quarta-feira, 12 de junho de 2013

A PARTILHA

TOMA LÁ, DÁ CÁ


Dois meses morei em Agrura, uma cidade sem atrativos e de estranhos costumes. Recebendo participação nas vendas de aparelhos de televisão, tinha a ambição de amealhar o suficiente para abrir meu próprio negócio, de preferência em ambientes menos precários e mais civilizados. Minha intenção era, desse modo, permanecer ali durante bastante tempo.
Não se deu assim, infelizmente. Pois tive a má sorte de testemunhar o assassinato do doutor Abdias Arruda no bar de maior frequência da cidade. Mais um episódio de sangue na história de duas famílias que se odiavam e tinham capacidade bastante para mirar no coração do inimigo. 

Pior é que fui arrolado como testemunha do crime, o que, segundo me disseram, significava uma sentença de morte, pois seria liquidado pela parte que se sentisse contrariada com o que eu declarasse ao juiz. Pessoas amigas e influentes, exatamente por isso, nunca eram chamadas a testemunhar. Imediatamente todos deixaram de falar comigo, temendo enredar-se no problema. 

Estou perdido, pensei, e, no desespero, redigi, e depois decorei, o que iria dizer ao excelentíssimo senhor juiz naquela manhã de terça-feira:

            - Tudo transcorria normalmente no Bar do Ponto, quando, surgindo não sei de onde, Epitácio gritou: Abdias! O doutor Abdias voltou-se, e Epitácio fez seis disparos, à queima-roupa, sem dar ao outro nenhuma oportunidade. Gostaria de acrescentar, meritíssimo, que duas dezenas de pessoas presenciaram o crime, mas só eu fui indicado como testemunha. 

            O juiz recebeu-me à porta do gabinete e, tão logo ficamos a sós, disse-me o seguinte: 

            - Tenho uma proposta. 

            - Uma proposta?

            - Trata-se de uma espécie de partilha, dentro da premissa de que se pode perder os anéis para salvar os dedos. Depende apenas do senhor...

            - Seja qual for sua proposta, excelência, considere-a aceita por mim. 

            Foi assim que renunciei à gerência da loja de aparelhos de televisão, em favor de alguém cujo nome nem cheguei a saber, e em dois dias estava de volta ao Rio de Janeiro. Tenho essa história para contar e, bem agasalhada no coração, a esperança de não  presenciar nenhum outro crime. 

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