lugar, em virtude do movimento da Terra.
Esse argumento foi usado até os estudos de Galileu, no século XVII, quando foi reconhecido o Princípio da Inércia, pelo qual o corpo atirado, durante sua ascensão e queda mantém adicionalmente o movimento da Terra e cai exatamente no mesmo lugar. Ou seja, pelo princípio da inércia, mesmo com o movimento da Terra, a pedra atirada verticalmente para cima cai no quintal de quem a atirou, não no quintal do vizinho.
Muitos consideram Aristóteles (384-324 a. C.) o primeiro gênio universal, sendo certo que seus trabalhos pautaram o rumo da ciência, desde seu tempo até meados da era moderna. Para além da Lógica (por ele criada), Ética, Moral, Retórica, Metafísica, Política e Linguística, Aristóteles deixou muitos trabalhos em ciência (incluindo Física, Meteorologia e Biologia), retomando o estudo da natureza e o curso do desenvolvimento científico que se iniciara com os pré-socráticos.
Tinha interesse por tudo, a julgar pela sua extraordinária coleção de livros, ele que foi apontado como a segunda pessoa na História a ter uma biblioteca (após Eurípedes).
Em 335 a. C., Aristóteles fundou o Liceu, um centro de estudos onde ministrou aulas para alunos (lições esotéricas) e conferências para o público em geral (lições exotéricas), num período de dez anos.
Aristóteles rejeitou a descrição da matéria por meio de átomos, feita por Leucipo e Demócrito, e assumiu os quatro elementos primordiais de Empédocles: terra, água, ar e fogo. Cada um destes elementos procura o seu lugar natural no Universo, o que explica todo movimento no mundo:
- corpos feitos de terra caem na Terra;
- as bolhas ascendem da Terra;
- a chuva cai do céu, deslocando-se, através dos córregos, para os rios e finalmente para o mar;
- o fogo se ergue para o ar.
O Universo de Aristóteles
Seu trabalho cosmológico, "Sobre os Céus", de 350 a. C., foi aceito por mais de 18 séculos, até o advento dos trabalhos de Copérnico, no século XVI. A Terra, esférica e "imperfeita", estava situada no centro do Universo, imóvel, circundada por 11 esferas concêntricas, feitas de um "quinto elemento" inalterável, uma substância perfeitamente transparente conhecida como "quintessência" ou "éter" .
As três primeiras esferas contêm água, ar e fogo. As outras oito esferas "seguram" os corpos celestes conhecidos na época: a Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter, Saturno e as estrelas. As estrelas são fixas, não se movem. Cada uma dessas esferas concêntricas é movimentada por um deus. Esse Universo sempre existiu e existirá, permanecendo inalterado, por toda a eternidade. Depois da esfera das estrelas, vinha a parte imaterial do Universo, configurando o domínio espiritual.
A física concerne apenas ao mundo sub-lunar, espaço do movimento e da corrupção.
Provas da redondeza da Terra
Aristóteles propôs quatro provas observacionais de que a Terra era uma esfera:
- os navios desaparecem lentamente no horizonte.
- durante os eclipses lunares a sombra lançada sobre a Lua pela Terra parece circular.
- à medida que uma pessoa viaja para o norte, as estrelas polares se colocam cada vez mais alto no céu e outras estrelas vão se tornando visíveis ao longo do horizonte. Isto só pode acontecer se a Terra for esférica.
- elefantes são encontrados tanto na Índia, que se situa a leste, como no Marrocos, a oeste. Logo, as duas regiões estão a uma distância razoável, ou seja, na superfície de uma esfera de tamanho moderado.
Terra imóvel
- Por que você acha que a Terra é imóvel?, perguntaram a Aristóteles.
- Porque, se a Terra se movesse, um corpo atirado verticalmente para cima não cairia no mesmo ponto de onde partiu, mas num outro ponto que ocuparia o seu lugar, em virtude do movimento da Terra.
Esse argumento foi usado até os estudos de Galileu, no século XVII, quando foi reconhecido o Princípio da Inércia, pelo qual o corpo atirado, durante sua ascensão e queda mantém adicionalmente o movimento da Terra e cai exatamente no mesmo lugar. Ou seja, pelo princípio da inércia, mesmo com o movimento da Terra, a pedra atirada verticalmente para cima cai no quintal de quem a atirou, não no quintal do vizinho.
quarta-feira, 21 de janeiro de 2009
AMOR E CULTURA
Pequenos burgueses
May ligou-me do Museu.
- Quero convidá-lo para ver uma peça.
- Peça, sobre o quê? Quando?
- Pequenos Burgueses, de Máximo Gorki, hoje à noite. Sobre os Bessemenovs, uma família russa em decadência. Nem pense em recusar, pois já adquiri os ingressos.
May, ao volante, tomou o rumo do Teatro Villa-Lobos. Durante o percurso explicou-me que Máximo Gorki teve uma vida miserável, trabalhando como lavador de pratos, pescador, vendedor de frutas, muitas vezes sobrevivendo até como vagabundo.
Gorki chegou a tentar o suicídio, no desespero de quem se sente perdido, no meio de uma gente corrupta e miserável. Consagrou-se, porém, ao escrever os Pequenos Burgueses, pois a triste decadência dos Bessemenovs, com todas as suas contradições, era uma amostra do que acontecia na Rússia que antecedeu a Revolução Comunista.
Alumbramento
Tudo foi, para mim, um alumbramento: o teatro, o ambiente, o ritual.
E, claro, a peça, a mais densa e interessante a que já assisti. Um pai arbitrário, uma filha deprimida, um filho pretensioso e Nill, trombeta de Deus! Era a classe média assoberbada pelo tédio, numa sociedade em plena e decidida decomposição.
Saí do teatro ainda mais convencido de que era necessário introduzir alguma cultura na minha vida, jogando na lata do lixo aquele modelo idiota de só pensar em integrais, vetores, transformadas de Laplace, eletricidade e mecânica. No trajeto de volta, lembrei-me de Charles Percy Snow, para o qual poucos cientistas leem Charles Dickens ou uma peça de Shakespeare, e poucos artistas conhecem o Segundo Princípio da Termodinâmica. Assim fica muito difícil resolver os problemas do mundo, arrematou o citado Snow.
Fica mesmo. Não que eu me considere um cientista na acepção integral da palavra, dado que sou apenas um estudante de física, mas não posso continuar sendo um analfabeto cultural em plena cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Uma semana depois, May ligou-me novamente, sempre assumindo as iniciativas.
- Já tenho os ingressos.
- Mas qual o filme?
- Isso também é importante. O Estrangeiro, baseado num romance de Albert Camus.
- Albert Camus?
Ora, pois, Albert Camus. O senhor Meursault decide ir ao enterro da mãe, cuja idade desconhece. Sei lá, sessenta anos. Encontra-se depois com Marie Cardona e vê um filme de Fernandel; Mersault se relaciona com um vizinho, Salamano, que tem um cachorro nojento; e com outro, Raymond Sintès, que é cafetão e tem o hábito de espancar a mulher até o sangramento.
No domingo, Meursault, Marie Cardona e Raymond Sintès vão para a casa de praia de Masson, um amigo de Raymond. Dois árabes atacam Raymond na praia, pois querem vingar-se da surra que ele deu na prostituta. São repelidos por Raymond e Masson, que, a seguir, voltam para casa.
Meursault passeia pela praia sozinho e avista um dos árabes, que exibe a faca, sem nenhuma atitude agressiva. Era só Meursault voltar também para casa, e tudo estaria terminado. Mas havia o sol na cara. Mersault atira, e o árabe tomba, fulminado. Depois atira mais quatro vezes contra o corpo inerte do homem caído.
O advogado, o juiz e o promotor tentam entender o gesto de Mersault, que, de fato, nunca se arrepende de nada porque é dominado pelo que vai acontecer.
- Eu matei o árabe por causa do sol.
O capelão insiste em falar com o senhor Meursault, pois precisa conquistar sua alma de condenado à morte.
- Deus irá ajudá-lo, Meursault.
- Não quero que ninguém me ajude, e me falta tempo para me interessar pelo que não me interessa.
Isso é que é indiferença perante a vida.
Uma obra de Camus, mostrando, numa reflexão sobre o absurdo, um homem que se estranha, estrangeiro de si próprio.
- Muito esquisito.
- Bota esquisito nisso, Carlinhos.
Ficar atento às oportunidades culturais e dar mais atenção aos cadernos internos do jornal, ler Proust, a Divina Comédia e o Dom Quixote, ir ao Municipal, ser capaz de reconhecer uma ária de Verdi ou uma sonata de Beethoven, saber francês e jogar bridge. Ilíada, Finnegans Wake, mitologia grega e escandinava, o Anel dos Nibelungos, Noberto Bobbio, Ángel San Briz e Condillac. E, claro, vinhos, filosofia e economia política.
Ver 117 vezes o segundo ato das Bodas de Fígaro, de Wolfgang Amadeus Mozart!
E, tendo alcançado tudo isso, gritar, alto e bom som, como um Bocage desvairado do Baixo Leblon:
- Gente ímpia, rasgai os meus versos e crede na eternidade, pois já beócio não sou!
Resumindo, assim ignorante, não estarei à altura da May.
May ligou-me do Museu.
- Quero convidá-lo para ver uma peça.
- Peça, sobre o quê? Quando?
- Pequenos Burgueses, de Máximo Gorki, hoje à noite. Sobre os Bessemenovs, uma família russa em decadência. Nem pense em recusar, pois já adquiri os ingressos.
Gorki
May, ao volante, tomou o rumo do Teatro Villa-Lobos. Durante o percurso explicou-me que Máximo Gorki teve uma vida miserável, trabalhando como lavador de pratos, pescador, vendedor de frutas, muitas vezes sobrevivendo até como vagabundo.
Gorki chegou a tentar o suicídio, no desespero de quem se sente perdido, no meio de uma gente corrupta e miserável. Consagrou-se, porém, ao escrever os Pequenos Burgueses, pois a triste decadência dos Bessemenovs, com todas as suas contradições, era uma amostra do que acontecia na Rússia que antecedeu a Revolução Comunista.
Alumbramento
Tudo foi, para mim, um alumbramento: o teatro, o ambiente, o ritual.
E, claro, a peça, a mais densa e interessante a que já assisti. Um pai arbitrário, uma filha deprimida, um filho pretensioso e Nill, trombeta de Deus! Era a classe média assoberbada pelo tédio, numa sociedade em plena e decidida decomposição.
Saí do teatro ainda mais convencido de que era necessário introduzir alguma cultura na minha vida, jogando na lata do lixo aquele modelo idiota de só pensar em integrais, vetores, transformadas de Laplace, eletricidade e mecânica. No trajeto de volta, lembrei-me de Charles Percy Snow, para o qual poucos cientistas leem Charles Dickens ou uma peça de Shakespeare, e poucos artistas conhecem o Segundo Princípio da Termodinâmica. Assim fica muito difícil resolver os problemas do mundo, arrematou o citado Snow.
Fica mesmo. Não que eu me considere um cientista na acepção integral da palavra, dado que sou apenas um estudante de física, mas não posso continuar sendo um analfabeto cultural em plena cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Camus
Uma semana depois, May ligou-me novamente, sempre assumindo as iniciativas.
- Já tenho os ingressos.
- Mas qual o filme?
- Albert Camus?
Ora, pois, Albert Camus. O senhor Meursault decide ir ao enterro da mãe, cuja idade desconhece. Sei lá, sessenta anos. Encontra-se depois com Marie Cardona e vê um filme de Fernandel; Mersault se relaciona com um vizinho, Salamano, que tem um cachorro nojento; e com outro, Raymond Sintès, que é cafetão e tem o hábito de espancar a mulher até o sangramento.
No domingo, Meursault, Marie Cardona e Raymond Sintès vão para a casa de praia de Masson, um amigo de Raymond. Dois árabes atacam Raymond na praia, pois querem vingar-se da surra que ele deu na prostituta. São repelidos por Raymond e Masson, que, a seguir, voltam para casa.
Meursault passeia pela praia sozinho e avista um dos árabes, que exibe a faca, sem nenhuma atitude agressiva. Era só Meursault voltar também para casa, e tudo estaria terminado. Mas havia o sol na cara. Mersault atira, e o árabe tomba, fulminado. Depois atira mais quatro vezes contra o corpo inerte do homem caído.
O advogado, o juiz e o promotor tentam entender o gesto de Mersault, que, de fato, nunca se arrepende de nada porque é dominado pelo que vai acontecer.
- Eu matei o árabe por causa do sol.
O capelão insiste em falar com o senhor Meursault, pois precisa conquistar sua alma de condenado à morte.
- Deus irá ajudá-lo, Meursault.
- Não quero que ninguém me ajude, e me falta tempo para me interessar pelo que não me interessa.
Isso é que é indiferença perante a vida.
Uma obra de Camus, mostrando, numa reflexão sobre o absurdo, um homem que se estranha, estrangeiro de si próprio.
- Muito esquisito.
- Bota esquisito nisso, Carlinhos.
Minha única saída
Ficar atento às oportunidades culturais e dar mais atenção aos cadernos internos do jornal, ler Proust, a Divina Comédia e o Dom Quixote, ir ao Municipal, ser capaz de reconhecer uma ária de Verdi ou uma sonata de Beethoven, saber francês e jogar bridge. Ilíada, Finnegans Wake, mitologia grega e escandinava, o Anel dos Nibelungos, Noberto Bobbio, Ángel San Briz e Condillac. E, claro, vinhos, filosofia e economia política.
Ver 117 vezes o segundo ato das Bodas de Fígaro, de Wolfgang Amadeus Mozart!
E, tendo alcançado tudo isso, gritar, alto e bom som, como um Bocage desvairado do Baixo Leblon:
- Gente ímpia, rasgai os meus versos e crede na eternidade, pois já beócio não sou!
Resumindo, assim ignorante, não estarei à altura da May.
domingo, 18 de janeiro de 2009
IMAGEM DO UNIVERSO (10/n)
PLATÃO
No Timeu, seu texto mais conhecido durante a Idade Média e Renascença, Platão (428 -347 a. C.) apresenta a teoria de que a criação do mundo foi obra de um deus geômetra. Um mundo composto de sólidos, figuras e movimentos perfeitos, cujas imperfeições aparentes devem-se às nossas limitações sensoriais.
Em 387 a. C., Platão fundou a sua Academia num subúrbio de Atenas, a primeira universidade de que se tem notícia, com o objetivo de preparar a futura classe dirigente de Atenas. Um modelo de instituição de ensino, que funcionou por cerca de 900 anos, até ser destruída pelo imperador bizantino Justiniano I, no século VI d. C.
Platão buscava um conhecimento pela matemática, não pela física. Na entrada da Academia, fez inscrever a seguinte proibição:
Sua geometria era, porém, a das figuras ideais, o círculo, o triângulo e o polígono regular, fazendo matemática pela matemática; o mundo das idéias é que é o mundo real, ao qual devemos chegar pelo conhecimento racional, não pela observação.
A concepção de Platão
O deus geômetra impôs uma ordem a um caos pré-existente e construiu um mundo perfeito e matemático:
Tais os princípios gerais do mundo de Platão, que outros de seu tempo, como Eudóxio de Cnido, iriam procurar detalhar. Platão descarta o modelo de Filolau: nada de fogo central, nem de antiterra, muito menos o movimento da Terra ou seu deslocamento do centro do Universo.
Eudóxio de Cnido
Eudóxio de Cnido (400-355 a.C.) foi um destacado professor da Academia de Platão, filósofo, matemático e astrônomo, cujos estudos serviram amplamente a Euclides, Arquimedes e Aristóteles.
É considerado um dos maiores matemáticos de todos os tempos, por seus extraordinários trabalhos:
autor da teoria das proporções entre grandezas de mesma espécie, que seria importante, dois milênios depois, na elaboração da teoria dos números reais;
autor do método da exaustão utilizado em cálculos geométricos;
iníciador do cálculo integral;
descobridor de diversas relações sobre áreas, círculos e esferas, como o cálculo da área do círculo e a razão, de um terço, entre o volume do cone e o volume de um cilindro de mesma base e mesma altura.
Considerado, além disso, o pai da astronomia científica, por seus cálculos em relação às grandezas cósmicas, Eudóxio de Cnido deu uma configuração às concepções de Platão, criando um modelo matemático de representação do movimento dos planetas, considerando cada planeta como pertencendo a um céu à parte, com a conjugação de esferas concêntricas, cujos movimentos levam os próprios planetas a se movimentarem.
Nesse modelo eram três esferas para a Lua, três para o Sol, quatro para cada um dos cinco planetas, além da esfera das estrelas fixas - 27 esferas, no total. As três ou quatro esferas de cada astro, ao se movimentarem, criam para ele um movimento resultante.
Tudo de acordo com Platão: Terra esférica, imóvel, no centro e astros que se movem em torno dela numa dança de movimentos uniformes circulares.
Heraclides do Ponto
Outro professor da Academia de Platão, Heraclides do Ponto (390 - 322 a.C) concebeu um sistema misto, em que Mercúrio e Vênus giram em torno do Sol, o qual gira em torno da Terra, assim como a Lua, Marte, Júpiter e Saturno.
Para Heraclides, além disso, a Terra não estaria parada, pois submetida a um movimento de rotação, girando em torno do seu centro.
Embora prontamente abandonado, o sistema de Heraclides seria retomado por Ticho Brae, no século XVI.
No Timeu, seu texto mais conhecido durante a Idade Média e Renascença, Platão (428 -347 a. C.) apresenta a teoria de que a criação do mundo foi obra de um deus geômetra. Um mundo composto de sólidos, figuras e movimentos perfeitos, cujas imperfeições aparentes devem-se às nossas limitações sensoriais.
Em 387 a. C., Platão fundou a sua Academia num subúrbio de Atenas, a primeira universidade de que se tem notícia, com o objetivo de preparar a futura classe dirigente de Atenas. Um modelo de instituição de ensino, que funcionou por cerca de 900 anos, até ser destruída pelo imperador bizantino Justiniano I, no século VI d. C.
Platão buscava um conhecimento pela matemática, não pela física. Na entrada da Academia, fez inscrever a seguinte proibição:
“Que aqui não entre quem não saiba geometria.”
A concepção de Platão
O deus geômetra impôs uma ordem a um caos pré-existente e construiu um mundo perfeito e matemático:
os astros são corpos esféricos, sólidos perfeitos por excelência, cujo
centro é equidistante de todos os pontos da periferia;
suas trajetórias são círculos, curvas perfeitas, percorridas a uma velocidade uniforme;
esferas concêntricas giram em torno da Terra, correspondendo aos quatro elementos de Empédocles: terra, água, ar e fogo;
na quarta esfera, a do fogo, os astros movem-se a distâncias que podem ser estabelecidas matematicamente;
o tempo nasceu com o céu para que, criados juntos, se dissolvam juntos, caso venham um dia a acabar;
para que o tempo nascesse, também nasceram a Lua e os outros cinco astros denominados errantes ou planetas, para definir e conservar os números do tempo.
centro é equidistante de todos os pontos da periferia;
suas trajetórias são círculos, curvas perfeitas, percorridas a uma velocidade uniforme;
esferas concêntricas giram em torno da Terra, correspondendo aos quatro elementos de Empédocles: terra, água, ar e fogo;
na quarta esfera, a do fogo, os astros movem-se a distâncias que podem ser estabelecidas matematicamente;
o tempo nasceu com o céu para que, criados juntos, se dissolvam juntos, caso venham um dia a acabar;
para que o tempo nascesse, também nasceram a Lua e os outros cinco astros denominados errantes ou planetas, para definir e conservar os números do tempo.
Tais os princípios gerais do mundo de Platão, que outros de seu tempo, como Eudóxio de Cnido, iriam procurar detalhar. Platão descarta o modelo de Filolau: nada de fogo central, nem de antiterra, muito menos o movimento da Terra ou seu deslocamento do centro do Universo.
Eudóxio de Cnido
Eudóxio de Cnido (400-355 a.C.) foi um destacado professor da Academia de Platão, filósofo, matemático e astrônomo, cujos estudos serviram amplamente a Euclides, Arquimedes e Aristóteles.
É considerado um dos maiores matemáticos de todos os tempos, por seus extraordinários trabalhos:
autor da teoria das proporções entre grandezas de mesma espécie, que seria importante, dois milênios depois, na elaboração da teoria dos números reais;
autor do método da exaustão utilizado em cálculos geométricos;
iníciador do cálculo integral;
descobridor de diversas relações sobre áreas, círculos e esferas, como o cálculo da área do círculo e a razão, de um terço, entre o volume do cone e o volume de um cilindro de mesma base e mesma altura.
Considerado, além disso, o pai da astronomia científica, por seus cálculos em relação às grandezas cósmicas, Eudóxio de Cnido deu uma configuração às concepções de Platão, criando um modelo matemático de representação do movimento dos planetas, considerando cada planeta como pertencendo a um céu à parte, com a conjugação de esferas concêntricas, cujos movimentos levam os próprios planetas a se movimentarem.
Nesse modelo eram três esferas para a Lua, três para o Sol, quatro para cada um dos cinco planetas, além da esfera das estrelas fixas - 27 esferas, no total. As três ou quatro esferas de cada astro, ao se movimentarem, criam para ele um movimento resultante.
Tudo de acordo com Platão: Terra esférica, imóvel, no centro e astros que se movem em torno dela numa dança de movimentos uniformes circulares.
Heraclides do Ponto
Outro professor da Academia de Platão, Heraclides do Ponto (390 - 322 a.C) concebeu um sistema misto, em que Mercúrio e Vênus giram em torno do Sol, o qual gira em torno da Terra, assim como a Lua, Marte, Júpiter e Saturno.
Para Heraclides, além disso, a Terra não estaria parada, pois submetida a um movimento de rotação, girando em torno do seu centro.
Embora prontamente abandonado, o sistema de Heraclides seria retomado por Ticho Brae, no século XVI.
sexta-feira, 16 de janeiro de 2009
UMA MULHER ESPECIAL
Lembre-se de Veneza
Passamos o dia vendo Ticiano, Tintoretto e Veronese. À noite, porém, decidimos sair daquele espaço entre a Praça de São Marcos e Rialto, o roteiro da segurança, e nos pusemos a caminhar aleatória e irresponsavelmente por estranhos becos e vielas, deixando para trás todas as referências e sotopórtegos. A consequência foi nos perdermos nos contornos da cidade, a qual, por sinal, sempre me pareceu um categórico labirinto. Na madrugada fria e silenciosa da Veneza aterradora, não havia uma única pessoa circulando pelas ruas, que nos socorresse com alguma orientação; rodávamos à busca de um rumo, cada vez mais perdidos e desnorteados; lembrei-me então dos casais assassinados naquelas reentrâncias, o que eu vira repetidas vezes em filmes e documentários.
Cecília ria, achando divertido e até romântico estarmos assim perdidos, sem entender por que eu me mantinha calado. Quando, sãos e salvos, desembocamos junto do nosso hotel, que ficava ao lado do Palácio dos Doges, ela apontou para a Ponte dos Suspiros e exclamou, cheia de alegria:
- Carlinhos, você é o meu Casanova!
Ri, muito aliviado, e decidi contar-lhe o perigo que havíamos passado, ao alcance de maníacos que trucidavam casais que se perdiam na madrugada escura de Veneza.
- Veneza, como Veneza? Ora, Carlinhos, isso é lá em Florença!
Eu me enganara. Não era a primeira vez, nem seria a última.
Veneza passou a ser uma espécie de senha, e, toda vez que eu errava, ela me advertia com autoridade:
- Lembre-se de Veneza.
Certa vez tive de dar uma palestra em Ouro Preto, e Cecília decidiu me acompanhar. Terminado o compromisso, ficamos na cidade para conhecer igrejas, ver obras do Aleijadinho, visitar o Museu de Mineralogia e percorrer os sítios históricos, como as casas de Tiradentes, Marília de Dirceu, Cláudio Manoel da Costa e Tomaz Antônio Gonzaga.
Corremos algumas lojas, e Cecília se encantou com um colar de granada, que custava dez mil e novecentos reais. Quando eu já preenchia o cheque, Cecília interrompeu a compra, movida por uma das suas intuições. Fomos a outras lojas e encontramos um colar, em tudo semelhante àquele, por escassos trezentos e vinte reais. Sua iniciativa implicou uma economia superior a dez mil reais, mais do que logo depois nos custou um mês de férias na Califórnia.
Granada tornou-se outra senha importante para os avisos recíprocos diante de preços irrazoáveis.
- Granada.
- Sim, granada.
E o episódio das corridas de cavalo? Expliquei-lhe como era o jogo, cada cavalo correndo na sua turma, e tudo sobre pista, distância, cânter, o partidor australiano, rateio, duplas e placês. Ah, expliquei também sobre o totalizador das apostas.
Eu estudava o programa e jogava, e Cecília, sem jogar, só observava.
No último minuto das apostas do oitavo páreo, ela decidiu jogar mil reais em Full Advantage, um cavalo que não tinha nenhuma chance, segundo todos os retrospectos e prognósticos. Que muitas vezes falham, sim, falham, e esse foi o caso, pois Full Advantage ganhou a corrida facilmente. Cecília recebeu no guichê seis mil e oitocentos reais.
- Como você descobriu esse Full Advantage?
- Você se preocupou com o retrospecto dos cavalos, e eu, que não entendo nada disso, com o dinheiro.
- Com o dinheiro?
- Sim, com o dinheiro, pois deste entendo alguma coisa. Fiquei de olho no totalizador, ao longo de todos os páreos anteriores.
- Sim, a evolução das apostas...
- Tive a clara percepção de que há pessoas que sabem qual será o cavalo ganhador.
- Como assim?
- Ganha o cavalo cujas apostas crescem desproporcionalmente nos três minutos que antecedem à largada; quando vi crescer de modo importante o volume jogado no Full Advantage, decidi assumir o meu risco.
- Coincidência, Cecília.
- Pode ser, mas funcionou.
Nesse dia perdi 700 reais, mas o saldo familiar foi positivo.
Passamos o dia vendo Ticiano, Tintoretto e Veronese. À noite, porém, decidimos sair daquele espaço entre a Praça de São Marcos e Rialto, o roteiro da segurança, e nos pusemos a caminhar aleatória e irresponsavelmente por estranhos becos e vielas, deixando para trás todas as referências e sotopórtegos. A consequência foi nos perdermos nos contornos da cidade, a qual, por sinal, sempre me pareceu um categórico labirinto. Na madrugada fria e silenciosa da Veneza aterradora, não havia uma única pessoa circulando pelas ruas, que nos socorresse com alguma orientação; rodávamos à busca de um rumo, cada vez mais perdidos e desnorteados; lembrei-me então dos casais assassinados naquelas reentrâncias, o que eu vira repetidas vezes em filmes e documentários.
Cecília ria, achando divertido e até romântico estarmos assim perdidos, sem entender por que eu me mantinha calado. Quando, sãos e salvos, desembocamos junto do nosso hotel, que ficava ao lado do Palácio dos Doges, ela apontou para a Ponte dos Suspiros e exclamou, cheia de alegria:
- Carlinhos, você é o meu Casanova!
Ri, muito aliviado, e decidi contar-lhe o perigo que havíamos passado, ao alcance de maníacos que trucidavam casais que se perdiam na madrugada escura de Veneza.
- Veneza, como Veneza? Ora, Carlinhos, isso é lá em Florença!
Eu me enganara. Não era a primeira vez, nem seria a última.
Veneza passou a ser uma espécie de senha, e, toda vez que eu errava, ela me advertia com autoridade:
- Lembre-se de Veneza.
Certa vez tive de dar uma palestra em Ouro Preto, e Cecília decidiu me acompanhar. Terminado o compromisso, ficamos na cidade para conhecer igrejas, ver obras do Aleijadinho, visitar o Museu de Mineralogia e percorrer os sítios históricos, como as casas de Tiradentes, Marília de Dirceu, Cláudio Manoel da Costa e Tomaz Antônio Gonzaga.
Corremos algumas lojas, e Cecília se encantou com um colar de granada, que custava dez mil e novecentos reais. Quando eu já preenchia o cheque, Cecília interrompeu a compra, movida por uma das suas intuições. Fomos a outras lojas e encontramos um colar, em tudo semelhante àquele, por escassos trezentos e vinte reais. Sua iniciativa implicou uma economia superior a dez mil reais, mais do que logo depois nos custou um mês de férias na Califórnia.
Granada tornou-se outra senha importante para os avisos recíprocos diante de preços irrazoáveis.
- Granada.
- Sim, granada.
E o episódio das corridas de cavalo? Expliquei-lhe como era o jogo, cada cavalo correndo na sua turma, e tudo sobre pista, distância, cânter, o partidor australiano, rateio, duplas e placês. Ah, expliquei também sobre o totalizador das apostas.
Eu estudava o programa e jogava, e Cecília, sem jogar, só observava.
No último minuto das apostas do oitavo páreo, ela decidiu jogar mil reais em Full Advantage, um cavalo que não tinha nenhuma chance, segundo todos os retrospectos e prognósticos. Que muitas vezes falham, sim, falham, e esse foi o caso, pois Full Advantage ganhou a corrida facilmente. Cecília recebeu no guichê seis mil e oitocentos reais.
- Como você descobriu esse Full Advantage?
- Você se preocupou com o retrospecto dos cavalos, e eu, que não entendo nada disso, com o dinheiro.
- Com o dinheiro?
- Sim, com o dinheiro, pois deste entendo alguma coisa. Fiquei de olho no totalizador, ao longo de todos os páreos anteriores.
- Sim, a evolução das apostas...
- Tive a clara percepção de que há pessoas que sabem qual será o cavalo ganhador.
- Como assim?
- Ganha o cavalo cujas apostas crescem desproporcionalmente nos três minutos que antecedem à largada; quando vi crescer de modo importante o volume jogado no Full Advantage, decidi assumir o meu risco.
- Coincidência, Cecília.
- Pode ser, mas funcionou.
Nesse dia perdi 700 reais, mas o saldo familiar foi positivo.
terça-feira, 13 de janeiro de 2009
SOBRE REFORMAS ORTOGRÁFICAS
Reformas intermináveis
Cabo Verde
A presente reforma limita-se a tirar e pôr tracinhos e pontinhos em palavras da língua, sem introduzir nenhuma modificação substantiva, mas é suficiente para tornar obsoletos todos os livros a ela anteriores. O pior é que sempre se fica sujeito a futuras reformas ortográficas, para as quais há temas abundantes, bastando ver, inter alia, que:
(a) Pela presente reforma, "paranoico" e "assembleia" (sem acento no "oi" e no "ei" tônicos), mas "herói" e "anéis" (com acento no "oi" e no "ei" tônicos).
(b) Pela presente reforma, "bocaiuva" , "feiura" e "Sauipe" (sem acento no "i" e "u" tônicos), mas "embaúba", "saída", “Piauí” e “Tuiuiú (com acento no "i" e "u" tônicos).
(c) Pela presente reforma, "micro-ondas" e "auto-organização" (com hífen) e "coordenar" e "cooperar" (sem hífen).
(d) Pela presente reforma, "sobre-humano" (com hífen), mas "subumano" (sem hífen).
(d) Pela presente reforma tornou-se facultativo o uso do acento circunflexo para diferenciar "forma" de "fôrma", como pode? Alguns verbos como "enxaguar" e "delinquir" também oferecem opção: se você quiser usar "enxáguo" e "delínquo", deixe o acento; mas, se for partidário do "enxagúo" e "delinqúo", retire o acento.
A derrota de Roosevelt
Em outros países, as iniciativas feitas para modificar o idioma usualmente malogram. Por exemplo, as tentativas de reformar o Inglês, tão cheio de problemas, vêm sendo malsucedidas desde o século XVII, com Charles Butler (1634), Samuel Johnson (1806), Isac Pitman (1837), Andrew Carnegie (1906), Bernard Shaw (1910) e H. G. Wells (1942).
Nem o presidente Theodore Roosevelt, com sua autoridade de intelectual e líder carismático, conseguiu bancar uma reforma desse tipo nos Estados Unidos. Em 11 de março de 1906, foi criado em Nova York “The Simplified Spelling Board”, um comitê para examinar os problemas da língua inglesa, integrado por vários intelectuais, entre os quais Samuel Clemens (o “Mark Twain”).
O Simplified Spelling Board constatou o óbvio: a língua inglesa é muito difícil de ler e de escrever, com prejuízo de todos os seus usuários e empecilho para a prosperidade da própria língua. Há nela uma pletora de incongruências, discrepâncias, irregularidades e inconsistências.
Seis exemplos
(a) palavras com letras sem função, como “e”, em “axe”, e “h”, em “ghost”.
(b) palavras grafadas esdruxulamente, como “enough”, que poderia ser “enuf”.
(c) por que “phantasy”, e não “fantasy”?
(d) fonemas e pronúncias na mais pura desordem. O grupo “ough” tem sons diferentes nas cinco palavras a seguir: through, though, thought, enough e cough. O grupo “augh” soa de modo diferente em daughter e laughter.
(f) Que dizer das diferenças entre o Inglês americano e o britânico? Cinco exemplos de palavras na versão americana e seu correspondente na versão inglesa:
honor e honour
center e centre
plow e plough
license e licence
theater e theatre
300 palavras
O Simplified Spelling Board organizou uma lista de 300 palavras que deveriam ser imediatamente escritas de maneira simplificada, ao passo que outras modificações haveriam de ser introduzidas no decorrer do tempo.
Essa iniciativa desonerava a língua, e alguns aceitaram a lista imediatamente, até mesmo algumas escolas.
Seu maior entusiasta foi Theodore Roosevelt, presidente dos Estados Unidos, que enviou uma carta ao United States Government Printing Office (Departamento de Imprensa do Governo), em 27 de agosto de 1906, ordenando que os documentos oficiais passassem a adotar a lista das 300 palavras modificadas.
Houve, porém, forte reação popular, pois os que aceitavam a simplificação eram na verdade minoria. Os jornais passaram a fazer piadas sobre a reforma, que foi rejeitada pelo Congresso em 13 de dezembro de 1906 e a seguir pela Suprema Corte dos Estados Unidos. A ideia de reformar a língua inglesa não morre, mas não prospera, havendo uma dezena de sistemas propostos, mofando nos esperadouros do esquecimento:
Alfabeto latino aumentado, de Benjamin Franklin.
Alfabeto não-latino da Igreja Mórmon
Alfabeto não-latino de George Bernard Shaw
Esquema de Regularização da Escrita, proposto pelo Conselho Literário Americano.
Plano do corte das letras supérfluas e redundantes
"Primeiro Passo", de um plano de reforma em 50 etapas.
Alfabeto latino aumentado uníssono
Reforma Ortográfica da Língua Inglesa (OR-E)
"Interspel", uma proposta de Valerie Yule, a ser introduzida por estágios.
"Plano bRitic", de Reginald Deans, que vem sendo defendido pelo Simple Spelling Board, visando a alcançar uma correspondência perfeita entre sons e fonemas.
O preço de uma reforma ortográfica
Sem falar no esforço para aprender novas regras e desenraizar regras antigas, cada reforma ortográfica é um golpe importante contra os livros pré-existentes, adquiridos após a reforma anterior, que se tornam obsoletos em face das modificações introduzidas.
Por estranho que seja, há aqueles, com poder de decisão, que acreditam que vale a pena pagarmos esse preço.
Fazer o quê, Estevinho?
Brasil e Portugal gostam de reformas ortográficas, e a que ora assoberba os povos lusófonos é a sexta, em menos de cem anos. Outras reformas, de maior ou menor profundidade, houve em 1911, em 1931, em 1945, em 1971 e em 1973. As quais são feitas por iniciativa ou com auxílio governamental, bastando obter a adesão de burocratas do Brasil e de Portugal, trazendo a reboque os de Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Timor Leste.
Cabo Verde
(a) Pela presente reforma, "paranoico" e "assembleia" (sem acento no "oi" e no "ei" tônicos), mas "herói" e "anéis" (com acento no "oi" e no "ei" tônicos).
(b) Pela presente reforma, "bocaiuva" , "feiura" e "Sauipe" (sem acento no "i" e "u" tônicos), mas "embaúba", "saída", “Piauí” e “Tuiuiú (com acento no "i" e "u" tônicos).
(c) Pela presente reforma, "micro-ondas" e "auto-organização" (com hífen) e "coordenar" e "cooperar" (sem hífen).
(d) Pela presente reforma, "sobre-humano" (com hífen), mas "subumano" (sem hífen).
(d) Pela presente reforma tornou-se facultativo o uso do acento circunflexo para diferenciar "forma" de "fôrma", como pode? Alguns verbos como "enxaguar" e "delinquir" também oferecem opção: se você quiser usar "enxáguo" e "delínquo", deixe o acento; mas, se for partidário do "enxagúo" e "delinqúo", retire o acento.
A derrota de Roosevelt
Em outros países, as iniciativas feitas para modificar o idioma usualmente malogram. Por exemplo, as tentativas de reformar o Inglês, tão cheio de problemas, vêm sendo malsucedidas desde o século XVII, com Charles Butler (1634), Samuel Johnson (1806), Isac Pitman (1837), Andrew Carnegie (1906), Bernard Shaw (1910) e H. G. Wells (1942).
Nem o presidente Theodore Roosevelt, com sua autoridade de intelectual e líder carismático, conseguiu bancar uma reforma desse tipo nos Estados Unidos. Em 11 de março de 1906, foi criado em Nova York “The Simplified Spelling Board”, um comitê para examinar os problemas da língua inglesa, integrado por vários intelectuais, entre os quais Samuel Clemens (o “Mark Twain”).
O Simplified Spelling Board constatou o óbvio: a língua inglesa é muito difícil de ler e de escrever, com prejuízo de todos os seus usuários e empecilho para a prosperidade da própria língua. Há nela uma pletora de incongruências, discrepâncias, irregularidades e inconsistências.
Seis exemplos
(a) palavras com letras sem função, como “e”, em “axe”, e “h”, em “ghost”.
(b) palavras grafadas esdruxulamente, como “enough”, que poderia ser “enuf”.
(c) por que “phantasy”, e não “fantasy”?
(d) fonemas e pronúncias na mais pura desordem. O grupo “ough” tem sons diferentes nas cinco palavras a seguir: through, though, thought, enough e cough. O grupo “augh” soa de modo diferente em daughter e laughter.
(f) Que dizer das diferenças entre o Inglês americano e o britânico? Cinco exemplos de palavras na versão americana e seu correspondente na versão inglesa:
honor e honour
center e centre
plow e plough
license e licence
theater e theatre
300 palavras
O Simplified Spelling Board organizou uma lista de 300 palavras que deveriam ser imediatamente escritas de maneira simplificada, ao passo que outras modificações haveriam de ser introduzidas no decorrer do tempo.
Essa iniciativa desonerava a língua, e alguns aceitaram a lista imediatamente, até mesmo algumas escolas.
Seu maior entusiasta foi Theodore Roosevelt, presidente dos Estados Unidos, que enviou uma carta ao United States Government Printing Office (Departamento de Imprensa do Governo), em 27 de agosto de 1906, ordenando que os documentos oficiais passassem a adotar a lista das 300 palavras modificadas.
Houve, porém, forte reação popular, pois os que aceitavam a simplificação eram na verdade minoria. Os jornais passaram a fazer piadas sobre a reforma, que foi rejeitada pelo Congresso em 13 de dezembro de 1906 e a seguir pela Suprema Corte dos Estados Unidos. A ideia de reformar a língua inglesa não morre, mas não prospera, havendo uma dezena de sistemas propostos, mofando nos esperadouros do esquecimento:
Alfabeto latino aumentado, de Benjamin Franklin.
Alfabeto não-latino da Igreja Mórmon
Alfabeto não-latino de George Bernard Shaw
Esquema de Regularização da Escrita, proposto pelo Conselho Literário Americano.
Plano do corte das letras supérfluas e redundantes
"Primeiro Passo", de um plano de reforma em 50 etapas.
Alfabeto latino aumentado uníssono
Reforma Ortográfica da Língua Inglesa (OR-E)
"Interspel", uma proposta de Valerie Yule, a ser introduzida por estágios.
"Plano bRitic", de Reginald Deans, que vem sendo defendido pelo Simple Spelling Board, visando a alcançar uma correspondência perfeita entre sons e fonemas.
O preço de uma reforma ortográfica
Sem falar no esforço para aprender novas regras e desenraizar regras antigas, cada reforma ortográfica é um golpe importante contra os livros pré-existentes, adquiridos após a reforma anterior, que se tornam obsoletos em face das modificações introduzidas.
Por estranho que seja, há aqueles, com poder de decisão, que acreditam que vale a pena pagarmos esse preço.
Fazer o quê, Estevinho?
domingo, 11 de janeiro de 2009
A IMAGEM DO UNIVERSO (9/n)
PESQUISANDO SOBRE GREGOS
Anaxágoras de Clazômenas
Físico, matemático e astrônomo, Anaxágoras de Clazômenas (cerca 500- 428 a. C.), primeiro filósofo a morar em Atenas, opunha-se, a um só tempo, aos milésios, a Empédocles e a Parmênides. Para Anaxágoras não há essa coisa de um único elemento primordial, como não são primordiais os quatro elementos de Empédocles (água, ar, terra e fogo): o que entra na composição de tudo é um sem número de elementos de qualidades distintas, aos quais chamou de homeômeros, uns em maiores proporções, outros em proporções tão pequenas que nem são percebidas. A pluralidade das coisas resulta das infinitas combinações dos homeômeros.
Segundo Anaxágoras, o Nous (uma força que se identifica com o espírito ou inteligência) atuou sobre uma mistura original formada por todos os homeômeros, separando-os e ensejando sua combinação, de maneira a formar todas as coisas. O Nous criou o movimento e a pluralidade.
Por ter negado a divindade do Sol ("apenas uma pedra incandescente") e da Lua ("uma miniatura da Terra"), explicando que os eclipses solares ocorriam por causa da passagem da Lua entre o Sol e a Terra, Anaxágoras foi acusado de heresia e fugiu para a Jônia (Lâmpsaco).
Sobre o episódio, Plutarco escreveria depois:
Protágoras (cerca de 483 - 410 a. C.) e Górgias (cerca de 485 - 378 a. C.) não são propriamente pré-socráticos, mas "sofistas", que viveram ao tempo de Sócrates. Sofistas ("sábios") eram, com efeito, os intelectuais dedicados a ensinar retórica e eloquência aos jovens da classe dirigente que pretendiam se dedicar à política. Pois aquele era um tempo de democracia, seguindo-se à vitória de Atenas sobre os persas, em 479 a. C. É nesse tempo que a filosofia começa a se afastar das investigações sobre a natureza e sobre o universo, para dedicar-se sobretudo às questões humanas.
Protágoras
Protágoras era amigo de Péricles, mas foi banido de Atenas, e teve suas obras queimadas em praça pública, depois de manifestar que não se pode afirmar que os deuses existem, nem que não existem. O homem é a medida de todas as coisas: daquelas coisas que são, pelo que são, daquelas que não são, pelo que não são, entendendo por medida a norma de juízo e por coisas os fatos em geral. O homem é o juiz de todos os fatos, pois dispõe da razão; mas existe uma diferença infinita entre homem e homem, e exatamente por isso as coisas parecem, e são de um jeito, para uma pessoa, e parecem, e são de outro jeito, para outra pessoa.
Górgias
Nascido na Sicília, viajou por toda a Grécia, onde fez grande sucesso como professor, acumulou fortuna e conquistou uma legião de adeptos e seguidores. No tratado do não-ser, Górgias estabeleceu três princípios encadeados:
(1) nada existe;
(2) mesmo que algo existisse, não poderia ser pensado, porque incompreensível;
(3) se, não obstante, algo existisse e pudesse ser pensado, não poderia ser explicado.
Lógico por excelência e grande pensador, Górgias encantava pelo discurso mágico, cheio de poesia e estilo.
Arquitas de Tarento
Arquitas de Tarento (cerca de 400-365 a. C.), o mais ilustre dos matemáticos pitagóricos, teve grande influência sobre Euclides, foi discípulo de Filolau e amigo de Platão, sendo considerado o pai da mecânica e o primeiro a usar o cubo em geometria.
Arquitas fazia a apologia da aritmética:
"Quando três termos têm magnitudes de maneira que o primeiro excede o segundo tanto quanto o segundo excede o terceiro, o segundo será a média aritmética dos três e nessa conformidade acontece que é menor a razão dos termos maiores e maior a dos menores.
De três termos, o segundo será a média geométrica quando o primeiro está para o segundo tal qual o segundo para o terceiro, sendo a razão dos maiores termos igual à razão dos menores."
"Deve-se, aprendendo de outro, ou por investigação própria, tornar-se conhecedor do que não se conhece. O que é aprendido vem de outro e por auxílio alheio; o que é investigado vem da própria pessoa e por auxílio próprio; encontrar sem procurar é difícil e raro, mas, procurando, é acessível e fácil."
Anaxágoras de Clazômenas
Físico, matemático e astrônomo, Anaxágoras de Clazômenas (cerca 500- 428 a. C.), primeiro filósofo a morar em Atenas, opunha-se, a um só tempo, aos milésios, a Empédocles e a Parmênides. Para Anaxágoras não há essa coisa de um único elemento primordial, como não são primordiais os quatro elementos de Empédocles (água, ar, terra e fogo): o que entra na composição de tudo é um sem número de elementos de qualidades distintas, aos quais chamou de homeômeros, uns em maiores proporções, outros em proporções tão pequenas que nem são percebidas. A pluralidade das coisas resulta das infinitas combinações dos homeômeros.
Segundo Anaxágoras, o Nous (uma força que se identifica com o espírito ou inteligência) atuou sobre uma mistura original formada por todos os homeômeros, separando-os e ensejando sua combinação, de maneira a formar todas as coisas. O Nous criou o movimento e a pluralidade.
Por ter negado a divindade do Sol ("apenas uma pedra incandescente") e da Lua ("uma miniatura da Terra"), explicando que os eclipses solares ocorriam por causa da passagem da Lua entre o Sol e a Terra, Anaxágoras foi acusado de heresia e fugiu para a Jônia (Lâmpsaco).
Sobre o episódio, Plutarco escreveria depois:
"Não se podia tolerar aqueles físicos, ou meteorólogos, como eram chamados, que punham em xeque a divindade, ao atribuírem tudo a forças e causas irrefletidas e destituídas de razão."
Melisso de Samos
Pouco se sabe de Melisso de Samos, nascido em (cerca de) 490 a.C. Comandante da esquadra naval que derrotou os atenienses de Péricles (441 a. C.), foi militar, cientista e filósofo, sendo citado como grande defensor de Parmênides e continuador da escola eleática, em oposição a Pitágoras e Empédocles.
O ser é, sempre foi e sempre será. Não tem princípio nem fim, mas é infinito. Nada que tem princípio é eterno ou infinito:
Protágoras e GórgiasMelisso de Samos
Pouco se sabe de Melisso de Samos, nascido em (cerca de) 490 a.C. Comandante da esquadra naval que derrotou os atenienses de Péricles (441 a. C.), foi militar, cientista e filósofo, sendo citado como grande defensor de Parmênides e continuador da escola eleática, em oposição a Pitágoras e Empédocles.
O ser é, sempre foi e sempre será. Não tem princípio nem fim, mas é infinito. Nada que tem princípio é eterno ou infinito:
"O ser é uno. Se o ser se dividisse, mover-se-ia; e, movendo-se, não poderia ser."
Seguindo o pensamento de Parmênides e de Zenão, Melisso defendia que não há movimento. O todo é imóvel, pois, se ele se movesse, forçosamente haveria o vazio; isso não é possível, pois o vazio não existe, na sua qualidade de não-ser.
Seguindo o pensamento de Parmênides e de Zenão, Melisso defendia que não há movimento. O todo é imóvel, pois, se ele se movesse, forçosamente haveria o vazio; isso não é possível, pois o vazio não existe, na sua qualidade de não-ser.
Protágoras (cerca de 483 - 410 a. C.) e Górgias (cerca de 485 - 378 a. C.) não são propriamente pré-socráticos, mas "sofistas", que viveram ao tempo de Sócrates. Sofistas ("sábios") eram, com efeito, os intelectuais dedicados a ensinar retórica e eloquência aos jovens da classe dirigente que pretendiam se dedicar à política. Pois aquele era um tempo de democracia, seguindo-se à vitória de Atenas sobre os persas, em 479 a. C. É nesse tempo que a filosofia começa a se afastar das investigações sobre a natureza e sobre o universo, para dedicar-se sobretudo às questões humanas.
Protágoras
Protágoras era amigo de Péricles, mas foi banido de Atenas, e teve suas obras queimadas em praça pública, depois de manifestar que não se pode afirmar que os deuses existem, nem que não existem. O homem é a medida de todas as coisas: daquelas coisas que são, pelo que são, daquelas que não são, pelo que não são, entendendo por medida a norma de juízo e por coisas os fatos em geral. O homem é o juiz de todos os fatos, pois dispõe da razão; mas existe uma diferença infinita entre homem e homem, e exatamente por isso as coisas parecem, e são de um jeito, para uma pessoa, e parecem, e são de outro jeito, para outra pessoa.
Górgias
Nascido na Sicília, viajou por toda a Grécia, onde fez grande sucesso como professor, acumulou fortuna e conquistou uma legião de adeptos e seguidores. No tratado do não-ser, Górgias estabeleceu três princípios encadeados:
(1) nada existe;
(2) mesmo que algo existisse, não poderia ser pensado, porque incompreensível;
(3) se, não obstante, algo existisse e pudesse ser pensado, não poderia ser explicado.
Lógico por excelência e grande pensador, Górgias encantava pelo discurso mágico, cheio de poesia e estilo.
Arquitas de Tarento
Arquitas de Tarento (cerca de 400-365 a. C.), o mais ilustre dos matemáticos pitagóricos, teve grande influência sobre Euclides, foi discípulo de Filolau e amigo de Platão, sendo considerado o pai da mecânica e o primeiro a usar o cubo em geometria.
Arquitas fazia a apologia da aritmética:
"Parece que a aritmética, em relação à sabedoria, é bem superior às demais artes, até mesmo superior à geometria, pois expõe seus temas de maneira mais clara."
As explicações que Arquitas dá para a média aritmética e a média geométrica podem constar de qualquer livro atual de estatística:
"Quando três termos têm magnitudes de maneira que o primeiro excede o segundo tanto quanto o segundo excede o terceiro, o segundo será a média aritmética dos três e nessa conformidade acontece que é menor a razão dos termos maiores e maior a dos menores.
De três termos, o segundo será a média geométrica quando o primeiro está para o segundo tal qual o segundo para o terceiro, sendo a razão dos maiores termos igual à razão dos menores."
"Deve-se, aprendendo de outro, ou por investigação própria, tornar-se conhecedor do que não se conhece. O que é aprendido vem de outro e por auxílio alheio; o que é investigado vem da própria pessoa e por auxílio próprio; encontrar sem procurar é difícil e raro, mas, procurando, é acessível e fácil."
sexta-feira, 9 de janeiro de 2009
AS DUAS FACES DE JANO
O BEM E O MAL
O deus Jano, com duas faces voltadas para lados opostos, é às vezes invocado para simbolizar que a ciência pode ser utilizada tanto para o bem quanto para o mal. Uma das faces de Jano terá visto o alemão Fritz Haber (1868-1934) como um paladino da humanidade, por ter criado em 1909 um processo de produção de amônia para fertilizantes, sem o qual hoje não haveria alimentos suficientes para as necessidades do mundo. Não fosse pelos fertilizantes nitrogenados, a população mundial não teria alcançado senão 50 % dos seus níveis atuais. Por esta razão Haber ganhou merecidamente o Prêmio Nobel de Química, em 1918.
A outra face de Jano pôde contemplar, do lado oposto, que o mesmo Fritz Haber inventou a guerra química, usando gás cloro contra os inimigos, o que foi feito pela primeira vez na Batalha de Ypres, na Bélgica, em 22 de abril de 1915, ele próprio a conduzir as operações. Era o início de uma crônica de extermínio que, só na Primeira Guerra Mundial, registra a morte de mais de cem mil soldados. Sua mulher, Clara Haber, que também era cientista, suicidou-se com um tiro no peito, em protesto contra a atuação do marido no front da guerra química.
Isso mesmo, as duas faces de Jano. Os fertilizantes, que ajudam a vida, e a guerra química, que serve à morte, nasceram pelas mãos do mesmo cientista. De um lado, o Prêmio Nobel e do outro, o remorso de ter provocado o suicídio da mulher querida.
Em 1927, em carta a um amigo, Fritz Haber fez a seguinte confissão:
- Estou lutando, cada vez mais depauperado, contra meus quatro inimigos: a insônia, as reivindicações financeiras da minha segunda esposa, Charlotte Nathan, minha preocupação com o futuro e a sensação de haver cometido graves erros em minha vida.
O deus Jano, com duas faces voltadas para lados opostos, é às vezes invocado para simbolizar que a ciência pode ser utilizada tanto para o bem quanto para o mal. Uma das faces de Jano terá visto o alemão Fritz Haber (1868-1934) como um paladino da humanidade, por ter criado em 1909 um processo de produção de amônia para fertilizantes, sem o qual hoje não haveria alimentos suficientes para as necessidades do mundo. Não fosse pelos fertilizantes nitrogenados, a população mundial não teria alcançado senão 50 % dos seus níveis atuais. Por esta razão Haber ganhou merecidamente o Prêmio Nobel de Química, em 1918.
A outra face de Jano pôde contemplar, do lado oposto, que o mesmo Fritz Haber inventou a guerra química, usando gás cloro contra os inimigos, o que foi feito pela primeira vez na Batalha de Ypres, na Bélgica, em 22 de abril de 1915, ele próprio a conduzir as operações. Era o início de uma crônica de extermínio que, só na Primeira Guerra Mundial, registra a morte de mais de cem mil soldados. Sua mulher, Clara Haber, que também era cientista, suicidou-se com um tiro no peito, em protesto contra a atuação do marido no front da guerra química.
Isso mesmo, as duas faces de Jano. Os fertilizantes, que ajudam a vida, e a guerra química, que serve à morte, nasceram pelas mãos do mesmo cientista. De um lado, o Prêmio Nobel e do outro, o remorso de ter provocado o suicídio da mulher querida.
Em 1927, em carta a um amigo, Fritz Haber fez a seguinte confissão:
- Estou lutando, cada vez mais depauperado, contra meus quatro inimigos: a insônia, as reivindicações financeiras da minha segunda esposa, Charlotte Nathan, minha preocupação com o futuro e a sensação de haver cometido graves erros em minha vida.
terça-feira, 6 de janeiro de 2009
DE REPENTE, NO TEXAS
CECÍLIA
Era a minha primeira aula na Universidade do Texas. O professor Burford, comentando o teste de admissão, revelou que dois alunos haviam se confundido na interpretação da terceira questão. Pelo mesmo e prosaico motivo: dificuldades com o idioma inglês. Ambos brasileiros, ambos recém-chegados a Austin.
- Um deles é este aqui, disse Burford, apoiando a mão sobre o meu ombro, e ele se chama Carlos Auvergne de Carvalho. The quick brown fox jumps over the lazy dog e, não obstante, o senhor não sabe o significado de dummy variable. Veja só!
Um vexame que nem cheguei a padecer, pois o professor, deslocando-se para o outro lado da sala, apontou para a bela jovem de calça jeans e casaco branco. Foi naquele momento que a vi pela primeira vez.
- Cecília, Cecília Lafayette de Castro.
O aplauso de toda a turma era uma demonstração de solidariedade, que ela agradecia cheia de modéstia, mas com sorriso cativante. Sem dúvida, um tributo à sua extraordinária beleza, pois, se assim não fosse, teriam me aplaudido também, por que não?
A consequência é que já não estava só naquele mundo estrangeiro, cujo sotaque decifrava com dificuldade e ouvido incompetente. No Union´s, o restaurante do campus universitário, ela me explicou que era arquiteta por formação, mas tinha a ambição de ser estilista.
- The quick brown fox jumps over the lazy dog, o que Burford quis dizer com isso?
- A ligeira raposa marrom salta sobre o cão preguiçoso. É uma frase que contém todas as letras usadas no idioma inglês, utilizada nos testes relacionados com as máquinas de telégrafo. Essa frase faz parte do show do Burford, que viu em nós, estrangeiros, o pretexto para dizer que a língua inglesa se espalha galhardamente por aí, em todas as bibliotecas do mundo, usando não mais que escassas 26 letras. Daí a estranheza com alunos graduados que não sabem o que é dummy variable. Já pensou na tragédia que será alguém morrer sem saber o significado de dummy variable?
- Ou seja, isso de não saber inglês é pura negligência... Devemos reconhecer, todavia, que foi carinhoso conosco, pois, seja como for, fomos apresentados à turma.
- Sem dúvida... Mas, voltando à raposa, será que o Burford sabe português? São também 26 letras, as mesmas, se não estou enganada.
- Suficientes para escrever os Lusíadas.
- E as crônicas do Rubem Braga...
- Mudando de assunto, Cecília, por que uma estilista tem de estudar estatística?
- Porque trabalha com moda.
- Um trocadilho?
- Não, não mesmo. Onde você acha que os estatísticos foram buscar a sua noção de moda? A moda, a das roupas, tem tudo a ver com amostragem, média, mediana, momentos, desvio padrão...
- É, basta ter uma distribuição de frequências.
- Bem, sou engenheiro recém-formado e cumpro um treinamento de três meses, a serviço da WED.
- WED?
- Sim, W-E-D, Western Energy Development.
Cecília e eu decidimos estudar juntos e, entre histogramas, regressões e números-índices, tive a percepção de que estávamos construindo uma parceria vitoriosa, que iria para além de uma primavera universitária no Texas. Acertei, pois logo estávamos namorando, e morando juntos, perfeitamente integrados um ao outro. Terminado o curso, visitamos Nova Orleans, San Francisco e Nova York, antes de voltar para o Rio de Janeiro.
- Se você quiser, Cecília, podemos duas coisas.
- Acho que podemos mais do que duas coisas, Carlinhos.
- Sim, mas quero me referir a duas delas, muito específicas e fundamentais. A primeira é estabelecer um binômio para nós: lealdade e generosidade.
- Muito justo e pertinente. E a outra?
- É a gente se casar, assim que chegarmos ao Brasil.
Era a minha primeira aula na Universidade do Texas. O professor Burford, comentando o teste de admissão, revelou que dois alunos haviam se confundido na interpretação da terceira questão. Pelo mesmo e prosaico motivo: dificuldades com o idioma inglês. Ambos brasileiros, ambos recém-chegados a Austin.
- Um deles é este aqui, disse Burford, apoiando a mão sobre o meu ombro, e ele se chama Carlos Auvergne de Carvalho. The quick brown fox jumps over the lazy dog e, não obstante, o senhor não sabe o significado de dummy variable. Veja só!
Um vexame que nem cheguei a padecer, pois o professor, deslocando-se para o outro lado da sala, apontou para a bela jovem de calça jeans e casaco branco. Foi naquele momento que a vi pela primeira vez.
- Cecília, Cecília Lafayette de Castro.
O aplauso de toda a turma era uma demonstração de solidariedade, que ela agradecia cheia de modéstia, mas com sorriso cativante. Sem dúvida, um tributo à sua extraordinária beleza, pois, se assim não fosse, teriam me aplaudido também, por que não?
A consequência é que já não estava só naquele mundo estrangeiro, cujo sotaque decifrava com dificuldade e ouvido incompetente. No Union´s, o restaurante do campus universitário, ela me explicou que era arquiteta por formação, mas tinha a ambição de ser estilista.
- The quick brown fox jumps over the lazy dog, o que Burford quis dizer com isso?
- A ligeira raposa marrom salta sobre o cão preguiçoso. É uma frase que contém todas as letras usadas no idioma inglês, utilizada nos testes relacionados com as máquinas de telégrafo. Essa frase faz parte do show do Burford, que viu em nós, estrangeiros, o pretexto para dizer que a língua inglesa se espalha galhardamente por aí, em todas as bibliotecas do mundo, usando não mais que escassas 26 letras. Daí a estranheza com alunos graduados que não sabem o que é dummy variable. Já pensou na tragédia que será alguém morrer sem saber o significado de dummy variable?
- Ou seja, isso de não saber inglês é pura negligência... Devemos reconhecer, todavia, que foi carinhoso conosco, pois, seja como for, fomos apresentados à turma.
- Sem dúvida... Mas, voltando à raposa, será que o Burford sabe português? São também 26 letras, as mesmas, se não estou enganada.
- Suficientes para escrever os Lusíadas.
- E as crônicas do Rubem Braga...
- Mudando de assunto, Cecília, por que uma estilista tem de estudar estatística?
- Porque trabalha com moda.
- Um trocadilho?
- Não, não mesmo. Onde você acha que os estatísticos foram buscar a sua noção de moda? A moda, a das roupas, tem tudo a ver com amostragem, média, mediana, momentos, desvio padrão...
- É, basta ter uma distribuição de frequências.
- Bem, sou engenheiro recém-formado e cumpro um treinamento de três meses, a serviço da WED.
- WED?
- Sim, W-E-D, Western Energy Development.
Cecília e eu decidimos estudar juntos e, entre histogramas, regressões e números-índices, tive a percepção de que estávamos construindo uma parceria vitoriosa, que iria para além de uma primavera universitária no Texas. Acertei, pois logo estávamos namorando, e morando juntos, perfeitamente integrados um ao outro. Terminado o curso, visitamos Nova Orleans, San Francisco e Nova York, antes de voltar para o Rio de Janeiro.
- Se você quiser, Cecília, podemos duas coisas.
- Acho que podemos mais do que duas coisas, Carlinhos.
- Sim, mas quero me referir a duas delas, muito específicas e fundamentais. A primeira é estabelecer um binômio para nós: lealdade e generosidade.
- Muito justo e pertinente. E a outra?
- É a gente se casar, assim que chegarmos ao Brasil.
Assinar:
Postagens (Atom)