quarta-feira, 27 de julho de 2011

SACAÇÕES RECIPROCADAS

Há muitos Zés por aí

Eu nem me lembrava do teste, quando Ingrid me acudiu com a notícia.

- Você a
rrebentou!

- Minha preferência e opinião foram aprovadas?

- O departamento de pessoal, o Depes, viu muita cultura na sua frase preferida e
uma formulação extraordinária na questão opinativa.

- Formulação extraordinária, como assim?

- Ninguém contrapôs Fernando Pessoa a Einstein, antes de você.

- Mas eu não contrapus...


- Contrapôs, sim, com toda a propriedade. O DI...


- DI?


- Departamento de Inteligência. O DI deu um parecer reconhecendo que você tem toda a razão, pois o Livro do Desassossego e a Teoria da Relatividade constituem as duas sacações reciprocadas mais importantes do século XX.


- Sacações reciprocadas?


- Sim, Frank. O Livro do Desassossego é o contraponto literário da Teoria da Relatividade. Veja só esta passagem do Pessoa: "tudo que é alto passa alto e passa; tudo que é de apetecer está longe e passa longe". Não tem cara de relatividade poética e de poesia relativística?

Não posso deixar prosperar esse julgamento incompetente, que me supervaloriza, pois adiante me cobrarão por isso. Muita coisa errada há nesssa avaliação, extrapolando perigosamente todos os limites razoáveis.

- Não sei se o DI está de gozação, ou se falando sério. Apenas disse despretensiosamente, e sob a pressão de parecer que tinha uma opinião, que Fernando Pessoa e Albert Einstein eram grandes pensadores, mas não me ocorreu sugerir nenhum contraponto à Teoria da Relatividade, muito menos um contraponto literário. Não tenho capacidade, nem embocadura, nem aptidão, para fazer correlações dessa magnitude. A bem da verdade, nunca ouvi falar em sacações reciprocadas.

- Ora, Frank...

- Se há sacação reciprocada entre Einstein e Pessoa, trata-se de um caso típico de serendipidade, exatamente como nas descobertas da penicilina e do viagra.

- Serendipidade, qual nada, mérito seu. Não seja assim modesto. Outra coisa: quem é Zé?

Houve por aí o Zé da Zilda, o Zé Alencar e o Zé de Alencar, o Zé de Anchieta, o Zequinha de Abreu, tanto quanto o Zé de Abreu, o Zé do Patrocínio, o Zé Maria lateral, o Zé Kéti, o Zé Bonifácio de Andrada e Silva, o Zé Boquinha, o Zequinha Sarney, o Zé Trindade, o Zé de Arimatéia, o Zé Bové, a Maria José, Zeca Pagodinho e Zeca Camargo, Zé de Habsburgo, Paulo José, São José e inúmeros outros Zés, notórios e qualificados. Quem vai se interessar por um Zé que foi somente Zé? O melhor é dizer que o Zé é um modelo, um protótipo, encerrando o assunto sem maiores tergiversações.

Zé do Caixão

- Ingrid, é melhor esquecer o Zé.

- Esquecer?

- Esquecer, pois o Zé é um arquétipo, não um indivíduo em particular. Quis apenas fazer uma modesta homenagem aos homens inteligentes, grandes pensadores, que atravessam a existência no mais puro anonimato e perdem-se na primeira esquina do tempo. Ou, por outra, foi uma maneira de manifestar que houve numerosos grandes pensadores e que nomear três, sobre arriscado, não deixa de ser uma temeridade e, mais que isso, uma injustiça com milhares de pessoas extraordinárias cujos nomes simplesmente desconhecemos.

- Sem dúvida.
- Aquele pedaço de osso...

- É impossível saber qual pessoa pensou mais, não é óbvio? Como ter certeza de que não pensou mais o homem primitivo que primeiro pôs-se de pé ou aquele que usou pela primeira vez um pedaço de osso para defender-se? Ou o que percebeu a conveniência de usar o pedaço de osso como alavanca, para remover obstáculos e levantar pesos? E o outro, na imensidão do passado, que inventou a roda, combinando-a com a alavanca para formar o veículo, ou seja, a máquina de transportar? Como descartar os homens que inventaram o papel, a máquina a vapor, o guarda-chuva, os números indo-arábicos e o zero, a luz elétrica, o automóvel, a regra de Chió, o avião, o rádio, a bola de bilhar, o crivo de Eratóstenes, a semana inglesa, o computador, a curva de Gauss, o pedal da bicicleta, a televisão, o cordão dos sapatos, o teorema de Tales e o quadro-negro?

- Pode me chamar de Zé...

- E então?

- Digamos que o "Zé" é o meu genérico; toda vez que me ocorrer um grande pensador da humanidade, dele direi que é um ótimo Zé, eximindo-me do remorso de tê-lo omitido no teste da Maria Moretson.

.- Se Platão vier com alguma reclamação...

- Reclamação justa e pertinente. Eu lhe diria: não o esqueci de forma alguma, senhor Platão, pois você é o Zé, cuspido e escarrado.

- Zé Genérico, sim, senhor, você é muito prevenido!

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